sábado, 12 de junho de 2021

  A estrela sobe (1939)

Marques Rebelo (1907-1973) BRASIL  

Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, 222 páginas


Este é um raro romance, por retratar os bastidores da vida do rádio, um espaço, na época, década de 1930, equivalente ao que seria, até muito recentemente, o mundo da televisão - ou seja, descreve o lado brutal existente por baixo da superfície glamurosa. Leniza Máier é uma adolescente nascida e criada no subúrbio do Rio de Janeiro - na verdade, em Santo Cristo e Saúde, em seu centro geográfico, mas longe da vida agitada do restante  da cidade. Desde cedo, ela trabalha para ajudar a mãe, que mantém uma precária pensão para rapazes solteiros e pobres e ainda lava roupa para completar o orçamento doméstico. Ambiciosa, Leniza começa como operária numa fábrica de balas, mas logo incorpora-se a um laboratório, onde embala remédios. Quando a empresa é vendida, o novo dono introduz novidades capitalistas, colocando bonitas vendedoras para frequentar consultórios médicos e propagandear seus produtos. Leniza é escolhida para fazer a praça principal, onde conhece o doutor Oliveira, um médico fracassado, viciado em jogatinas. Eles se tornam amigos e se apaixonam um pelo outro, embora Leniza não deixe que ele alimente grandes esperanças, porque ela almeja um futuro radioso. Pouco a pouco, seu Alberto, pensionista com quem convive em sua casa, a atiça a procurar uma rádio para dar vazão ao seu lado artístico. Leniza conhece Mário Alves, dono de uma revendedora de rádios, que, em troca de favores sexuais, a apresenta a Porto, diretor artístico de uma pequena e deficitária emissora, a Rádio Metrópolis. Empolgada com as novas possibilidades, Lenize renuncia ao emprego, endivida-se e começa a participar como cantora nos programas da rádio. Mas o salário prometido não é pago, ela se vê cada vez mais enredada em uma vida de mentiras - contada à sua mãe e ao seu Alberto. Torna-se amante de Mário Alves, depois de Dulce, uma cantora bem-sucedida que amadrinha jovens talentos, depois de Porto, depois de Amaro, um velho e rico negociante. No entanto, a cada degrau que sobe rumo ao sucesso, desce um degrau moral, de tal forma que ao invés de felicidade, encontra-se cada vez mais angustiada. A narrativa culmina com a gravidez de Leniza, que quase morre ao abortar - situação que a afasta em definitivo da mãe e do doutor Oliveira, que talvez tenha sido o único homem a amá-la verdadeiramente. No final, mesmo sabendo que cada passo que dá à frente destrói as ilusões do passado, ela resolve continuar a carreira, numa rádio maior e melhor. Leniza é, sem dúvida, uma das mais complexas personagens da literatura brasileira. O livro, no entanto, convive com um incontornável problema: o Autor, embora escreva numa linguagem escorreita e quase clássica, introduz, em nome de maior verossimilhança, inúmeras gírias da época, incompreensíveis para o leitor contemporâneo (mesmo quando contextualizadas), o que mostra o perigo de usar-se, na literatura, não a recriação da linguagem, mas sua simples reprodução. Outra questão, mas menos problemática, são as notas de rodapé apensadas ao livro, todas absolutamente dispensáveis, que mais parecem concessões do Autor a um certo "vanguardismo"... 



Avaliação: BOM

(Junho, 2021)

sexta-feira, 4 de junho de 2021

 Jacques, o fatalista (1796)

Denis Diderot (1713-1784) FRANÇA  

Tradução: Pedro Tamen     

Lisboa: Tinta da China, 2009, 295 páginas


Publicado postumamente, este livro, de alguma maneira, emula duas formas narrativas, uma contemporânea ao Autor, outra, muito mais antiga. A contemporânea é o maravilhoso romance A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (1760-1767), do irlandês Laurence Sterne (1713-1768), aqui neste espaço resenhado em 12 de setembro de 2015, ao qual o Autor faz referência e presta homenagem. O outro é As mil e uma noites, conjunto de histórias fabulosas, contos populares e folclóricos coletados em variadas fontes, indianas, persas e árabes. Para expor as aventuras de Jacques e de seu  amo, numa longa caminhada de lugar algum para nenhum lugar - montados em seus cavalos eles percorrem um espaço no interior da França, sem qualquer propósito -, o Autor usa do humor sterniano, que não hesita em se autoironizar. O narrador, na verdade, acompanha a viagem dos protagonistas, pontuando comentários sobre as várias histórias que vão sendo interpoladas, como nas Mil e uma noites... O livro começa com o Amo pedindo a Jacques, que acredita que tudo já está escrito "lá em cima", daí o seu epíteto, Fatalista, para contar a história de seus amores. Apenas pelo prazer de falar - ao qual esteve vetado durante sua infância, por viver numa casa onde a fala estava interditada -, Jacques a principia e retoma e retoma inúmeras vezes, sempre interrompido por algum fato banal ou alguma nova história, contada por ele, pelo Amo ou por algum novo personagem. Enquanto isso, são questionados a moral da Igreja, os costumes dos cidadãos, os conceitos de amizade e de amor...


Entre aspas:


"Não acredito nem desacredito [na vida que há-de-vir], não penso nisso. Gozo o melhor possível esta que nos foi concedida como adiantamento sobre a herança" (pág. 206)



Avaliação: BOM

(Junho, 2021)