quarta-feira, 31 de julho de 2019

Contos clássicos de terror 
Seleção e apresentação: Julio Jeha
Tradução: Vários     
São Paulo: Companhia das Letras, 2018, 406 páginas
Recolha de 19 contos, abarcando desde uma autora francesa da primeira metade do século XIX, George Sand (1804-1876), até um autor contemporâneo, o norte-americano Stephen King (1847), e incluindo cinco brasileiros, o que é incomum neste tipo de coletânea (Machado de Assis, Coelho Neto, João do Rio, Humberto de Campos e Lygia Fagundes Telles). Gênero de difícil consecução, no meu entendimento, a escolha do Organizador acaba apostando em alguns textos que, pela sua qualidade, encontram-se presentes na maioria das antologias dedicadas ao tema, como os excelentes "O barril de amontillado", do norte-americano Edgar Allan Poe (1909-1949), "A tortura pela esperança", do francês Villiers de L'Isle Adam (1828-1889) e "A mão do macaco", do inglês W.W. Jacobs (1863-1943). Também muito bons, e que aparecem como apostas do Organizador, os contos dos também sempre antologiáveis H.G. Wells (1866-1946), com "Pollock e o homem de Porroh", e Shirley Jackson (1916-1965), com o surpreendente "A loteria", o primeiro inglês, a segunda norte-americana. Dos outros autores, destacaria o escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), com "O ladrão de corpos", e o polonês-inglês Joseph Conrad (1857-1924), com "A fera", imprescindíveis, mesmo não estando no melhor de suas formas. Não consigo gostar, definitivamente, de H.P. Lovecraft (1890-1937) nem de Stephen King, leitura ingênua para adolescentes impressionáveis... Me detenho agora um pouco nos brasileiros. Machado de Assis (1836-1908), não me canso de dizer, um dos maiores autores da literatura universal, comparece com o excelente "A causa secreta". Os contos de Coelho Neto (1864-1934) e de Humberto de Campos (1886-1934) são fraquíssimos - o primeiro, inverossímil, com sua linguagem tortuosa, é cheio de contradições, enquanto o segundo é somente tolo. Quanto aos contos de João do Rio (1881-1921) e de Lygia Fagundes Telles (1923) são bons... se conhecidos isoladamente... É estranho, porque nunca havia me dado conta disso. "Emoções", de João do Rio, é uma paráfrase de "A causa secreta"... e lido assim, logo após o outro, a similitude salta aos olhos... Assim como o conto da maravilhosa Lygia Fagundes Telles, na minha opinião a melhor escritora brasileira, "Venha ver o por do sol" é uma emulação de "O barril de amontillado"...




Observações:


1) Eu tenho o maior respeito pela tradução e pelos tradutores. Sem eles, estaríamos fadados a conhecer uma parte ínfima da literatura universal. Por isso, o comentário que faço aqui, a respeito de um dos textos traduzidos, advém mais de uma observação de quem compreende a dificuldade do ofício, que propriamente uma crítica. Um dos contos, "A selvagem", do britânico Bram Stoker (1847-1912), tem, a meu ver, uma questão de difícil solução. Há um contraste, explorado no original, entre a fala do narrador e do casal de protagonistas, que usam o inglês britânico, e o personagem norte-americano. A tradutora, Sônia Moreira, tentou contrastar as diferenças em português usando termos regionais ("piá", por exemplo, na p.152, para se referir a criança) e impôs um ritmo mais jovial à narrativa. O resultado, no meu entender, é desastroso, pois fica estranhíssimo ler um texto do século XIX numa linguagem do século XXI e ainda eivado de termos próprios ao gauchês... 

2) Incompreensível a falta de notas biobibliográficas. Alguém, que, ao fim da leitura, quiser saber algo a respeito dos autores e dos textos, nada encontra no volume...

Avaliação: BOM


(Julho, 2019)

sexta-feira, 26 de julho de 2019

O dia da coruja (1961)
Leonardo Sciascia (1921-1989) ITÁLIA 
Tradução de Solange Lima Caribé da Rocha    
Rio de Janeiro / São Paulo: Fontana / Istituto Italiano di Cultura. 1981, 108 páginas





