sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A paz dura pouco (1960)
Chinua Achebe (1930-2003- NIGÉRIA 
Tradução: Rubens Figueiredo      
São Paulo: Companhia das Letras, 2013, 194 páginas



Corre o ano de 1956. Obi Okonkwo, 25 anos, está de volta à Nigéria, após quatro anos estudando Inglês em Londres, financiado pela União Progressista de Umuofia, "vilarejo de língua ibo na Nigéria Oriental" (p. 13), cidade-natal do protagonista. Obi - de nome completo Obiajulu, "a mente afinal em repouso" (p. 15), criado no anglicanismo - é o primeiro cidadão de sua aldeia, situada a 800 quilômetros de Lagos, a capital, a conseguir um "'cargo europeu' no serviço público" (p. 16), ou seja, a tornar-se um funcionário civil de primeira classe, o que "basta para  alçar um homem das massas para a elite" (p. 109), dando-lhe direito a apartamento funcional, adiantamento para a compra de um carro e salário mensal de 47,10 libras, valor equivalente ao que seus concidadãos levavam até um ano para ganhar. Entusiasmado com as perspectivas futuras e cheio de ideias progressistas, Obi luta para tornar-se uma cidadão exemplar, objetivando contrariar a visão dos colonizadores ingleses, que achavam que os africanos "ao longo de muitos séculos, foram vítimas do pior clima do mundo e de todas as doenças imagináveis", o que os deixou "moral e fisicamente solapados" (p. 12). Instalado no escritório da Comissão de Bolsas de Estudo, Obi tenta sobreviver com o pouco que lhe sobra após pagar a cota da dívida para com a União Progressista de Umuofia (20 libras) e a mandar dinheiro para os pais (10 libras). Pouco a pouco chegam as cobranças pelo seguro do carro, as cotas referentes ao imposto de renda, as novas despesas contraídas para manter as aparências de sujeito bem-sucedido... Para piorar, Obi descobre que sua família interpõe-se de maneira irredutível ao casamento com Clara Okeke, por conta de uma maldição que pesa sobre os Okeke, e aumenta ainda mais as dívidas para pagar seu aborto. Cada vez mais enredado, Obi Okonkwo acaba aceitando subornos, tanto em dinheiro quanto em sexo, inicialmente para resgatar débitos, depois por hábito, até ser afinal pego em flagrante delito... Maravilhoso romance sobre como a realidade dos países periféricos, submetidos à miséria e aos maus políticos, arrastam até os mais bem intencionados... Ou, usando as palavras do próprio protagonista: “A tragédia de verdade nunca se resolve. Prossegue para sempre sem esperança. A tragédia convencional é muito fácil. O herói morre e nós nos sentimos purgados de nossas emoções. Uma tragédia de verdade se passa numa esquina, num local sujo (...). O resto do mundo não tem consciência daquilo. (...) Não existe purgação das emoções para nós, porque não estamos lá" (p. 51-52).

 (Novembro, 2018)

Avaliação: OBRA-PRIMA
















terça-feira, 13 de novembro de 2018

Mar de histórias - 9º volume 
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai (org.)         
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, 391 páginas 



Este volume, intitulado "Tempo de crise", revela 23 contos de 20 autores, incluindo o ótimo "Camunhegue", do brasileiro Valdomiro Silveira (1873-1941), infelizmente engolfado entre os chamados "pré-modernistas", conceito preguiçoso,  que não quer dizer absolutamente nada... Os destaques vão para o sempre excelente autor irlandês James Joyce (1882-1941), aqui representado pelo magnífico "Compensações"; a pequena obra-prima, ao mesmo tempo de humor e terror, "A porta aberta", do inglês Saki (1870-1916); e mais outras três obras-primas: "Num bosque", do japonês Ryonusuke Akutagawa (1892-1927), "Por causa dos dólares", do polonês, que escrevia em inglês , Joseph Conrad (1857-1924), e "A tragédia de um personagem", do italiano Luigi Pirandello (1867-1936). Bons também "O homem de Cabul", do indiano Rabindranath Tagore (1861-1941), "A viagem a Tilsit", do alemão Hermann Sudermann (1857-1928), "O trinchante", do francês Valery Larbaud (1881-1957) e "Um episódio do lago de Genebra", do austríaco Stefan Zweig (1881-1942). Isso mostra que, embora os tempos fossem realmente de crise (o livro aborda o  período compreendido entre 1913 e 1919, ou seja, plena Grande Guerra), ainda havia escritores que tinham o que dizer a respeito do mundo. Não teriam voz, no entanto, os que pereceram nos campos de batalha daquele que talvez tenha sido um dos mais insanos episódios da história da Humanidade - e que eram jovens entre 1913 e 1919...



