segunda-feira, 30 de novembro de 2020

 Crônicas da guerra na Itália (1945-1985)

Rubem BRAGA (1913-1990) - BRASIL

Rio de Janeiro: Record, 2014, 405 páginas




Já tive ocasião de escrever aqui, numa postagem de 19 de fevereiro de 2019, que "Rubem Braga é um Autor inclassificável", por ter criado um gênero singular, "que não é crônica, que não é conto, que não é poema em prosa": "um texto único, profundo, lírico, atemporal, que nos arrebata e comove, sem nunca ser piegas". Para mim, Rubem Braga é um dos maiores nomes da literatura brasileira e esta reunião de crônicas, publicada originalmente em 1945, e acrescida de outros textos de temas afins, prova isso. São relatos de um correspondente de guerra, que acompanha o dia a dia de avanços e recuos da tropa brasileira, cerca de 26 mil soldados vivendo a fase final do confronto na região dos Montes Apeninos, na Itália. Coletando pequenos episódios, descrevendo a natureza às vezes rude, mas sempre bela, e listando encontros e desencontros, o Autor compõe uma narrativa vivaz e comovente, realista e lírica ao mesmo tempo, do que foi aquele momento na vida dos pracinhas brasileiros. São textos escritos para o extinto Diário Carioca - como são extintos hoje quase todos os nossos jornais - mas que mantêm um calor que consegue nos presentificar o passado, como se estivéssemos acompanhando in loco os acontecimentos... 


Curiosidade:

Como não poderia deixar de ser, Cataguases está presente também nesse livro. Na página 162, encontramos uma lista de soldados que receberam elogios formais de seus superiores: "O soldado Antero Batista (de Cataguases, Minas) também foi elogiado e promovido a cabo. Em sua terra natal, trabalhava como enrolador (eletricista)".


 Entre aspas:

"O fascismo é uma  praga difícil de exterminar. É o preço que os povos pagam pela própria desídia. É a defesa frenética dos privilegiados. E contra ele só há um remédio verdadeiro: conquistar e manter a todo custo a liberdade do homem, e só há liberdade entre os homens quando cada um vale pelo seu trabalho - e não pelo seu nascimento nem pelos seus privilégios"  (pág. 166).



Avaliação: MUITO BOM

(Novembro, 2020)


domingo, 22 de novembro de 2020

 Ressurreição (1899)

Liev TOLSTÓI (1818-1910) - RÚSSIA

Tradutor: Rubens Figueiredo

São Paulo: Companhia das Letras, 2020, 444 páginas



Eu rechaço as narrativas de tese - não acho que o espaço do romance seja o lugar adequado para a defesa de ideias pré-concebidas, mais apropriadas a tratados de sociologia, política, antropologia, etc. E este é um romance de tese: o relato dos três meses em que o príncipe Dmítri Ivánovitch Nekhliúdov, herdeiro de grandes extensões de terra, passa por uma radical transformação, de aristocrata alienado a crítico contundente da situação sócio-econômico-política da Rússia,  um país em ebulição no final do século XIX. Mas trata-se de um Autor tão grandioso que, mesmo defendendo teses, consegue arrebatar o leitor e conduzi-lo até à última página, com a maestria que só os gênios possuem. O príncipe Nekhliúdov mora em Moscou e é convocado para participar de um júri. Quando lá chega descobre, surpreso, que a ré, Ekatierina Mikháilova Máslova, prostituta e alcoólatra, acusada de, em conluio com duas outras pessoas, ter seduzido, envenenado e roubado um comerciante, é a mesma Katiucha da sua juventude, agregada na casa de suas tias ricas, a quem molestou, engravidou e abandonou - desencadeando sua derrocada. O júri conclui que Katiucha é inocente, mas, por um erro de redação da sentença, ela é condenada a trabalhos forçados na Sibéria. Sentindo-se responsável pelo descaminho de Katiucha, Nekhliúdov tem uma crise de consciência e resolve fazer de tudo para tentar corrigir aquele erro do passado, não só lutando para reverter a sentença, como se propondo até mesmo a casar com ela. Quando ele comunica suas pretensões, ela o repele, argumentando, com nojo: "Você me usou para se regalar à vontade neste mundo, agora quer me usar para se salvar no outro mundo" (p. 172). Mas o príncipe, determinado a ajudá-la, usa sua posição social e política para persuadir as autoridades a anular a condenação, enquanto frequenta a prisão para tentar convencer Katiucha da justeza das suas intenções. É então que conhece os horrores dos sistemas jurídico e prisional da Rússia, em franco contraste com a vida de luxo, vulgaridade e hipocrisia que grassa no meio aristocrático. Torna-se, então, ardoroso defensor de outros apenados, vítimas de detenções arbitrárias, condenações absurdas, violações de direitos, e vítimas também das próprias condições das cadeias superlotadas, imundas, promíscuas, guardadas por policiais corruptos e assediadas pelas doenças - o mais impressionante é a presença de mulheres e crianças que voluntariamente são encarcerados para acompanhar os familiares. Nekhliúdov conclui que "(...) o tribunal não só inútil, mas imoral" (p. 134), sendo "(...) apenas um instrumento administrativo para a manutenção do estado de coisas vigentes, vantajoso para a nossa classe" (p. 322). Pouco a pouco, o príncipe resolve tomar decisões radicais, como dispor de suas terras, que, de acordo com suas ideias, não podem pertencer a ninguém, e sim devem ser exploradas coletivamente e a riqueza produzida usufruída pelos que nela trabalham. Por meio de suborno, Nekhliúdov consegue tornar a vida de Katiucha menos ruim na cadeia, obtendo a transferência dela, na longa jornada de Moscou até a Sibéria, do grupo de presos comuns para o de presos políticos, que, embora não recebam melhor tratamento, mantêm-se mais organizados. O príncipe acompanha o cortejo para garantir um bom tratamento a Katiucha e também para provar que são sérias suas intenções matrimoniais. Só que ela, convivendo com os presos políticos, vai tomando consciência de seu destino - e, mesmo recebendo a notícia da anulação de sua sentença, ela resolve permanecer com o grupo na Sibéria, aceitando a proposta de casamento feita por um dos presos políticos, Símonson. Ao final, Nekhliúdov chega à conclusão de que não basta reformar as prisões, ou dividir as terras, ou mudar o governo: a única saída possível para a Rússia - para o ser humano - é a transformação pessoal, baseada no estrito cumprimento da lei mosaica, emulando as ideias do Autor, fundador do socialismo cristão. 