O autor constrói uma narrativa absorvente, usando o gênero policial para denunciar o profundo comprometimento da política italiana com a máfia. Numa pequena aldeia da Sicília, Salvatore Colasberna, um pequeno empreiteiro, é assassinado a tiros de fuzil, quando tomava um ônibus para Palermo. No mesmo dia, o podador Paolo Nicolosi desaparece. O capitão Bellodi, comandante da companhia dos carabineiros, emiliano de Parma, norte da Itália, é encarregado de desvendar o crime. Pouco a pouco, Bellodi descobre que Colasberna foi morto por se recusar a pagar propina para o mafioso local, dom Mariano Arena. E que Nicolosi morreu por ter, por acaso, reconhecido o assassino, um tal de Diego Marchica, conhecido delinquente, que recebeu 300 mil liras pelo trabalho. O contratador de Marchica, Rosario Pizzuco, encarregou-se de dar um fim em Nicolosi. Bellodi conduz brilhantemente o inquérito e arrola os três como responsáveis pelo dois assassinatos. Mas dom Mariano Arena tem relações com o deputado Livigni, que, por sua vez, é ligado ao ministro Mancuso... No final, testemunhas garantem que no dia do crime Marchica encontrava-se a mais de 70 quilômetros do local; e que a polícia havia reaberto o inquérito e tudo indicava que Nicolosi teria sido morto num conluio entre sua mulher e o amante dela... É uma história que poderia ter sido escrita sobre o Brasil contemporâneo...





Observações:

1) A capa que aparece acima não é da edição lida, pois não encontrei imagem da capa original.
2) A leitura da edição é muito prejudicada pela péssima diagramação.


Entra aspas :

"Nada é a morte em confronto com a vergonha." (pág. 20)

"A Igreja [Católica] é grande porque cada qual se encaixa nela a seu modo." (pág. 93)


Avaliação: MUITO BOM


(Julho, 2019)

segunda-feira, 22 de julho de 2019

As aventuras do bom soldado Svejk (1926)
Jaroslav Hasek (1883-1923) - TCHÉQUIA
Tradução de Luís Carlos Cabral   
Rio de Janeiro: Alfaguara, 2014, 682 páginas




Romance episódico, que acompanha as hilárias aventuras do soldado Svejk na Primeira Guerra Mundial, desde sua prisão por alta traição, em Praga, até seu engajamento no exército austro-húngaro, primeiro como ordenança do capelão Otto Katz, bêbado, mulherengo e perdulário, depois como assistente do tenente Lukás, e finalmente como ordenança da 11a Companhia do 91º Regimento que marcha em direção ao front russo. Embora cubra, em suas quase 700 páginas, um curto período de tempo (alguns meses do ano de 1915), não são disparados tiros ao longo do livro, já que a narrativa se encerra exatamente quando as tropas chegam ao palco dos combates. Svejk, um ex-vendedor de cães de raça - na verdade, vira-latas que ele disfarçava em cães de raça - é dado como imbecil pelos médicos do Exército, mas, devido à falta de braços e à desconfiança dos oficiais austríacos em relação aos tchecos, considerados desertores e rebeldes, é incorporado assim mesmo. Ao longo do deslocamento, as observações de Svejk sobre seus companheiros, sobre seus superiores, sobre a própria guerra vão desconstruindo o discurso bélico em defesa da unidade do território sob jugo do Império. Trata-se de um contundente documento pacifista, que mostra a incompetência, a arbitrariedade, a inabilidade e a corrupção do exército austro-húngaro, como explica em dado momento um tenente: "Você rouba seis mil coroas do regimento, enfia-as no próprio bolso e, com uma lógica rigorosa, ordena a todas as cozinhas que reduzam a ração de ervilha em três gramas por cada homem. Em um mês, isso significava noventa gramas por pessoa, e em cada uma das cozinhas da companhia teriam sido economizados, pelo menos, dezesseis quilos de ervilha. O cozinheiro tinha que se virar com o que restava" (p. 490). Além disso, a narrativa expõe a total falta de coesão do exército, já que os vários povos que lutavam sob a bandeira do Império defendiam seus próprios interesses, no mais das vezes em tudo contrários aos interesses da Coroa, como fica evidente, por exemplo, nestes dois trechos: "(...) nós, os austríacos, tanto quanto os alemães ou tchecos, somos bastante anti-húngaros" (p. 357) ou "Quando estiverem no lado russo, não se esqueçam de lhes dizer, em russo: 'Olá, irmãos russos, nós somos seus irmãos tchecos, não somos austríacos!'" (p. 373).  O livro mostra, claramente, a desintegração do Império e o fim de uma era: "Um aparato como aquele só podia existir em um Estado em decadência generalizada, política, econômica e moral" (p. 85). O resultado da chamada "guerra para acabar com todas as guerras", e que não está no livro, foi que uma das maiores e mais insanas carnificinas da história da Humanidade, que redundaria na destruição do Império Austro-Húngaro, na constituição de novos estados nacionais e no estabelecimento de uma paz que duraria exatos 21 anos... E logo a matança generalizada começaria de novo, mas desta vez sob o tacão da irracionalidade absoluta chamada nazi-fascismo.