(Novembro, 2018)


Avaliação: MUITO BOM

domingo, 11 de novembro de 2018

A falência (1901)
Júlia Lopes de Almeida (1862-1934- BRASIL                     
Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/Edunisc, 2003, 374 páginas



A ação se passa em 1891, ano “em que o preço do café assumira proporções extraordinárias” (p. 31), logo após a implantação da República, época também das grandes especulações financeiras na Bolsa de Valores, período conhecido como Encilhamento. Francisco Teodoro, imigrante chegado ainda criança de Portugal, “sem bagagem” (p. 34), “quase analfabeto, com a cabeça raspada, a jaqueta russa e os sapatões barulhentos” (p. 41), alcança fortuna, dono de uma das casas “mais graúdas no comércio de café” (p. 29) no Rio de Janeiro. Com “um belo ar de burguês satisfeito” (p. 30), mora com a família numa mansão na praia de Botafogo, “em que as roupas, as comidas e as bebidas atafulhavam os armários e a despensa até a brutalidade” (p. 209). A mulher, Camila, filha de “gente pobre, mas de educação” (p. 45), vive para festas e para o amante, o doutor Gervásio, um médico rico que não precisa exercer a profissão. O filho mais velho, Mário, sabendo do caso extraconjugal da mãe, vinga-se, gastando dinheiro com mulheres e farras, indignado com o comportamento de Camila e com a cegueira do pai, único entre todos a não desconfiar do adultério. Há ainda a filha Ruth, violinista sensível e talentosa, as irmãs gêmeas Lia e Rachel, a sobrinha Nina, filha de um irmão de Camila, e a empregada Noca, espécie de faz-tudo. Pouco a pouco, Francisco Teodoro envolve-se com especulações sobre o preço do café até que, falido, mata-se, envergonhado por não conseguir manter seu sonho de “ser o primeiro negociante, o mais hábil, o mais forte” (p. 33). Assim, empobrecida, a família muda-se para uma pequena casa no subúrbio, que Francisco Teodoro havia doado para o futuro incerto de Nina, longe dos antigos amigos e abandonados até mesmo por Mário, agora casado com a nobre e rica Paquita, “arzinho enfadado de loura anêmica”, (p. 184). Noca, Nina e Ruth começam a trabalhar para compor o orçamento doméstico, enquanto Camila descobre decepcionada que o amante havia lhe mentido todo o tempo, pois, casado, havia deixado a mulher por ela ter cometido adultério... Romance fluido, escrito na terceira pessoa, o que deixa a narradora à vontade para comentar o que vai na consciência dos personagens, é uma crítica acerba a respeito da desigualdade social – “Que direito teriam uns a todas as primícias e regalos da vida, se havia outros que nem por uma nesga viam a felicidade?” (p. 238), pergunta-se Ruth -, do trabalho como instrumento de emancipação do ser humano e do papel da mulher na sociedade. A opressão de Camila se dá tanto pelo marido, João Teodoro – “A mulher nasceu para mãe de família. O lar é o seu altar; deslocada dele não vale nada!” (p. 81);  “não quis casar com mulher sabichona. É nas medíocres que se encontram as esposas” (p. 132), ele pensa –, quanto pelo amante, Gervásio, um sujeito arrogante e superficial, que faz de Camila “obra sua”, pois ele a transforma, mudando-a “ao influxo de seus gostos, da sua convivência e do seu espírito” (p. 75). O romance também denuncia, de forma veemente, a violência doméstica contra as mulheres, sejam ricas como D. Joana, uma das tias de Camila, viúva de um colchoeiro, “de quem sofrera os maus tratos que, na inconsciência das bebedeiras, ele lhe ministrava” (p. 61); ou como a mãe do Capitão Rino, “morta a facada pelo pai, como adúltera” (p. 196); sejam miseráveis como Sancha, a empregada que ironicamente apanha todos os dias de D. Joana, com a conivência indiferente da outra tia, D. Etelvina. A narradora passeia com absoluta competência tanto pelas mansões e armazéns do cais do porto, quanto pelas favelas nascentes (“Era o resto de uma cidade, tomada de assalto por gente expatriada, resignada a tudo: ao pão duro e à sombra de qualquer telha barata. Uma pobreza avarenta aquela, que formigava por toda a encosta de lajedos brutos, entre ratazanas e águas servidas” (p. 101)). Com competência, ela consegue, até mesmo, formular um diagnóstico bastante preciso do que o país iria se tornar: “A pulsação do seu sangue alvoraçado dava-lhe [ a João Teodoro] a percepção fantástica de que o Brasil seria arrastado vertiginosamente pela maldade de uns, a ignorância de outros e a ambição de todos, em voragens abertas pela política amaldiçoada” (p. 312).


