terça-feira, 26 de outubro de 2021

 Norte e Sul (1855)

Elizabeth Gaskell (1810-1865) - INGLATERRA  

Tradução: Frederico Pedreira        

Lisboa: Relógio D'Água, 2016, 450 páginas



Às vezes me pego pensando como alguns autores clássicos são absolutamente desconhecidos no Brasil, inclusive mesmo naqueles nichos de excelência universitária. A Autora em questão é uma delas. Neste mesmo espaço tratei de outro excelente romance seu, Mary Barton, publicado sete anos antes deste - e resenhado aqui no dia 15 de dezembro de 2018. Dificilmente o leitor encontrará escritor à sua altura no século XIX - haverá os que ombrearão com ela, mas não quem a ultrapasse. É surpreendente sua capacidade de percepção do fenômeno da Revolução Industrial e das várias implicações que ela trazia para a sociedade em geral e para os indivíduos em particular. Com sua escrita irônica, seu humor em dose certa, ela discute uma das mudanças mais importantes no rumo da história da Humanidade com um conhecimento inacreditável da vida, tanto no âmbito da aristocracia que, com sua futilidade, ia, sem perceber, cedendo lugar à burguesia, classe que ainda não compreendia seu papel, quanto nas casas miseráveis dos operários, até ontem trabalhadores rurais (neste caso, muda a função, mas não a falta de perspectiva de melhoria de vida).  A Autora, além disso, prova, mais uma vez, aquela máxima de que autores medianos se encaixam nos pressupostos de escola literária, mas autores excepcionais simplesmente ignoram regras ou limites. A visão de mundo da narradora, extremamente realista, não teme criticar as condições terríveis que viviam a classe operária, enquanto a aristocracia chafurdava na banalidade. Margaret Hale, embora filha de um pároco de aldeia, no sul da Inglaterra, vive há anos com a tia e a prima em Londres. Mas, quando a prima, Edith, se casa com o capitão Lennox, e vai morar em Corfu (Grécia), Margaret retorna à casa paterna. Lá, ela volta a ter contato com os aldeões e a vida simples de um lugar pequeno e afastado. Mas, logo seu pai é acometido de uma crise espiritual, que o faz abandonar o cargo religioso e o obriga a levar a família a morar em Milton, uma próspera cidade industrial no norte da Inglaterra. Lá, ele torna-se professor particular e o nível de vida sofre uma queda. Margaret se interessa pelos vizinhos e acaba se aproximando de uma moça tuberculosa, Bessy Higgins, e conhece então a condições miserável em que vivem os operários das fábricas de tecido. Margaret tem 18 anos e é assediada por Henry Lennox, cunhado de Edith, mas o rejeita. E também é assediada pelo jovem industrial, John Thornton, de modesta origem, mas também o rejeita. Margaret é uma mulher inteligente, culta e independente, e paga, com a solidão e a incompreensão, por isso. Não vou me deter nas várias subtramas, muitíssimo bem engendradas, mas apenas me referir ao plot central. Por um mal entendido, Thornton crê que Margaret o rejeitou por estar apaixonado por outro homem. E, embora mantenha contato com sua família, aos poucos esfria sua relação com Margaret. Enquanto isso, ele enfrenta uma greve dos trabalhadores e, convivendo com o pai de Bessy, um dos cabeças do movimento paredista, tenta empreender mudanças na gestão de sua fábrica. Em um curto intervalo morando em Milton, Margaret perde a mãe, o pai e o Sr. Bell, um grande amigo de seu pai, morador em Oxford. E também morre Bessy. Margaret então volta a viver em Londres, recebe de herança uma fortuna do Sr. Bell (e mesmo esse expediente, que poderia parecer fortuito e forçado, não o é nas mãos talentosas da Autora) e é novamente assediada por Henry Lennox, agora com a complacência de Edith e de sua tia, interessadas em ter a nova rica mais perto delas. Mas Margaret termina por se entender com John Thornton. As duas frase finais só poderiam ser perpetradas por uma Autora acima de seus pares... Os personagens são todos - sem exceção - ricamente desenhados - cada um tem suas características bem determinadas, não se confundindo uns com os outros, com destaque para a própria Margaret e o sarcástico Sr. Bell.

Aqui, um exemplo da visão de mundo certeira da Autora. No início, John Thornton pensa que "o semblante das gentes de Milton [ele está se referindo especificamente aos operários] nada mais é que o castigo natural para vontades satisfeitas de um modo desonesto num qualquer período da vida. Não considero que as pessoas libidinosas e autoindulgentes sejam merecedoras do meu ódio; simplesmente olho para elas com desprezo, perante a pobreza de caráter que mostram" (p. 92). Mais tarde, tendo tomado contato com as condições miseráveis de seus empregados, diz o mesmo Thornton: "Daí tinha nascido aquela relação que, embora não pudesse prevenir todos os futuros confrontos entre opiniões e forma de atuar, iria permitir que, chegado o momento, patrão e operário se pudessem olhar mutuamente com maior empatia e compreensão e ser mais pacientes e amáveis um com o outro" (p, 434). Alguém pergunta a Thornton se "isso evitaria a recorrência de greves" e ele responde: "De maneira nenhuma. A minha esperança mais otimista resume-se a isto: que as greves deixem de ser as fontes amargas e venenosas de ódio que até hoje têm sido. Um homem mais esperançoso pode imaginar que um contacto mais direto e cordial entre as classes irá acabar com as greves. Em todo o caso, eu não sou esse homem" (pág.  446)*...


