domingo, 3 de outubro de 2021

 Memórias de Mama Blanca (1929)

Teresa de la Parra (1889-1936) - VENEZUELA 

Tradução: Lizandra Magon Almeida       

Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021, 168 páginas



A narradora utiliza um recurso técnico que, quando bem usado, é uma ferramenta excepcional para provocar verossimilhança: a de emprestar a voz a outrem. No caso, a narradora, na Advertência, explica que conviveu, menina ainda, com Mama Blanca, que lhe legou um "manuscrito misterioso", cujo volume que temos em mãos equivale às suas "primeiras cem páginas" (p. 24), correspondente à infância de Mama Blanca vivida numa fazenda de cana-de-açúcar e café nas imediações de Caracas, no século XIX. Filha de uma família aristocrática, cujo "casamento luxuoso" foi oficiado por um arcebispo e teve como um dos padrinhos um Presidente da República (p. 90), Blanca Nieves era uma das seis filhas em escadinha do fazendeiro Juan Manuel e da romântica Misia Carmen Maria, que formavam "um rebanho de açucareiros ou de compoteiras invertidas" (p. 39), criadas soltas na Pedra Azul, seguindo à risca os preceitos do pai: "As meninas (...) devem estar sempre ao ar livre, não importa que tomem sol; sob nenhum pretexto devem ir à Caracas, nem a qualquer outro lugar povoado, onde possam pegar sarampo, coqueluche, difteria ou catapora; devem tomar banho de água fria e corrente; não devem usar muita roupa; devem se levantar o mais cedo possível e ir o quanto antes tomar um copo de leite ao pé da vaca" (p. 137). Assim, com seu "dom precioso de evocar o passado contando histórias", com "sua alma desordenada e panteísta" (p. 18),  Mama Blanca vai anotando suas lembranças daqueles tempos remotos, aquela época "perdida para sempre, na qual era tão doce viver" (p. 159). Além da mãe, uma personagem saída das páginas dos romances românticos, mas traçada com tal precisão, que surge em carne e osso à nossa frente, e o pai, homem que padece em sua humana contradição, Mama Blanca traça três perfis que se agigantam e tomam conta do romance: o pobre, eloquente e inadaptado Primo Juancho, o sábio e desprezado Pedro Cochocho e o encantador de vacas Daniel. A Autora - já tratada aqui em resenha publicada no dia 2 de agosto de 2017 - possui um poder de evocação de mundos mortos raras vezes encontrado na literatura - e vale mesmo um paralelo com Fogo morto, a obra-prima de José Lins do Rego (já tratado aqui na resenha publicada no dia 22 de janeiro de 2018). Em um e outro romances, ambos sobre fazendas de cana-de-açúcar, mais ou menos da mesma época, há uma melancolia comedida, um lamento pela coisa perdida - aliás, é impressionante como o Primo Juancho se parece com o coronel Lula de Holanda, ambos personagens tragicamente pícaros. Aqui, a Autora, num rasgo genial, pinta, por meio de uma narrativa aparentemente ingênua, um grande painel onde são expostas as grandes fissuras das sociedades latino-americanas - no caso, mais especificamente, venezuelana -, com suas imensas desigualdades sociais, a mulher relegada a papel subalterno, o humano submetido ao econômico. Enfim,,um livro excepcional.


Entre aspas:


"(...) não ser esnobe me desprestigiou muitíssimo na consideração das pessoas, as quais só buscam  e exaltam quem saiba esmagá-las sob o peso de uma vaidade espetacular e estéril" - (pág. 95-96)



 Avaliação: MUITO BOM

(Outubro, 2021)


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