segunda-feira, 19 de julho de 2021

  Um ano sobre o altiplano (1938)

Emilio Lussu (1890-1975) - ITÁLIA

Tradução: Ugo Giorgetti     

São Paulo: Mundaréu, 2014, 206 páginas



Trata-se de uma narrativa de não-ficção, relato de um ano (1916-1917) no front dos Alpes, na fronteira entre a Itália e o Império Austro-Húngaro, durante a I Guerra Mundial. O Autor, oficial do exército, conta, de forma bastante sugestiva, o que foi combater nas montanhas, entrincheirado, com raras oportunidades de descanso. O livro nos enovela naquela triste vida sem expectativa, nem de ganhar a guerra - por conta de questões logísticas, afinal lutava-se mais para manter território do que para avançar sobre o inimigo -, nem de voltar à normalidade, algo que parecia, naqueles tempos, totalmente fora de propósito. Com um olhar atento e prenhe de humanidade, o Autor mostra, sem julgar, os despropósitos dos comandantes, enlouquecidos pela ideia de heroísmo, e o ceticismo dos soldados, agarrados à sobrevivência a todo custo. Há personagens memoráveis, como o ensandecido general Leone, o comunista tenente Ottolenghi, o homicida major Malchiorri, morto por seu próprio pelotão, o apaixonado tenente Avellini... E também situações impressionantes, como a deserção do soldado Marassi, o motim dos soldados pedindo o fim da guerra, a perda da razão do coronel Abbati, a despedida dos pais do Autor, durante uma rápida folga... Um livro magnífico sobre um tema terrível...


Avaliação: MUITO BOM

(Julho, 2021)

 

terça-feira, 13 de julho de 2021

Os quatro cavaleiros 

do Apocalipse (1916)

Vicente Blasco-Ibáñez (1867-1928) - ESPANHA

Tradução: Arsénio Mota     

São Paulo: Abril Cultural, 1985, 371 páginas



Muito mais que o enredo - uma família, os Desnoyers, envolvida nos primórdios da Primeira Guerra Mundial -, o que impressiona neste livro são as observações quase proféticas sobre o conflito em si e seus desdobramentos. Escrito no calor da luta, literalmente, e publicado com a conflagração ainda pela metade, o narrador anota, contrariando os prognósticos de que aquela seria a guerra para acabar com todas as guerras: "A Besta nunca morre. É a eterna companheira dos homens. Esconde-se, jorrando sangue, durante quarenta anos... sessenta... um século; mas reaparece" (p. 320). Pacifista, Marcel Desnoyers fugira da França em 1870, às primeiras notícias da guerra franco-prussiana, indo parar na Argentina. Lá, levou vida aventureira, imaginando enriquecer, sem o conseguir, até cair nas graças do latifundiário Julio Madariaga, que se tornara milionário apossando-se de terras indígenas para transformar em pasto para o gado, e, por sua fabulosa fortuna, era conhecido até mesmo em Buenos Aires. Madariaga tinha duas filhas, Luisa e Elena. Marcel Desnoyers, com o tempo, ganha a confiança de don Madariaga, a ponto de se casar com Luisa. A outra filha, Elena, foge com o alemão Karl Hartrott, que auxiliava na contabilidade, sendo mais tarde aceita de volta, mas nunca o casal conquista o coração do pai. Após a morte de don Madariaga, Karl e Elena vendem a parte deles dos negócios e mudam-se com os filhos para a Alemanha. Marcel prefere manter-se na fazenda, mas acaba mudando para Buenos Aires, cedendo aos pedidos de Chichí, a filha, e também aos desejos da mãe de estar mais perto do filho, também Julio, como o avô, que fora estudar na capital e levava vida devassa e perdulária. Em seguida, acaba manifestando vontade de regressar ao seu país natal e compra uma mansão na avenida Victor Hugo, em Paris, e um castelo na Champagne, às margens do rio Marne. Em Paris, Luisa visita igrejas, Marcel se enturma com a burguesia local, Chichí vive uma vida de futilidade com suas amigas adolescentes e Julio, num estúdio, finge ser pintor, na companhia de um parasita espanhol, Argensola. Então, explode a guerra. A família, inicialmente, se coloca numa posição de indiferença, afinal, não se considerava diretamente envolvida com o conflito, por se sentirem mais argentinos que franceses (mesmo Marcel). Mas, à medida em que os combates se tornam mais acirrados, todos, de alguma forma, sentem necessidade de participar - à exceção de Argensola, que passará todo o tempo usufruindo dos prazeres que a cidade ainda oferecerá, mesmo em tempos de exceção. Luisa se dilacera com a situação da irmã, cujo marido, filhos e parentes combatem pelo lado dos alemães, e também com sua própria situação, quando Julio se conscientiza da importância de entrar em combate, e quando Chichí se apaixona por René Lacour, que também parte para o front. No final, René regressa sem uma mão, sem um olho e manquejando de uma perna, mas vivo; enquanto, Julio morre em combate, assim como a maioria dos filhos e parentes de Elena... A guerra não tem ganhadores, só perdedores, parece assinalar o Autor... 



