quarta-feira, 30 de setembro de 2020

                                                  O Golem (1915)

Gustav Meyrink (1868-1932) - ÁUSTRIA

 Tradução: E. Leão Maia 

Lisboa: Vega, s/d, 278 páginas

 


Esse livro demonstra a estupidez de adjetivar e compartimentar o texto literário,  que sempre se traduz numa atitude reducionista. Se se procura referência a este Autor (já resenhado aqui em 16 de janeiro de 2017), o leitor se depara com conceitos como "literatura fantástica" ou "literatura de horror" - que servem apenas para atrair incautos... Este romance, muito mais que literatura fantástica ou de terror, é Literatura de alta qualidade, que, aliás, trafega muito longe de qualquer tentativa de enquadramento. Trata-se da história de Athanasius Pernath - contada por seu duplo, um narrador anônimo -, um lapidador de pedras preciosas de cerca de 40 anos, morador no gueto de Praga (República Tcheca), que aparentemente esteve internado num manicômio, e que, após submeter-se a uma terapia por hipnose, tem dificuldade de lembrar de seu passado. Em determinado momento ele passa a desconfiar que pode ser o próprio Golem - entidade mítica criada para proteger os judeus de seus algozes*. Mas, embora essa seja uma ideia que perpassa toda a história, em momento algum ela se concretiza - no final, volta a ideia do "duplo", já que o narrador teria sonhado com a história de Pernath, após uma troca involuntária  de chapéus...  Para mim, muito mais que discutir a questão do Golem, o que pretende o Autor é explorar os recônditos da mente do protagonista, um homem comum, que não compreende muito bem o que se passa à sua volta. Ele mora num apartamento, também seu local de trabalho, tendo por vizinho um local de encontro entre o enigmático médico, dr. Savioli, e a condessa Angelina. Esse dr. Savioli teria sido o responsável pelo suicídio de um colega de profissão, o oftalmologista charlatão dr. Wassory, filho de Aaron Wassertrum, dono de um ferro-velho, sovina, mesquinho e milionário. Wassertrum persegue a condessa Angelina com o propósito de denunciá-la para o marido, provocando sua ruína e vingando-se do dr. Savioli. Mas para contrariar seus propósitos interpõe-se o estudante de medicina, tuberculoso, Innocence Charousek, que, descobre-se, é filho bastardo de Wassertrum, e tem por ele um ódio insuperável. Além desses personagens, transitam pelo romance, entre outros, o arquivista do tribunal rabínico, Schemajah Hillel, e sua filha, Mirjam, que vivem em profunda pobreza mística. É impressionante como cada um desses personagens, e outros ainda aqui não mencionados, embora vagos e etéreos, vivem intensamente em nossa imaginação. A grandeza desse romance está exatamente nisso: ele é estranho, impalpável, enigmático, onírico, mas ou por isso mesmo arrebatador. 



* Essa é a descrição do Golem, pelo Autor:
"(...) ser artificial que um rabino kabalista criou, em tempos, a partir do elemento (...) chamando-o a uma existência maquinal, sem pensamento, por meio de uma palavra mágica que lhe tinha colocado atrás dos dentes". (pág. 35) 
"Um rabino dessa época teria criado um homem, a partir das fórmulas hoje perdidas da Kabala, para lhe servir de criado, tocar os sinos da sinagoga e fazer os trabalhos pesados. Mas não era um homem verdadeiro, e só uma vida vegetativa, semi-inconsciente, o animava. Tinha mesmo que ser renovada todos os dias, por intermédio de um pergaminho mágico que o rabino lhe colocava por detrás dos dentes e que atraía as forças siderais livres do Universo" (pág. 50)


ENTRE ASPAS:

"Aquele que pergunta recebe a resposta de que necessita: caso contrário, a criatura não seguiria o caminho das suas aspirações. Pensa que os textos judaicos são escritos com consoantes apenas por mero capricho? Não. Cada um terá de encontrar, pelos seus próprios meios, as vogais ocultas que lhe revelarão o sentido que, desde a eternidade, para si próprio determinou: a palavra viva não deve transformar-se num dogma morto". (pág. 118)



AVALIAÇÃO: OBRA-PRIMA

(Setembro, 2020)

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

                                  Histórias de vampiros 

Vários autores 

 Vários tradutores  

Lisboa: Estampa, 1988, 226 páginas


Este livro reúne nove contos, uma menção (interessantíssima, aliás) e um depoimento, que considero de extremo mau gosto... Vamos lá. O livro se inicia com uma menção à superstição da existência de vampiros, numa pretensa carta do papa Bento XIV (1675-1758) a um arcebispo, talvez uma das referências inaugurais ao mito. E segue com aquele que é considerado o primeiro conto escrito, tendo como protagonista um vampiro: a narrativa de John William Polidori (1795-1821), médico de Lord Byron (1788-1824). Ele acompanhou o grupo liderado por Byron, que incluía ainda o casal Percy Bysshe (1792-1822) e Mary Shelley (1797-1851), que, presos pelo mau tempo num castelo na Suíça, pensaram em inventar histórias de terror para passar o tempo. Só Mary Shelley e Polidori cumpriram o compromisso: ela, escreveu Frankestein (1818), resenhado aqui no dia 18-09-2020, e ele escreveu esse conto, O vampiro, publicado em 1819, história de um aristocrata que tem como elixir da vida eterna o consumo de sangue humano... A coletânea traz ainda contos do alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822), dos franceses Charles Nodier (1780-1844), Prosper Merimée (1803-1870) e Conde de Lautréamont (1846-1870), dos estadunidenses Edgar Allan Poe (1809-1849) e Ray Bradbury (1920-2012), do inglês Conan Doyle (1859-1930), e do romeno Gherasim Luca (1913-1994). Sempre achei - e cada vez mais me convenço disso - que as narrativas de Poe e de Hoffmann são histórias para adolescentes, perdem completamente o interesse para o leitor adulto. Eu destacaria os contos de Conan Doyle, porque seu detetive Sherlock Holmes e seu eterno companheiro, o médico John Watson, na maior parte das vezes proporciona inteligentes deduções, e de Bradbury, mestre da ficção especulativa, que aqui comparece com um conto, hum, digamos, mais "realista"... Mas o destaque mesmo vai para a pequena obra-prima de Merimée, "Lokis",  divertida e sofisticada incursão pelo fantasioso mundo da... literatura... Agora, para terminar, os organizadores incluíram o depoimento de John Haig, o chamado "vampiro de Londres", serial killer condenado à morte por enforcamento em 1949, um relato de embrulhar o estômago e que nada acrescenta, literariamente falando...
 



AVALIAÇÃO: BOM

(Setembro, 2020)


sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Frankenstein (1818)

