segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Numa pensão alemã (1911) 
Katherine Mansfield (1888-1923) - Nova Zelândia 
 Tradução: Julieta Cupertino 
Rio de Janeiro: Revan, 2008, 142 páginas 



Primeiro livro de Katherine Mansfield, esta coletânea reúne 13 contos bastante irregulares, tendo como cenários retiros de saúde na Baviera (reais ou imaginários). Curiosamente, cerca de metade do volume (sete narrativas) é composta por textos em primeira pessoa, que configuram-se como caricaturas desenhadas com traços grosseiros, em que mais que personagens são descritos tipos, como os títulos antecipam: "Os alemães à mesa", "O Barão", "A irmã da Baronesa", "A mulher moderna", "A mulher culta", etc. Nestes esquetes, bem fracos, a narradora se coloca em posição de supremacia em relação aos alemães - "Os ingleses olham sempre acima da cabeça das pessoas" (p. 38) revela, orgulhosa.  Dos outros seis contos, todos em primeira pessoa, um, "A Criança-que-estava-cansada", é idêntico em mote, enredo e desfecho a outro, de seu mestre Anton Tchekov (1860-1904)*, cujo resultado, no entanto, lhe é superior. "Um nascimento" discute a questão da maternidade; "Uma labareda", a volubilidade feminina; "O balanço do pêndulo", a perversidade violenta dos homens - núcleos temáticos de sua obra madura. Dois textos, no entanto, antecipam a genialidade da autora, "No Bar e Café Lehmann's" e principalmente "Frau Brechenmacher vai a um casamento".


* Cf. "Olhos mortos de sono". In: TCHEKOV, Anton. A dama do cachorrinho e outros contos. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 209-215, tradução de Boris Schnaiderman



Avaliação: BOM

(Setembro, 2015)


Entre aspas

"À cabeceira da mesa do centro sentavam-se a noiva e o noivo; ela, vestida de branco com tiras e laços de fitas coloridas dando-lhe a aparência de um bolo confeitado, pronto para ser cortado e servido em caprichados pedacinhos ao noivo (...)" (p. 46)


sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Felicidade e outros contos (1923) 
Katherine Mansfield (1888-1923) - Nova Zelândia 
Tradução: Julieta Cupertino 
Rio de Janeiro: Revan, 1992, 140 páginas  


Nesta coleção de contos, a autora revela-se no auge de sua forma. São oito pequenas narrativas e todas, sem exceção, constituem obras-primas que, seguindo a lição do russo Anton Tchekov (1860-1904), mais omitem que expõem as tramas. Aliás, seu mestre é citado literalmente à p. 21: "(...) eles lhe faziam lembrar uma peça de Tchekov!". No Brasil, sua influência é notória em Clarice Lispector (1920-1977). Mansfield descreve, por meio de um diálogo em "Psicologia", o substrato de suas preocupações literárias: "Você quer dizer que (...) os jovens escritores de hoje (...) estejam simplesmente tentando invadir a área dos psicanalistas?" A que o jovem escritor responde: "(...) penso que (...) esta geração é bastante sábia para perceber que está doente e para compreender que sua única oportunidade de cura é examinar os sintomas (...) tentando chegar às raízes do mal" (p. 34). A solidão da condição da mulher, mergulhada em um mundo machista e perverso, é tema recorrente em suas narrativas. Não há diferença entre a burguesa sofisticada de "Felicidade" e a proletária de "A pequena governanta": ambas são vítimas de homens inescrupulosos. Impressionante como a autora consegue transitar entre as classes médias alta e baixa com absoluta segurança! Destaque ainda para o belíssimo "O canário".