Entre aspas:


"A Humanidade habitua-se facilmente à infelicidade (...) desde que a infelicidade se prolongue" (pág. 314)

  


Avaliação: MUITO BOM

(Julho, 2021)


segunda-feira, 5 de julho de 2021

  50 contos e 3 novelas 

Sérgio Sant'Anna (1941-2020) BRASIL  

São Paulo: Companhia das Letras, 2007, 618 páginas


Esta coletânea reúne seis livros do Autor, compreendendo parte de sua produção publicada de 1973 a 2003, entre contos e novelas (que, na minha opinião, são apenas contos longos...). O que mais impressiona no Autor não é a diversidade de assuntos - porque, na verdade, ele é quase monotemático -, mas a originalidade com que os trata. Na verdade, o Autor inventa um quase gênero  - "sempre gostei de escrever minhas histórias como se elas se passassem num palco. Ou mesmo um teatro de marionetes" (p. 229) - que mistura, com maestria, ficção e ensaio - um ensaio ficcional ou uma ficção ensaística -, não à maneira do argentino Jorge Luís Borges (1899-1986), que se alimenta da própria ficção, mas à sua própria maneira, "que poderia fazer de uma reles aula uma obra de arte" (p. 308). Outra coisa que chama a atenção é a a excepcional qualidade de seus textos - que se mantêm em altíssimo nível, desde os primeiros trabalhos até os últimos -, algo raro na carreira de qualquer escritor, composta em geral por altos e baixos. O leitor percebe que o Autor - essa entidade abstrata, que se realiza ou se define como voz identificável - já está maduro nos contos de Notas de Manfredo Rangel, repórter, de 1973. O que ele faz, ao longo dos outros livros, é se depurar, não como alguns que transformam estilo em maneira ou fórmula, e passam a vida plagiando a si mesmos, mas como alguém que consegue ampliar, a cada livro, as suas descobertas. Por isso, não vou destacar um conto ou outro, pois fazer isso seria contraditar o que acabo de dizer - mas vou apenas chamar a atenção para um detalhe, que ilustra à perfeição o que quero iluminar. O Autor toma um tema pouco explorado na literatura brasileira, o futebol, e com ele constrói duas obras-primas da narrativa curta: "No último minuto", do primeiro livro, já referido, e "Na boca do túnel", de O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de 1982. Apaixonado por futebol, o Autor compreendeu as possibilidades dramáticas do esporte, e ainda perpetrou dois outros contos maravilhosos, "Páginas sem glória", do livro homônimo, publicado em 2012, e "O torcedor e a bailarina", de O homem-mulher, de 2014 - que não estão, claro, nesta coletânea. O Autor é um desses clássicos que permanecerão como leitura prazerosa e instigante ao longo da História.



Avaliação: MUITO BOM

(Julho, 2021)