Mary Shelley (1797-1851) - INGLATERRA

 Tradução: Santiago Nazarian 

Rio de Janeiro: Zahar, 2017, 246 páginas




A grande literatura é aquela permeável às mais variadas interpretações, por ser uma apropriação subjetiva da realidade, e não uma submissão objetiva aos fatos que a constituem. Esse romance é um exemplo bastante eloquente dessa assertiva. Um leitor ingênuo pode compreendê-lo como a história de um monstro construído por um jovem cientista ambicioso, que, após dar vida à sua criatura, perde o controle sobre suas ações  - uma vertente, digamos assim, gótica da história literária... Mas, claro, essa é apenas uma, e a primeira, camada da narrativa, que, ao fim e ao cabo, possui outras, inúmeras outras. A cada releitura desta obra, o leitor se depara com uma nova possível interpretação. O jovem cientista, Victor Frankenstein, vive uma vida burguesa e saudável em Genebra, tendo como único trauma a morte da mãe, no parto de seu irmão caçula, William. Mas, por conta da situação financeira e também pelo amor que os cerca, a família Frankenstein supera os problemas - além do pai, de Victor e de William e mais um irmão, chamado Ernest, com eles ainda vive Elizabeth Lavenza, adotada como uma espécie de prima não consanguínea, e Justine Moritz, agregada. Ao chegar a época de entrar para a universidade, Victor transfere-se para Ingolstad, na Alemanha, e apaixona-se pela filosofia natural - campo do conhecimento precursor das ciências naturais. No decorrer de seus estudos, Victor torna-se obcecado por uma ideia: dar vida a um ser inanimado, ou seja, descobrir o "elixir da vida", com o objetivo de "alcançar a glória", banindo "a doença da constituição humana" e tornando o homem "invulnerável a qualquer morte que não a violenta" (p. 48). Mas, no momento mesmo em que consegue esse feito, assusta-se com sua abominável criação,  "um ser de estatura gigantesca: de cerca de dois metros e quarenta de altura e proporcionalmente largo" (p. 61); "a pele amarela mal encobria a atividade dos músculos e das artérias; o cabelo era comprido e de um preto lustroso; os dentes, de um branco perolado; mas esses luxos só formavam um contraste mais horrendo com os olhos aguados, que pareciam quase da mesma cor dos buracos acinzentados  nos quais estavam cravados, e com a compleição enrugada e lábios pretos retos" (p. 65). Desprezada, a criatura desaparece. Seis anos depois, de volta a Genebra, após concluir suas experiências, Victor é recebido com a notícia do assassinato de William, pelo qual a agregada Justine é acusada. Mas, o que no início era desconfiança, passa a ser certeza: Victor sabe que o responsável pelo crime é o ser por ele criado... E, no entanto, não pode denunciá-lo, porque ninguém acreditaria numa história tão inverossímil, e porque denunciá-lo, caso acreditassem, seria denunciar-se também... Justine é julgada e condenada à morte - e começa então para o protagonista uma época de culpa e autopunição. Um dia, passeando pelas escarpas das montanhas suíças, Victor se depara com o monstro e fica sabendo de seus infortúnios: inicialmente aberto ao amor e à compaixão, é por todos afugentado pro causa de suas deformidades. E, pouco a pouco, o seu desejo de enlaçar-se com os outros seres humanos torna-se "rancor e amargura" (p. 148) e transforma-se em ódio pela maldição eterna a que está condenado e desejo de vingança contra seu criador. Por isso, ele mata o irmão caçula de Victor e incrimina uma pessoa inocente. O monstro faz uma proposta a Victor: caso ele crie uma fêmea para lhe servir de companhia, promete renunciar para sempre ao convívio humano. Victor aceita a proposta e parte, primeiro para Londres, junto com o amigo Henry Clerval, depois sozinho para um canto perdido da Escócia. Numa cabana nas Ilhas Órcades, ele se prepara para criar a fêmea, mas percebe o risco que a Humanidade corre, caso o monstro não cumpra sua palavra. E então desafia a criatura, recusando-se a a continuar sua ação. O monstro promete vingar-se e mata seu amigo Clerval. Após um longo período doente, Victor volta para Genebra e se casa com Elizabeth. Mas, claro, o monstro mata a sua amada no dia das núpcias. Tomado de horror e de cólera, Victor, após acompanhar a agonia do pai, que sucumbe ao desgosto, toma a sia a tarefa de exterminar a sua criação. O monstro foge para o Oceano Ártico, sempre com Victor em seu encalço - a vida de um encontra-se para sempre atrelada à vida do outro... Victor acaba falecendo e o monstro desaparece na imensidão gelada... É uma história de punição para aqueles que se arvoram a deuses - narrativa sobre os fantasmas que nos perseguem, nos sufocam, nos matam...
 