Avaliação: OBRA-PRIMA

(Setembro, 2015)


Entre aspas

"(...) com frequência sinto que é perigoso esperar pelas coisas, que, se ficamos esperando, elas vão se afastando cada vez mais." (p. 125)

"Talvez não importe muito o que amamos neste mundo. Mas devemos amar alguma coisa." (p. 134)




Contos fantásticos do século XIX (1983) 
Italo Calvino (organizador)
Vários tradutores
São Paulo: Cia das Letras, 2004, 517 páginas


O escritor italiano Italo Calvino (1923-1985) reuniu 26 contos de autores célebres ou menos conhecidos do século XIX, que acabam compondo um livro irregular mas fascinante. Ele divide o volume em duas partes, "O fantástico visionário" - o poder de suscitar imagens, visões - e "O fantástico cotidiano" - ou mental, ou psicológico (p. 13-14). Minhas preferências recaem mais sobre as narrativas em que o fantástico impregna o real que aquelas em que age o inexplicável. Por isso, minha predileção pelo estranhíssimo Jan Potocki (1761-1815) e sua "História do demoníaco Pacheco"; o maravilhoso "O jovem Goodman Brown", de Nathaniel Hawthorne (1804-1864), que denuncia a hipocrisia religiosa; o extraordinário "A sombra', de Hans Christian Andersen (1805-1875), mais conhecido por suas histórias infantis; o terrível "O sinaleiro", de Charles Dickens (1812-1870); o psicanalítico "O sonho", de Ivan Turguêniév (1818-1873); o sarcástico "É de confundir!", de Auguste Villiers de L'Isle Adam (1838-1889); o horrível "Chikamauga", de Ambrose Bierce (1842-1914); e o ótimo "O demônio da garrafa", de Robert Louis Stevenson (1850-1894) . Imprescindível a nota introdutória do organizador.


Avaliação: MUITO BOM



(Setembro, 2015)

  

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Absolutamente nada (1907-1929) 
Robert Walser (1878-1956) - Suíça 
Tradução: Sergio Tellaroli 
São Paulo: Editora 34, 2014, 167 páginas  


Tenho franca ojeriza por autores que usam o cinismo como forma de expressão. A ironia implica a capacidade de entender o outro, porque o outro é o espelho de nós mesmos, enquanto o cínico se sente superior ao resto da Humanidade, olha o mundo de cima para baixo, sente-se injustiçado e incompreendido. "Absolutamente nada e outras histórias" é isso: o livro de um cínico. O narrador de Robert Walser debocha dos personagens, trata-os com desprezo e impaciência, impossibilitando qualquer forma de empatia. Aliás, o título do volume nos conduz a uma falsa noção de que se trata de um volume de contos. Na verdade, os textos apresentados são de difícil caracterização: algumas narrativas de ficção se mesclam a pequenos ensaios, cartas, poemas em prosa, crônicas, esquetes. Apesar da minha repulsa, admito que há um ou outro texto instigante, como por exemplo "Kleist em Thun", pelo qual quase chego a ter estima. Quanto a "Sou exigente?", para além do hilário diálogo ("- No momento atual estou crivado de flechas. / - De que tipo de flechas? / - As de Cupido" (p. 114-15), há ali uma ideia bastante aproveitável para um conto ou romance.


Avaliação: NÃO GOSTO

(Setembro, 2015)

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

O veredicto / Na colônia penal (1917 / 1919)  
Franz Kafka (1883-1924) - República Tcheca   
Tradução: Modesto Carone  
São Paulo; Cia das Letras, 2009, 84 páginas 


Nascido em Praga, então parte do Império Austro-Húngaro, e escrevendo em alemão, o que mais me impressiona em Franz Kafka é sua capacidade de ler o futuro. Este livro apresenta dois textos, "O veredicto" e "Na colônia penal", que em comum guardam o caráter judicioso. "O veredicto" é um conto sobre o conflito do filho com o pai, tema marcante e recorrente na obra do autor, em que à opressão não se oferece fuga: uma pena pronunciada deve ser consumada de imediato, sem discussão. "Na colônia penal" um oficial militar descreve, de maneira burocrática, o funcionamento de uma máquina construída para torturar e matar os condenados, que não têm direito à defesa, inscrevendo antes em seus corpos, por meio de um complexo mecanismo, os termos da sentença. O clima de terror e insanidade desta novela antecipa o que viria a constituir o horror nazista. Os funcionários agem de maneira irracional obedecendo cegamente a uma força superior, mas com uma lógica que chega a convencer até mesmo os mais lúcidos entre os homens. Apesar de, aparentemente, o clímax apontar para uma solução em que o criador se submete à criação, o final da narrativa deixa entrever que o Mal, o Mal absoluto, sempre contará com seguidores e que estes, talvez, até mesmo integrem a maioria da população.
   