* Mesmo esse sentimento filantropo e altruísta de John Thornton, que poderia parecer um exagero da Autora, é factual. Eu mesmo conheci um empreendimento progressista, na verdade, um laboratório social interessantíssimo, a Villa Crespi d'Adda, uma vila operária construída pela familia Crespi em torno do complexo fabril, em Capriace San Gervasio, perto de Bérgamo, na Itália, muito próximo das ideias de melhorias da vida dos operários manifestada por Thornton.



Entre aspas:


"Uma criatura pode estar embebida em mel e não conseguir levantar voo" (pág. 88)

"A lealdade e a obediência à sabedoria e à justiça são valiosas; ainda assim, mais valioso é desafiar o poder arbitrário que é usado de um modo injusto e cruel - não o fazendo por nós, mas pelos outros que estão mais indefesos" (pág. 117)



 Avaliação: OBRA-PRIMA

(Outubro, 2021)


domingo, 3 de outubro de 2021

 Memórias de Mama Blanca (1929)

Teresa de la Parra (1889-1936) - VENEZUELA 

Tradução: Lizandra Magon Almeida       

Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021, 168 páginas



A narradora utiliza um recurso técnico que, quando bem usado, é uma ferramenta excepcional para provocar verossimilhança: a de emprestar a voz a outrem. No caso, a narradora, na Advertência, explica que conviveu, menina ainda, com Mama Blanca, que lhe legou um "manuscrito misterioso", cujo volume que temos em mãos equivale às suas "primeiras cem páginas" (p. 24), correspondente à infância de Mama Blanca vivida numa fazenda de cana-de-açúcar e café nas imediações de Caracas, no século XIX. Filha de uma família aristocrática, cujo "casamento luxuoso" foi oficiado por um arcebispo e teve como um dos padrinhos um Presidente da República (p. 90), Blanca Nieves era uma das seis filhas em escadinha do fazendeiro Juan Manuel e da romântica Misia Carmen Maria, que formavam "um rebanho de açucareiros ou de compoteiras invertidas" (p. 39), criadas soltas na Pedra Azul, seguindo à risca os preceitos do pai: "As meninas (...) devem estar sempre ao ar livre, não importa que tomem sol; sob nenhum pretexto devem ir à Caracas, nem a qualquer outro lugar povoado, onde possam pegar sarampo, coqueluche, difteria ou catapora; devem tomar banho de água fria e corrente; não devem usar muita roupa; devem se levantar o mais cedo possível e ir o quanto antes tomar um copo de leite ao pé da vaca" (p. 137). Assim, com seu "dom precioso de evocar o passado contando histórias", com "sua alma desordenada e panteísta" (p. 18),  Mama Blanca vai anotando suas lembranças daqueles tempos remotos, aquela época "perdida para sempre, na qual era tão doce viver" (p. 159). Além da mãe, uma personagem saída das páginas dos romances românticos, mas traçada com tal precisão, que surge em carne e osso à nossa frente, e o pai, homem que padece em sua humana contradição, Mama Blanca traça três perfis que se agigantam e tomam conta do romance: o pobre, eloquente e inadaptado Primo Juancho, o sábio e desprezado Pedro Cochocho e o encantador de vacas Daniel. A Autora - já tratada aqui em resenha publicada no dia 2 de agosto de 2017 - possui um poder de evocação de mundos mortos raras vezes encontrado na literatura - e vale mesmo um paralelo com Fogo morto, a obra-prima de José Lins do Rego (já tratado aqui na resenha publicada no dia 22 de janeiro de 2018). Em um e outro romances, ambos sobre fazendas de cana-de-açúcar, mais ou menos da mesma época, há uma melancolia comedida, um lamento pela coisa perdida - aliás, é impressionante como o Primo Juancho se parece com o coronel Lula de Holanda, ambos personagens tragicamente pícaros. Aqui, a Autora, num rasgo genial, pinta, por meio de uma narrativa aparentemente ingênua, um grande painel onde são expostas as grandes fissuras das sociedades latino-americanas - no caso, mais especificamente, venezuelana -, com suas imensas desigualdades sociais, a mulher relegada a papel subalterno, o humano submetido ao econômico. Enfim,,um livro excepcional.


Entre aspas:


"(...) não ser esnobe me desprestigiou muitíssimo na consideração das pessoas, as quais só buscam  e exaltam quem saiba esmagá-las sob o peso de uma vaidade espetacular e estéril" - (pág. 95-96)



 Avaliação: MUITO BOM

(Outubro, 2021)