AVALIAÇÃO: OBRA-PRIMA

(Setembro, 2020)

domingo, 13 de setembro de 2020

 Manon Lescault (1731)

Abbé Prevost (1697-1793) - FRANÇA

Tradução: Annie Dymetman

São Paulo: Ícone, 1987, 132 páginas




Este é um romance "amoral" - aliás, como é "amoral" a nossa época. O protagonista, Cavalheiro Des Grieux, é um aristocrata, cuja noção de bem e mal não está submetida a princípios universais, mas a interesses de sua classe. Trata-se de um personagem que a mim provoca antipatia e enfastio, um homem mimado que não mede esforços para ver satisfeitos seus desejos, no caso, o amor - absolutamente doentio - por Manon Lescault, ela própria uma personagem frívola, vulgar e egocêntrica. O "Autor" encontra, em Passy, o narrador da história, este Cavalheiro Des Grieux, que acompanha uma diligência que leva prostitutas para o porto de Havre para serem deportadas para a América Francesa (hoje, Louisiana). O "Autor" se condói com a situação de penúria e desespero em que se encontra o narrador, que relata que, naquela comitiva, vai o amor de sua vida, Manon Lescault. Dois anos depois, ele reencontra esse mesmo personagem, em Calais, que acaba de desembarcar de Nova Orleans, sem dinheiro, e convida-o a almoçar. Então, o Cavalheiro des Grieux conta-lhe toda a sua trágica história com Manon Lescault. Ele estava em Amiens, terminando seus estudos de filosofia, quando conheceu Manon Lescault, pronta para entrar para a vida religiosa. Eles se apaixonam perdidamente e resolvem fugir para Paris. Lá, ela se torna sua amante e mostra-se uma mulher caprichosa, inconstante e infiel, uma mulher para quem o mais importante era desfrutar dos prazeres que o dinheiro oferece. Poucos meses após estarem vivendo em Paris, ela, percebendo a dificuldade do amante de conseguir dinheiro para sustentá-la, aceita a oferta do Senhor de B. , e abandona Des Grieux e até mesmo ajuda o novo amante a se livrar do antigo. Des Grieux voltar para casa, e, após um período em que é mantido sob vigília, aceita entrar para um seminário, em Paris. Lá, ele reencontra Manon Lescault e foge com ela. Com a ajuda do irmão da amante, ele entra para uma irmandade de jogadores de cartas que vivem de ludibriar os incautos, até Manon se interessar por outro amante, agora o velho Senhor G. de M. Manon, Des Grieux e o cunhado armam uma cilada para roubar o Senhor G. de M., mas são descobertos e vão presos, Manon no Hospital, Des Grieux em Saint Lazare. Após algumas peripécias, Des Grieux consegue acesso a uma arma e com ela foge da prisão, matando um vigia, e consegue ainda libertar Manon, com a ajuda do Senhor de T. Esse novo personagem é amigo do filho do Senhor G. de M., que por sua vez vai se interessar por Manon, e ela por ele. Manon, Des Grieux e o cunhado resolvem dar um novo golpe, mas falham - o cunhado é morto, Des Grieux é preso em Petit Chatelet e Manon é condenada à deportação para a América Francesa. Como é aristocrata - e aos aristocratas tudo se perdoa -, o pai de Des Grieux convence o Senhor G. de M. a perdoar o filho - afinal, os malfeitos que ele praticou são coisas da juventude - e assim é feito. Mas Des Grieux, tomado de paixão por Manon, não a abandona. Segue com ela para Louisiana. Lá, eles desembarcam como um casal, mas após algum tempo, Des Grieux confessa ao governador local que eles são amantes e que querem se casar legalmente. Diante do novo estatuto de Manon, o governador informa a Des Grieux que sua amante seria entregue ao filho, Synnelet, como uma mercadoria... Des Grieux não aceita, duela com o filho do governador e, pensando que o matou, foge com Manon para a pradaria, onde ela morre. O governador, após saber que Des Grieux agira como um cavalheiro no duelo contra o filho, que, afinal, não morreu, perdoa-o e ele volta para a França, para assumir a herança familiar a que tinha direito com a morte do pai. Se são inverossímeis algumas passagens, não o são o caráter dos protagonistas. Des Grieux é um irresponsável que não sente culpa alguma em relação a seus diversos crimes - incluindo o de assassinato -, enquanto Manon não lamenta, de verdade, em momento algum seu comportamento errático. É um ótimo retrato de uma época em que os ricos viviam na sociedade acima de suas leis... Muito parecido com nossos tempos, de corrupção, obscurantismo e desregramento... O cinismo de Des Grieux pode ser resumido neste trecho: "Como depois de tudo, não houvesse nada em meu comportamento que pudesse me desonrar, pelo menos comparando-o com o dos jovens de nível, e que uma amante não é uma infâmia no século em que vivemos, nem mesmo um pouco de astúcia para atrair a sorte no jogo, sinceramente dei a meu pai os detalhes da vida que eu levara. A cada erro que eu lhe confessava, tinha o cuidado de acrescentar exemplos famosos para diminuir a minha vergonha" (p. 107). O livro tem bastante problemas de revisão e o mais irritante deles é tratar Saint-Sulpice como Saint Suplice... um verdadeiro suplício...