Avaliação: BOM

(Setembro, 2015)



Sob o sol de Satã (1926)  
Georges Bernanos (1888-1948) - França 
Tradução: Hildegard Feist
Rio de Janeiro: Globo, 1987, 279 páginas




Romance de tese, o autor defende a ideia da presença avassaladora do Mal no mundo e, mais que isso, da extrema inteligência de Satã, que age justamente onde ninguém supõe. O padre Donissan, homem pouco letrado, rude, vive sob proteção do deão de Campagne, pequena aldeia perdida no interior da França. As mortificações a que se submete, a vida simples baseada na oração, no jejum, no despojamento, acabam cobrindo-o com o manto da santidade, sob o qual ele se abriga vencido pela soberba, um pecado capital. Após um estranho encontro numa noite de trevas com alguém que poderia ser o próprio Diabo travestido em homem, o padre Donissan esforça-se com impaciência por salvar da queda uma jovem, Mouchette, que guarda um terrível segredo, e chega até mesmo a tentar ressuscitar uma criança - em ambas as tarefas fracassa de forma retumbante. Duas personagens secundárias do romance - Mouchette, uma garota de 16 anos, cruel e voluntariosa, que protagoniza as 70 páginas iniciais do livro, e Antoine Saint-Marin, escritor septuagenário, cínico e descrente, que ocupa os cinco capítulos finais (32 páginas) - quase chegam a rivalizar em importância com o padre Donissan. O ponto negativo do livro é o caráter retórico que algumas vezes deixa-o extremamente maçante.




Avaliação: BOM


(Setembro, 2015)


Entre aspas
"Para muitos tolos vaidosos aos quaIs a vida decepciona, a família é uma instituição necessária, pois coloca-lhes à disposição e como que ao alcance da mão um pequeno número de seres frágeis, que a criatura mais covarde é capaz de amedrontar. Pois a impotência gosta de refletir sua nulidade no sofrimento alheio". (p. 22-23)




sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Um artista da fome / A construção (1924)  
Franz Kafka (1883-1924) - República Tcheca   
Tradução: Modesto Carone  
São Paulo; Cia das Letras, 2007, 116 páginas 




"Um artista da fome / A construção" reúne dois livros: o primeiro, uma coletânea de quatro contos lançada em 1924, e o segundo um conto longo, publicado postumamente. Se, como se diz, o mundo é um circo, "Um artista da fome" é todo um universo. Trabalhando com personagens artistas circenses, Kafka constrói metáforas da realidade, concebendo pelo menos duas obras-primas da narrativa curta: "Primeira dor" e "Um artista da fome". "Primeira dor" retrata um trapezista que resolve manter-se dependurado para melhor praticar seu labor. "Uma mulher pequena" é a descrição de uma estranha relação amorosa. "Um artista da fome" narra a vida e morte de um homem que tem por profissão jejuar. "Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos" é uma impressionante alegoria da constituição do povo judeu, "(...) quase sempre em movimento, correndo de lá para cá em função de objetivos nem sempre muito claros" (p. 42). Já "A construção" expõe a edificação de um esconderijo, que, por aspirar à total segurança, transforma-se em verdadeira prisão. Kafka assemelha-se a um oráculo que, por meio de textos aparentemente enigmáticos, nos oferece uma clara história do futuro, mas um futuro presentificado no aqui e agora do leitor.





Avaliação: MUITO BOM

(Setembro, 2015)







Um médico rural (1920) 
Franz Kafka (1883-1924) - República Tcheca 
Tradução: Modesto Carone 
São Paulo; Cia das Letras, 2007, 84 páginas 


