domingo, 25 de abril de 2021

 Tom Jones (1749)

Henry Fielding (1707-1754) -  INGLATERRA  

Tradução: Octávio Mendes Cajado  

São Paulo: Abril, 1971, 614 páginas



Este é o que podemos chamar de romance-padrão, no sentido mais literal do termo. A ascensão econômica e política da burguesia trouxe a necessidade de criar uma variante estética para representar a classe social emergente. E o esforço de criar um novo gênero narrativo - o único, aliás, surgido desde a Antiguidade - levou à invenção do romance, que é uma espécie de coroamento literário do capitalismo. Porque, assim como o capitalismo, o romance tem uma capacidade inacreditável de se transformar, incorporando as próprias falhas e fortalecendo-se a partir de suas contradições. Assim, no começo, todo romance é biográfico, ou seja, tem como objetivo contar a vida do protagonista do nascimento à morte, ou, do nascimento ao fim da juventude(os chamados "romances de formação"). Trata-se, portanto, da tentativa de conquistar uma identidade singular, uma subjetividade, algo totalmente ausente até então. As pessoas não possuíam uma individualidade - nem mesmo os aristocratas, que respondiam por um título genérico -, algo que o capitalismo inaugura. Tanto é que o título dos primeiros romances é uma demonstração de distinção: traz estampado o nome e o sobrenome do herói. No caso deste romance específico, o Autor faz uma coisa extraordinária: ao mesmo tempo em que conta a história de Tom Jones, ele faz a teorização do gênero romance. Dividido em dezoito livros, todos os primeiros capítulos de cada um desses livros é uma exposição, clara e muito bem fundamentada, desse gênero até então desconhecido - o Autor o justifica, preparando o leitor para as páginas que virão em seguida, numa simbiose perfeita*. A história de Tom Jones tem todos os componentes da narrativa romântica: impedimentos, sofrimentos, enganos, acasos, descobertas, heroísmos de uns, canalhices de outros, para tudo terminar com um final feliz, em que os que penaram são recompensados e os que se portaram mal são punidos. Mas não pense que isso é fortuito: há uma arquitetura bem urdida e principalmente há um narrador que é, ao mesmo tempo, irônico, sarcástico e benevolente... O que faz com que acompanhemos a história que está sendo contada como, acredito, uma telenovela contemporânea (diga-se de passagem que as telenovelas e mesmo as séries televisivas são filhas diletas do folhetim romântico e praticamente nada acrescentaram à fórmula vitoriosa há mais de dois séculos). Tom Jones aparece na cama do nobre sr. Alworthy, que encantado com o bebê, resolve criá-lo como uma espécie de filho bastardo. Tempos depois, a irmã do Sr. Alworthy casa-se, tem um filho, Sr. Blifil, mas morre em seguida. Tom Jones e o jovem Sr. Blifil vão crescer juntos, tendo acesso à mesma educação e à mesma vida ociosa proporcionada pelo dinheiro da aristocracia. Só que, enquanto Jones cresce alimentando princípios de honra e honestidade, Blifil pouco a pouco vai se mostrando mesquinho, hipócrita e interesseiro. Esses sentimentos, em ambos, só tendem a torná-los inimigos e, após a descoberta da paixão correspondida de Jones por Sofia Western, filha do rico vizinho do Sr. Alworthy, união impossível, devido à diferença de classe, a situação se torna insustentável e Jones é expulso da propriedade pelo pai. Jones então passa a vagar pelas estradas da Inglaterra, procurando esquecer de Sofia, enquanto, sem saber, Sofia, prometida a Blifil, foge de casa para Londres. Depois de muitas peripécias, que, aliás, sugerem até mesmo a possibilidade de um incesto de Jones - depois, claro, devidamente esclarecido e negado -, tudo se conforma. Jones, injustamente acusado de um assassinato, induzido por Blifil, é absolvido; revela-se que ele é filho da irmã de Alworthy, e portanto tem sangue nobre, herdeiro de uma grande riqueza, podendo casar com Sofia, para felicidade de seu pai, Sr. Western; e Blifil é afastado do convívio, vivendo de uma mesada do Sr. Alworthy, complementada pelo bom coração de Jones. É interessante observar que, embora herói da história, e investido de bons sentimentos, Jones não é um sujeito perfeito, principalmente no que diz respeito à moral, já que, em vários momentos, mostra-se infiel à sua paixão por Sofia. Outro ponto importante a destacar é que, ao fim e ao cabo, o romance é um libelo feminista, pois defende com veemência a liberdade de escolha da mulher, não só em relação ao casamento, como também ao modo de vida, conforme se lê aqui: "O matrimônio proporciona uma oportunidade igual para satisfazer assim o ódio como o amor; teoria que é, provavelmente, assaz corroborada pela experiência. Para falar a verdade, a julgarmos pelo procedimento das pessoas casadas, propendemos a concluir que quase todos buscam somente a satisfação da primeira paixao, ao juntarem o que têm, exceto os corações" (p. 529-530). E também: "(...) forçar uma mulher a um casamento contrário à sua anuência ou à sua aprovação é um ato tão injusto e opressivo que eu quisera que o proibissem as leis do nosso país (...)" (p. 549).