AVALIAÇÃO: MUITO BOM

(Setembro, 2020)




terça-feira, 8 de setembro de 2020

A chuva imóvel  (1963)
Campos de Carvalho (1916-1998) BRASIL         
    Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, 104 páginas





Talvez seja a única narrativa do Autor que possua um fiapo de enredo, ainda que isso não tenha a menor importância para a economia do texto. André tem uma irmã gêmea, Andréa, por quem nutre uma atração erótica que é claramente um sintoma de autoimolação... Ele estava sendo criado para ser "alguém" na vida, para seguir a carreira diplomática, por sua inteligência e modos civilizados, um verdadeiro Medeiros da velha cepa. Mas a morte do irmão, que optou por rebelar-se contra a farsa de uma família aristocrática decadente e tornou-se mensageiro do Correio, sempre em cima de sua bicicleta, acaba por mostrar a André a inutilidade das convenções sociais. Ele então torna-se arquivista onde o marido de Andréa é chefe, e pouco a pouco vai enlouquecendo. Essa, aliás, é a trilha perseguida pelo Autor, a loucura como única forma possível de enfrentar um mundo sem qualquer sentido, como diz o narrador: "ESTE ANO NÃO HAVERÁ PRIMAVERA; nem este ano nem em nenhum outro, enquanto houver Auschwitz ou Little Rock*" (p. 33). Mas, aqui, não há saída: ao protagonista só resta vingar-se através do suicídio.



* Cidade que se tornou símbolo do movimento anti-racista estadunidense.



 Avaliação: BOM 

(Setembro, 2020)

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Vagamundo (1973)
Eduardo Galeano (1940-2015) - URUGUAI         
Tradução: Eric Nepomuceno                  
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, 95 páginas




Essa coletânea reúne 24 contos, a maioria deles curtíssimos, que têm como paisagem comum as diversas tragédias da América Latina. O Autor percorre, com bastante segurança, a realidade de países bastante distintos, oferecendo histórias que, em geral, trazem como pano de fundo a desigualdade social existente por aqui, e uma esperança - típica dos anos 1970 e 1980 - na luta armada como solução política. Além disso, o Autor não esconde - ou pelo menos não esconde o suficiente - uma cosmovisão lírica (ou poderíamos mesmo dizer romântica), que, muitas das vezes, intoxica os relatos com um uma exagerada dose de pieguice... Mas, quando supera esse problema, alcança voos altíssimos, como em pelo menos dois contos, "Conto um conto de Babalu" e "A cidade como um tigre", nos quais encontramos, em perfeito equilíbrio, a crença numa ideia e desconstrução dessa ideia, aquele momento em que a destinação individual esbarra com o projeto coletivo... Há um outro conto, que estaria no mesmo nível dos supracitados, "Ter duas pernas me parece pouco", narrativa que acompanha um uruguaio a cavalo pelos pampas buscando ultrapassar a fronteira com o Brasil, uma linda história de liberdade, que o Autor transforma, no final, numa estúpida anedota... 