Observação:

Em geral, a tradução flui muito bem e o leitor se sente recompensado. Até por isso, quando, em alguns poucos momentos, nos deparamos com vocábulos inapropriados, saltam aos olhos a inadequação, como, por exemplo, nessa frase: "'Não me importa xongas seu senhor prefeito do distrito', pensou o médico do estado-maior, etc" (pág. 674).


Curiosidade:

Havia lido, anos atrás, um volume com o título "As aventuras do bravo soldado Schweik", lançado em 1967, pela Civilização Brasileira. Trata-se do mesmo livro, contendo, porém, apenas parte das aventuras.


Avaliação: BOM




(Julho, 2019)

domingo, 7 de julho de 2019

A recompensa do soldado (1926)
William Faulkner (1897-1962) ESTADOS UNIDOS
Tradução de Maria João Freire de Andrade  
Alfragide: Casa das Letras, 2010, 317 páginas





Os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) quase em seu término - embora a presença de suas tropas na Europa tenha sido fundamental para a vitória dos aliados.  Curiosamente, a literatura produzida pelos escritores norte-americanos sobre o tema guarda uma característica singular: em geral, apelam para uma história de amor (mesmo que não correspondida) e então a guerra torna-se apenas pano de fundo. É assim, por exemplo, em Adeus às armas, de Ernest Hemingway (1899-1961), publicado em 1929, e é assim neste livro A recompensa do soldado. O Autor coloca em cena três personagens que se encontram por acaso numa estação de trem: o soldado Joe Gilligan, 32 anos, que, após dar baixa, percorre o país, bêbado e sem rumo; Margaret Powers, 24 anos, viúva, cujo marido morreu nos campos de batalha da Europa; e o jovem tenente da aviação, Donald Mahon, que, cego e inválido, portando uma enorme cicatriz no rosto, está voltando para casa, em Charlestown, cidadezinha do interior da Geórgia. Joe Gilligan e Margaret Powers resolvem acompanhar Mahon, de uma forma voluntarista e algo inverossímil. A narrativa exibe a disputa de três mulheres pelo moribundo Mahon: a fútil e insegura Cecily Saunders, com quem havia se comprometido antes de ir para a guerra; a estranha Emmy, pobre e solitária; e a própria Margaret. Rejeitado por Cecily e por Emmy, Margaret acabará se casando com Mahon, mesmo sabendo que ele morrerá em breve, recusando, assim, as investidas de Joe Gilligan e a oferta de Julian Lowe, outro soldado, que envia para ela cartas apaixonadas a partir de San Francisco. Enterrado Mahon, Margaret Powers parte novamente, sem sabermos para onde e com que propósito. O resumo do livro, Joe Gilligan, na despedida de Margaret, oferece: "(...) sei que você e eu tentamos ajudar a natureza a fazer um bom trabalho com um pobre coitado e não tivemos sorte nenhuma nisso" (p. 301).



Avaliação: BOM




(Julho, 2019)

quarta-feira, 3 de julho de 2019

O poste de vapor (1926)
Ferenc Molnár (1878-1952) - HUNGRIA
Tradução de Paulo Schiller  
São Paulo: CosacNaify, 2005, 83 páginas





Conto longo que narra as tragicômicas aventuras do militar, que se auto-intitulava capitão dos hussardos (cavalaria) do Império Austro-Húngaro, uma patente e uma honraria altamente dignificante, mas, no caso do personagem em questão, completamente fictícia. O narrador relembra o inverno rigoroso em que conheceu o capitão, num hotel quase vazio na ilha Margarida, situada entre as duas margens do rio Danúbio, que separa as partes (Buda e Peste) que formam a capital húngara. O capitão é um personagem pantagruélico, cínico e mentiroso, mas extremamente carismático, que encanta a todos com quem se relaciona. Suas façanhas podem ser engraçadíssimas, como quando teve que sugar o veneno de uma cobra na parte interna da coxa de um colega de farda; ou dramáticas, como quando conseguiu o seu famoso casaco de capitão dos hussardos. Podem ser ainda ingênuas, como sua fé de que irá conquistar o amor de uma atriz de teatro que sonha mudar-se para Paris; ou megalomaníacas, como quando oferece aos amigos um jantar digno do rei de Espanha; ou até mesmo canalhas, como descobrimos, afinal, de onde provém o dinheiro que gasta sem medida. Todas essas manifestações de sua personalidade, no entanto, revestem-se de uma aura de romantismo, digna de um momento de crise, como eram aqueles anos pré-Primeira Guerra Mundial. O suicídio do capitão coloca um ponto final não em sua vida dissoluta, embora simplória, mas a uma época. Daí para a frente, não há mais lugar para o romantismo.