Esse livro, dos poucos publicados em vida pelo autor, reúne 14 contos bastante emblemáticos de seu estilo e temática, entre eles quatro verdadeiras pequenas obras-primas: "Uma folha antiga", "Diante da lei", "Chacais e árabes" e o magnífico "Um relatório para uma Academia". O que mais me surpreende em Kafka é sua contemporaneidade. Contemporâneo não é sinônimo de atual, mas sim daquilo que se conserva pela transcendência: "Os portões permanecem fechados; a guarda, que antes entrava e saía marchando festivamente, mantém-se atrás de janelas gradeadas" (p. 26) escreve em "Uma folha antiga", informe da chegada de levas e levas de nômades às portas do palácio imperial. "Diante da lei" é a espera indefinida pela justiça. "Chacais e árabes" mostra a interdependência que se estabelece entre inimigos. "Um relatório para uma Academia" é a descrição 'científica' da transformação de um macaco em homem. As histórias afloram como se estivéssemos lendo comentários às notícias do dia. A maneira seca e quase burocrática com que são expostas e sua pretensa neutralidade alimentam um incomum mal estar no leitor. E é essa esquisita sensação de reconhecer no absurdo das situações apresentadas a nossa comezinha realidade que constitui a profunda originalidade de Kafka.


Avaliação: MUITO BOM

(Setembro, 2015)

segunda-feira, 14 de setembro de 2015


O clube do suicídio (1882) 
Robert Louis Stevenson (1850-1894) - Escócia 
Tradução: Andréa Rocha 
São Paulo: Cosac Naify, 2011, 444 páginas


Este livro contém seis narrativas: "O clube do suicídio" (1882), "O estranho caso do Dr. Jeckyll e Mr. Hyde" (1886), "Markheim" (1885), "O demônio da garrafa" (1893), "O ladrão de cadáveres" (1895) e "O vestíbulo". A primeira, "O clube do suicídio", é uma história contada à moda de "As mil e uma noites", muito engenhosa e divertidamente inverossímil. A segunda, mais conhecida no Brasil pelo título de "O médico e o monstro", é uma perfeita metáfora do nosso lado sombrio: "(...) o homem não é verdadeiramente um, mas verdadeiramente dois". Stevenson antecipa a psicanálise, quando afirma, por meio do Dr. Jeckyll: "(...) arrisco supor que, afinal, o homem será considerado apenas uma sociedade onde convivem indivíduos múltiplos, contraditórios e independentes" (p. 226). "Markheim" é a descrição da crise moral que acomete um assassino ocasional - a impessoalidade do personagem-título me remete a Meursault, de  "O estrangeiro", de Albert Camus (1913-1960). "O demônio da garrafa" é outro devaneio à moda de "As mil e uma noites". "O ladrão de cadáveres" e "O vestíbulo" são narrativas de terror, sendo ambas tributárias do sobrenatural. Stevenson é um autor com forte conteúdo moralizante - não oferece lições, pois é sublime, mas proporciona reflexões profundas sobre a natureza do mal.

Avaliação: MUITO BOM


Entre aspas

"(...) será que existe na vida desilusão maior do que conseguir aquilo que se buscava?" (p. 148)

(Setembro de 2015)

Antologia da literatura fantástica (1965) 
Adolfo Bioy Casares, Jorge Luiz Borges, Silvina Ocampo (organizadores)
Tradução Josely Vianna Baptista 
São Paulo: Cosac Naify, 2013, 444 páginas


Esta histórica antologia, publicada pela primeira vez em 1940 e ampliada em 1965, pode ser lida, na verdade, como uma espécie de paideuma dos organizadores, mais especificamente de Jorge Luiz Borges (1899-1986). Reúne contos, fábulas, preceitos morais, peças de teatro - textos desiguais de autores bastante diversos, incluindo, certamente, algumas invenções e intervenções borgianas. Destacaria, entre outros, os relatos de Akutagawa, Cortázar, Kafka, as fábulas de Chuang Tzu, Wu Cheng'en e I.A. Ireland - mas, sobretudo, os contos de W. W. Jacobs ("A pata do macaco"), Villiers de L'Isle Adam ("A esperança") e H.G. Wells ("O caso do finado M. Elvesham"). Uma curiosidade: os organizadores dão como de Jean Cocteau (1889-1963) uma pequena fábula, "O gesto da morte", que é exatamente a mesma história contada por Somerset Maugham (1874-1965), e que serve como epígrafe e dá título ao livro de John O'Hara (1905-1970), "Encontro em Samarra" (1934) (conferir: pág. 150 da Antologia, e página 15 do romance*)... Imperdível o prólogo de Bioy Casares ("A um anseio do homem, menos obsessivo, mais permanente ao longo da vida e da história, corresponde o conto fantástico: ao desejo inesgotável de ouvir histórias") e o impressionante soneto "A urna", de Enrique Banchs (p. 12), sobre o ódio. 

* Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, tradução de Ana Carolina Mesquita


Avaliação: MUITO BOM

(Agosto, 2015)



sábado, 12 de setembro de 2015



As filhas do fogo (1854) 
Gérard de Nerval (1808-1855) - França 
Tradução: Luiza Jorge Neto (prosa) e M. João Gomes (poemas)
Lisboa: Editorial Estampa, 1997, 222 páginas


Miscelânea que reúne, sob o título de "As filhas do fogo", cinco contos ("Angélica", "Silvia", "Jemmy", "Octávia" e "Emília"), uma peça de teatro ("Corilla"), três ensaios ("A Alexandre Dumas", "Canções e lendas do Valois" e "Ísis"), e uma recolha de oito poemas, "As quimeras". Livro desigual, mas instigante. "Angélica" certamente foi lida por Jorge Luiz Borges (1899-1996), pois há muitas similitudes entre um e outro. Trata-se de uma história construída em espiral, em que mais que o enredo, importa a forma de narrar. A destacar ainda o ensaio "Canções e lendas do Valois", que contém uma fábula, "A rainha dos peixes", impressionante por sua atualidade - um libelo ecológico avant la lettre. Em outro, "Ísis", o autor discute a influência oriental sobre o catolicismo, mostrando como a adoração à Virgem Maria é uma atualização do culto à deusa egípcia Ísis. "Emília" é um conto antológico: um jovem tenente francês mata um militar alemão em um confronto direto durante a anexação da Alsácia, no final do Século XVIII; muitos anos depois, casa-se com uma moça da região ocupada que, por fatalidade, vem a ser filha do oficial que ele eliminou. "Silvia", pelo final irônico, e "Jemmy", pelo inusitado cenário, o faroeste norte-americano, também merecem realce. Entre os poemas, o belíssimo "El desdichado".

Avaliação: MUITO BOM

Entre aspas

"(...) Cristo, o último dos reveladores, (...) em nome de uma razão mais alta, outrora despovoara os céus" (p. 173)

(Julho de 2015)

A vida e as opiniões do 
cavalheiro Tristram Shandy (1760-67) 
Laurence Sterne (1713-1768) - Irlanda
Tradução: José Paulo Paes
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, 681 páginas


Romance inacreditavelmente moderno, "Tristram Shandy" surpreende pela forma, pela linguagem, pelo humor. Não é um livro fácil, pois não há propriamente o desenvolvimento de um enredo, mas uma série de episódios que se alargam e se espraiam formando um delta de ideias críticas a respeito do patético que somos todos os seres humanos. Embora narrado em primeira pessoa pelo personagem que dá título ao livro, não é sobre Tristram Shandy que lemos - quase nada há a respeito de sua vida ou suas opiniões -, mas são as longas e hilárias discussões entre seu pai, Walter, e seu tio, Toby, que ocupam o centro do livro. Repositório de experimentalismos, "Tristram Shandy" alimentaria todos os movimentos de vanguarda posteriores - sua influência sobre Machado de Assis (1839-1908) é impressionante. Entre inúmeras cenas destacáveis, escolhi duas: a paródia filosófica sobre o mote "a mãe não é parente do filho" (capítulos 28 a 30 do volume IV) e a fantástica cidadela que tio Toby e o Cabo Trim erguem e destroem para representar os movimentos das batalhas que vão se desenrolando durante a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), que acompanham pelos jornais. Ao invés de instaurar a luz, Sterne instala o caos.