 Avaliação: BOM

(Setembro, 2020)

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

A peste (1947)
Albert Camus (1913-1960) FRANÇA         
Tradução: Valerie Rumjanek                  
Rio de Janeiro: Record, s/d, 213 páginas





Este livro é a prova inconteste de que boa literatura é aquela que ultrapassa as barreiras de espaço, tempo e língua... Se o leitor procura um "depoimento" vivo sobre essa pandemia que assola o mundo e tem nos colocado nos limites da sobrevivência individual e coletiva é só abrir as páginas deste romance... escrito e publicado há mais de 70 anos... Em suas páginas, nos deparamos com a chegada da peste, vista ainda com ceticismo e desconfiança; sua instalação, primeiro nos bairros pobres periféricos, depois de maneira generalizada; a quarentena a que é submetida a população e suas tentativas de quebrá-la; a dissolução da economia e das finanças; o colapso dos hospitais e cemitérios; a sensação de impotência que pouco a pouco transforma a contestação em conformismo; a busca pela religião e depois sua recusa; o trabalho exaustivo e quase inútil de médicos, enfermeiros e voluntários; a solidariedade na desgraça... E, por fim, a certeza de que tudo aquilo um dia estará de volta, pois a peste, ainda que desapareça como surgiu, do nada, mantém-se à espreita: "(...) ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada", porque "viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz" (p. 213). Com um realismo quase documental - narrado por um personagem neutro, que depois se revela como o médico Bernard Rieux -, o Autor encontrou um solução formal perfeita para levar a cabo essa história feita de medo, derrotas e sofrimento, mas também de heroísmo e esperança, não heroísmo e esperança banais, mas aqueles sentimentos que brotam nos homens que estão na Terra não para ser parte do bando, mas para diferenciar-se dele, mesmo que anonimamente. E se o livro tematiza a peste - um misto de peste bubônica e pneumônica -, metaforicamente é um alerta contra todas as formas de dizimação, sejam elas provocadas por micróbios, sejam elas impostas pelo obscurantismo ideológico... Infelizmente, hoje, o Brasil encontra-se assolado por ambas, o covid-19 e o bolsonarismo... O que torna mais urgente a leitura e reflexão deste livro...




Entre aspas:

"(...) um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação". (pág. 31)

"As pessoas cansam-se da piedade, quando a piedade é inútil". (pág. 66)

"O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade". (pág. 93)

"(...) nada é menos espetacular que um flagelo e, pela sua própria duração, as grandes desgraças são monótonas. Na lembrança dos sobreviventes, os dias terríveis da peste não surgem como grandes chamas intermináveis e cruéis e sim como um interminável tropel que tudo esmaga à sua passagem". (pág. 126)



Curiosidade: 

1) À pag. 42, encontramos o seguinte parágrafo: "Grand  chegara a assistir a uma cena curiosa com a vendedora de tabaco. No meio de uma conversa animada, ela falara de uma prisão recente que alvoraçava Argel. Tratava-se de um jovem que matara um árabe na praia". Na verdade, é uma clara referência ao núcleo temático de outro romance do autor, O estrangeiro, publicado em 1942...

2) Inexplicavelmente, o nome da tradutora, Valerie Rumjanek, aparece como Valery Rumjanek, que seria um homem... Esse é apenas o mais grave dos vários problemas de revisão com que nos deparamos no livro...




 Avaliação: MUITO BOM

(Setembro, 2020)