Entre aspas:

"As pessoas são como rios: a água é a mesma para todos e é igual em toda parte, mas cada rio é ora estreito, ora rápido, ora largo, ora calmo, ora limpo, ora frio, ora turvo, ora morno" (pág. 199)

"As massas idolatram apenas o poder" (pág. 393)


Avaliação: MUITO BOM

(Novembro, 2020)


domingo, 1 de novembro de 2020

 A Neve do Almirante (1986)

Álvaro Mutis (1923-2013) - COLÔMBIA 

Tradução: Josely Vianna Baptista   

São Paulo: Companhias das Letras, 1990, 132 páginas




Romance breve, composto por seis textos, independentes, mas complementares, sendo que, o primeiro e mais longo, intitulado "O Diário do Gaveiro", narra as aventuras do marinheiro Maqroll subindo o curso do rio Xurandó em busca de umas serrarias, localizadas num ponto indeterminado no meio da selva amazônica, aos pés da Cordilheira dos Andes ("selva amazônica" e "Cordilheira dos Andes", aqui, são inferências do leitor, porque em momento algum há qualquer indicação concreta do espaço geográfico, apenas sugestões vagas). Esse diário, escrito "(...) em folhas da mais variada qualidade e origem, um diário onde registro tudo, dos meus sonhos aos percalços da viagem, do caráter e cara dos que viajam comigo até a paisagem que desfila diante de nós enquanto subimos" (p. 93), teria sido encontrado pelo narrador num sebo no Bairro Gótico de Barcelona, dentro do livro Enquête du Prêvôt de Paris sur l'assssinat de Louis Duc D'Orléans, publicado em 1865. O objetivo de Maqroll é comprar um lote de madeiras, que faria descer rio abaixo, mas desde o princípio da viagem, numa "barcaça de quilha plana movida por um motor diesel que luta com uma asmática teimosia contra a corrente" (p. 15), a existência das serrarias é posta em dúvida. Durante a trajetória, que deveria ser um percurso simbólico e metafísico, os ocupantes do barco vão acolhendo novos passageiros, que preenchem, com suas histórias, o tédio dos dias. Inicialmente, além de Maqroll, do capitão sempre bêbado, de um mecânico e de um prático, segue um estoniano chamado Ivar. Os primeiros passageiros recolhidos são uma família de índios, com quem Maqroll se relaciona sexualmente com a mulher, e Ivar com o homem. Da mesma maneira que eles sobem à embarcação, descem mais à frente, calados e misteriosos. Depois, o barco é interceptado por um hidro-avião militar, cujo major leva presos Ivar e o prático, que depois, ficamos sabendo, são despejados do alto no meio da selva, para não ter que ser julgados, já que o oficial temia que pudessem subornar os seus soldados, os juízes, etc. Eles param numa base militar, conseguem um novo prático, mas Maqroll adoece, segundo o mecânico de algo chamado "febre do poço", por ter se relacionado com a índia, e quase morre. Após se restabelecer, eles prosseguem e, vencida uma corredeira, Paso de los Angeles, última etapa para o destino final, o Capitão se mata, enforcado. Enfim, eles encontram as serrarias - e aqui decorre minha decepção como leitor. A narrativa, que até aqui mantém-se no plano simbólico, cai para o mais chão dos realismos, as serrarias mostram-se inacessíveis por serem joguetes nas mãos de políticos corruptos... Uma solução bastante frustrante... O major volta, resgata Maqroll, e ele vai tentar reencontrar Flor Estévez,  sua amante, financiadora e proprietária do bar ou algo assim que se chama A Neve do Almirante - descobrimos num dos outros relatos (de título homônimo ao livro) que o lugar nem a sua dona existem mais



ENTRE ASPAS:

"(...) o sentido que se embota primeiro, à medida que a vida vai nos levando, é o da piedade". (pág. 42)

"É muito ruim quando se vive parte da vida fazendo o papel errado, e pior ainda é descobrir isso quando já não se tem forças para remediar o passado nem recuperar o perdido". (pág. 77)



AVALIAÇÃO: BOM

(Novembro, 2020)