Avaliação: OBRA-PRIMA


Entre aspas

"Estaremos sempre a produzir novos livros, como os boticários produzem novas misturas, com apenas passar de um recipiente a outro?" (p. 347)

(Julho-Agosto de 2015)



   

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Inferno (1908) 
Henri Barbusse (1873-1935) - França 
Tradução: Eduardo Brandão 
Rio de Janeiro: Globo, 1988, 226 páginas


O mote é bastante engenhoso. Um homem sem nome, de cerca de 30 anos, muda-se para um hotel em Paris, vindo da província, para assumir o emprego em um banco. Enquanto aguarda os trâmites burocráticos, descobre, por acaso, uma fresta na parede que dá para o quarto vizinho e passa a bisbilhotá-lo. Mas, o que em princípio era apenas curiosidade, logo transforma-se em obsessão: ele deixa de viver sua vida para observar a vida alheia. Pelo cômodo contíguo, contempla um parto; uma jovem que, por compaixão, se despe para um velho moribundo; um casal de adolescentes descobrindo o amor e o sexo; uma mulher casada e seu amante; um casal de lésbicas. Trata-se de um romance híbrido: realista nas cenas presenciadas, filosófico nas reflexões que suscita, naturalista nas percepções sobre o ser humano - e o relato, impressionista, provoca uma espécie de vertigem no leitor. No final, sem o emprego, o narrador volta para o lugar de onde veio, desencantado com a hipocrisia da sociedade. Destaques para o capítulo XIV, onde há uma minuciosa descrição do processo de putrefação de um cadáver, e para a página 210, em que, semelhante ao D. Quixote, o narrador flagra um escritor descrevendo o enredo do livro que estamos lendo.


Avaliação: BOM


Entre aspas

"Em contato com os homens, as coisas se consomem com uma lentidão desesperadora" (p. 11)

"Não evocamos uma coisa quando a chamamos por seu nome. As palavras, as palavras - apesar de as conhecermos desde a infância, não sabemos o que são" (p. 38)

"Não amar mais é pior do que odiar, porque, digam o que quiserem, a morte é pior que o sofrimento" (p. 79)

"O tempo é mais cruel do que o espaço. O espaço tem algo de morto; o tempo, de mortífero" (p. 97)

"Tudo isso está demasiado na moda para não ficar fora de moda amanhã" (p. 217)


(Agosto de 2015)



quarta-feira, 9 de setembro de 2015


O bosque das ilusões perdidas (1913) 
Alain-Fournier (1888-1914) - França 
Tradução: Maria Helena Trigueiros
São Paulo: Círculo do Livro, s/d, 207 páginas



Não gosto do título da edição brasileira, pois remete ao romance de Honoré de Balzac (1799-1850), Ilusões perdidas (1837-43), quando não há nenhuma relação entre eles. O correto teria sido traduzir literalmente o original, "O Grande Meaulnes", mas provavelmente os editores se intimidaram com o sucesso de "O Grande Gatsby" , de Scott Fitzgerald (1896-1940), que é bem posterior (1925) mas muito mais conhecido. Livro estranhíssimo esse, narrado em clima de sonho, beirando ao fantástico mais delirante, mas que pouco a pouco vai se revelando bem mais realista do que imaginávamos. O efeito conseguido pelo autor deve-se à maneira impressionista com que relata essa história de amor, decadência, loucura, amizade e desilusão. O narrador, François Seurel, conta a aventura de seu colega de escola, o Grande Meaulnes, que um dia, sem querer, participa de uma extraordinária cerimônia de casamento, que acaba não se consumando. Os três dias em que permanece desaparecido vão marcá-lo para sempre. É neste curto período que conhece Frantz de Galais, o noivo rejeitado, de quem se torna amigo, e vislumbra Yvonne de Galais, irmã de Frantz, por quem se apaixona. Meaulnes passará a vida tentando recriar o passado, acossado pelo presente conturbado e frustrante, cheio de segredos e mistérios.

Avaliação: BOM


Entre aspas

"Enquanto o tempo corre, neste mesmo dia que eu gostaria que já tivesse terminado, (...) existem homens moribundos, outros têm a prazo umas promissórias e desejariam que o amanhã nunca chegasse. Outros há para quem a manhã despontará como um remorso; outros que estão fatigados e para quem esta noite será longa o bastante para propiciar todo repouso de que necessitam. E eu, eu que perdi o dia, com que direito ouso desejar que o amanhã chegue?" (p. 194)


(Agosto de 2015)