Avaliação: BOM



(Julho, 2019)

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Café Titanic (1925-1946)
Ivo Ándritch (1892-1975) - BÓSNIA
Tradução de Aleksandar Jovanovic 
São Paulo: Globo, 2008, 278 páginas



Há escritores que nunca saem do lugar e edificam obras-primas, como o brasileiro Machado de Assis (1836-1908) e sua Rio de Janeiro; há outros que, embora  se desloquem, mantêm-se firmemente ancorados em sua cidade natal, como o irlandês James Joyce (1882-1941), que fez de Dublin a verdadeira protagonista de seus romances e contos; e há alguns, privilegiados, como Ivo Ándritch, que tendo nascido em um inacreditável entrocamento de culturas, religiões e etnias, apenas precisam debruçar-se à janela para ver o mundo desfilar à sua frente. O Autor em questão desbravou terras, mas bastou olhar para seu pequeno país, situado mesmo na fronteira entre o Ocidente e o Oriente, para construir uma trajetória ímpar - como a obra-prima A ponte sobre o Drina, já tratado aqui neste espaço, em 23/04/2017. Mesmo quando escreve contos, o Autor se mostra excepcional, embora a narrativa breve não seja a forma onde se sente mais à vontade, já que sua imaginação exige grandes panoramas, com inúmeros personagens vivenciando histórias alargadas no tempo e no espaço. Ainda assim, insisto, o resultado dessa coletânea, que reúne dez contos, é primoroso - nele, encontramos pelo menos quatro joias da narrativa ocidental. "Uma carta de 1920"  é o relato sombrio de uma visão premonitória, a da Bósnia como "terra do ódio" (p. 39). Embora a narrativa abarque o período imediatamente pós-Grande Guerra e termine antes do início da Segunda Guerra Mundial, o teor da carta em questão antecipa, em várias décadas, o horror que viria tomar os Bálcãs, no conflito entre os antigos países que formavam a Iugoslávia (1991-2001). "Café Titanic" é a gênese de um caráter fascista: Siépan Kôvitch, ressentido, medíocre, invejoso, que durante anos amadurece "as suas inclinações para o mal" (p. 69) para exercê-la como paramilitar nazista - um terrível e assustador retrato que pode ser aplicado ao que está ocorrendo neste momento no Brasil. A bela fábula "Ponte sobre o Jepa" historia com lirismo a edificação da ponte em questão. "O delírio e o sofrimento de Toma Galus" coloca o homem frente à loucura dos tempos: o protagonista, que acaba de chegar a Trieste, vindo de Aden, é preso no primeiro dia após a declaração de animosidade do Império Austro-Húngaro contra o Reino da Sérvia, que seria o detonador do massacre insano chamado Grande Guerra, pelo simples fato de que ele era sérvio... Ivo Ándritch (ou Andric) é uma das melhores descobertas de toda a minha vida de leitor voraz.

E fica aqui uma lição do Autor para os dias que correm: "Quando (...) um governo e com ele uma ordem de coisas vai durando e enfraquecendo e começa a desmoronar, os seus funcionários não somente relaxam as vestes e os equipamentos mas também, de certo modo, se transformam fisicamente. Debilita-se-lhes a voz, inquieta-se o olhar, arqueiam as coisas e joelhos, como se um forro invisível sobre as cabeças os impedisse de endireitar-se. Em similares épocas de transição todas as relações alteram-se. Então tudo é possível. E então erguem-se e fortalecem-se os vendedores de galinhas." (pág. 194)




Entre aspas: 


"(...) a dor e a decepção conduzem o pensamento ao passado" (pág. 123)

"(...) sem se dar conta, ingressou naquele estado que é a primeira fase da morte, quando o homem passa a observar com mais interesse as sombras que os objetos projetam do que os próprios objetos" (pág. 131)



Avaliação: MUITO BOM



(Julho, 2019)