(Novembro, 2018)



Avaliação: MUITO BOM

Entre aspas: 



“Qual é a mulher, por mais estúpida, ou mais indiferente, que não adivinhe, que não sinta o adultério do marido no próprio dia em que ele é cometido? Há sempre um vestígio da outra, que se mostra em um gesto,, em um perfume, em uma palavra, em um carinho... Eles traem-se com as compensações que nos trazem...”. (p. 72)



“Os senhores romancistas não perdoam às mulheres; fazem-nas responsáveis por tudo – como se não pagássemos cara a felicidade que fruímos! Nesses livros tenho sempre medo do fim; revolto-me contra os castigos que eles infligem às nossas culpas, e desespero-me por não poder gritar-lhe: hipócritas! Hipócritas”. (p. 71-72)




domingo, 4 de novembro de 2018

A saga de Gösta Berling (1891)
Selma Lagerlöf (1858-1940- SUÉCIA                    
Tradução: Inga e Miguel Gullander     
Lisboa: Cavalo de Ferro, 2017, 405 páginas





Romance anacrônico, que usa de procedimentos pré-românticos para contar, não a saga do protagonista Gösta Berling, "jovem, alto, magro e extraordinariamente belo" (p. 9), mas sim para evocar personagens e paisagens de uma região específica da Suécia, a chamada Värmland, e de uma época específica, "por volta de 1820" (p. 9). E a autora assim procede intercalando algumas aventuras de Gösta Berling, que beiram ao inverossímil, por conta de seu irresistível poder de sedução das mulheres, com episódios que lançam luzes sobre os personagens secundários que orbitam em torno dele. Berling, sacerdote* rejeitado pela Igreja, cujo mal foi ter recebido "amor em demasia": -"Mulheres e homens têm-te amado. Bastava brincares e rires, cantares ou fazeres música, e toda gente te perdoava tudo" (p. 387) -, é uma espécie de super-herói, que aos trinta anos, "cavalheiro dos cavalheiros", é "só por si, (...) melhor orador, cantor, músico, caçador, beberrão e jogador que todos os outros juntos" (p. 35). O livro é uma declaração de amor à terra natal da autora, um lugar onde a natureza, "dominada por forças invisíveis, que odeiam o homem" (p. 103), pede para ser dominada.


* É curioso que os tradutores nomeiem como padres os pastores da igreja protestante...


(Novembro, 2018)


Avaliação: BOM

Entre aspas: 


"(...) a vida é difícil para os potros que não suportam nem as esporas nem o chicote" (pág. 16)

"Acontece, frequentemente, os homens tornarem-se cruéis, atormentando o próximo, porque temem pelas suas próprias almas" (pág. 88)

"Quem compreende, não odeia" (pág. 118)

"O coração inquieto perde sempre. Torna, sempre, ainda pior o mal" (pág. 178)