* O Autor tem plena consciência de que está de certa forma inaugurando uma nova forma de narrativa:

"Julgo, da mesma forma, que algum historiador futuro (se alguém me fizer a honra de imitar o meu estilo) (...) haverá de louvar-me a memória, por haver estabelecido, pela primeira vez, estes vários capítulos iniciais: a maioria dos quais, a feição dos prólogos modernos, pode prefaciar, com a mesma propriedade, qualquer outro livro desta história, ou, na verdade, qualquer outra história" (p. 513).


Entre aspas:

"(...) a calúnia é uma arma ainda mais cruel que a espada, de vez que os ferimentos que produz são sempre incuráveis" (pág. 340)



Avaliação: MUITO BOM

(Abril, 2021)


sexta-feira, 2 de abril de 2021

 O gatuno (1626)

Francisco de Quevedo (1580-1645) -  ESPANHA  

Tradução: Eliane Zagury  

São Paulo: Global, 1985, 107 páginas



O título completo do original traduz o espírito deste romance: história da vida do gatuno chamado Dom Pablo, exemplo de vagabundos e espelho de velhacos. Narrado em primeira pessoa - que, eventualmente torna-se uma primeira pessoa estranha e deliciosamente onisciente -, é o depoimento de uma vida destinada a dar errado num mundo abissalmente separado entre a aristocracia rica e poderosa e o povo miserável - mas não submisso... E aqui é que reside o verdadeiro achado do livro: para não morrerem de fome e para tentar livrarem-se de um futuro inapelável de restrições sociais e econômicas têm-se que romper as regras de conduta. Dom Pablo nasce em Segóvia, de uma família "marginal": "sua mãe era feiticeira; seu pai, ladrão; seu tio, verdugo" (p. 89), como o define Dom Diego Coronel, de quem havia sido criado em sua infância e adolescência. Dom Pablo vai, aos poucos, se exercitando na arte de enganar, perfazendo uma verdadeira escola, em suas caminhadas de ida e volta entre Segóvia e Madri. Pelo caminho vai conhecendo clérigos viciados em jogo de cartas, poetas que fazem versos aos borbotões, falsos aristocratas falidos, bandos de facínoras, para, após ser desmascarado e preso na capital castelhana, partir para Sevilha e de lá para as Índias (América). Romance pícaro, portanto, escrito com um humor muitas vezes escatológico e ofensivo, o livro é um bom retrato - mas talvez não um fiel retrato - da Espanha na passagem do século XVI para o XVII.


Avaliação: BOM

(Abril, 2021)