quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

O pendura (1892) 
Jules Renard (1864-1910) FRANÇA    
Tradução: Aníbal Fernandes       
Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, 206 páginas




Talvez o título, ao invés de O pendura, devesse ser O penetra... Pois é disso que se trata: um pretenso aspirante a poeta, Henri Gérard, personagem desagradável, cínico e autodegradante ("Nunca um colega disse mal de mim porque sou, pura e simplesmente, ignorado pelos meus colegas" - p. 44), conhece um industrial, Monsieur Vernet, e sua mulher, um "casal burguês, quer dizer, (...) pessoas com ideias diferentes das minhas" (p. 26), e passa a parasitá-lo. Profundamente egocêntrico, mente todo o tempo para parecer alguém mais importante e mais culto do que é. Explora financeiramente Monsieur Vernet e insinua-se para Madame Vernet, que tem quase o dobro de sua idade, apenas para exercitar o desprezo que tem por aquelas pessoas. Convidado para acompanhar o casal à praia, lá passar a assediar abertamente Madame Vernet e conhece a sobrinha de seu marido, Marguerite, de 16 anos, a quem acaba "semi-violando", segundo suas palavras (p. 192). No final, covarde, temendo que Madame Vernet conte ao marido sobre suas investidas e que Marguerite o acuse de sedução, obrigando-o a casar-se com ela, Henri foge. Embora satirize todo o tempo o casal Vernet e sua sobrinha, o narrador admite: "lamento a perda desse bem-estar, deste estado de espírito que me fazia sentir em casa, desta facilidade dos gestos e da palavra, destas meiguices feitas à minha vaidade, desta admiração crédula que eu saboreava com a boca de quem chupa um rebuçado" (p. 97).


Observação:

Oswald de Andrade certamente leu Jules Renard...



Avaliação: BOM

(Janeiro, 2020)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

O fio da navalha (1944) 
Somerset Maugham (1874-1965) - INGLATERRA    
Tradução: Ligia Junqueira Schmidt      
São Paulo: Abril, 1974, 449 páginas


Este romance é, como diz o Autor, um tanto quanto ironicamente, uma "história de sucessos" (p. 449). Ao longo das páginas, vamos conhecendo uma galeria de personagens muito bem construídos, cujos destinos são descritos em primeira pessoa pelo Autor que também é personagem - um romancista bem sucedido que vive entre Paris e a Côte d'Azur. Mas, ainda bem!, não se trata da vida, amores e dúvidas do romancista - o que seria detestável -, mas sim dos encontros e desencontros de um grupo de americanos ricos, expatriados na França, com quem ele se relaciona intermitentemente ao longo de algumas décadas. Se o foco maior concentra-se na construção do retrato de Laurence Darrel - Larry -,  por meio do depoimento de amigos e conhecidos comuns e também por alguns encontros ocasionais com o narrador, sobressaem ainda, quase tomando o lugar de Larry, as figuras fascinantes de Elliot Templeton, um dandy homossexual que enriqueceu intermediando a venda de obras de arte francesas para seus compatriotas novos-ricos; sua sobrinha, Isabel, e o marido, Gray, falidos durante o crash da Bolsa de Nova York, mas sustentados por Elliot; e ainda Sophie MacDonalds, recatada moça de Chicago, que após a trágica morte do marido e do filho num acidente automobilístico transfere-se para a França, onde leva vida dissoluta, prostituindo-se e drogando-se. Mas o objetivo principal da narrativa é perseguir a trajetória de Larry, desde sua adolescência no interior de Illinois. Jovem ainda, Larry participa, como aviador, da I Guerra Mundial, onde tem uma experiência terrível: um de seus melhores companheiros de armas, Patsy, acaba morrendo tentando salvá-lo: "tinha vinte e dois anos. Ia casar-se com um moça na Irlanda, quando acabasse a guerra" (p. 80), lamenta Larry, anos depois. Quando ele volta para casa, não consegue mais adaptar-se ao cotidiano e parte para o mundo em uma busca espiritual: "Quero ter certeza da existência ou da não-existência de Deus. Quero conhecer a origem do mal. Quero saber se tenho uma alma imortal, ou se a morte põe fim a tudo" (p. 102), busca essa que o levará até os confins da Índia. Talvez, contrariando o Autor - "É Larry que me interessa' (p. 387) -, muito mais interessante que o Larry seja Elliot, inesquecível personagem, "profundamente patético" (p. 291) em sua humanidade: "Entristeci-me ao pensar em como sua vida fora tola, vazia e inútil. Pouca importância tinha agora o fato de ele ter ido a tantas festas, convivido com todos aqueles príncipes, duques e condes. Já se tinham esquecido dele por completo" (p. 343).

 

Entre aspas:


"(...) os homens não são somente eles; são também a região onde nasceram, a fazenda ou o apartamento da cidade onde aprenderam a andar, os brinquedos com que brincaram em crianças, as lendas que ouviram dos mais velhos, a comida de que se alimentaram, as escolas que frequentaram, os esportes em que se exercitaram, os poetas que leram e o Deus em que acreditaram" (pág. 13)


"O fato de muita gente acreditar numa coisa não é garantia de sua veracidade" (pág. 379)



Avaliação: MUITO BOM

(Janeiro, 2020)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020


Serafim Ponte Grande (1933) 
Oswald de Andrade (1890-1954)  BRASIL 
São Paulo: Globo, 2007, 230 páginas




Romance anárquico, construído em fragmentos, com uma linguagem extremamente poética e despedaçada, este livro é uma espécie de elogio e elegia ao descompromisso e ao hedonismo, mas com uma forte pitada de auto-imolação. Serafim é um membro da classe média brasileira, um burocrata entediado com seu trabalho medíocre, insatisfeito com seu casamento, e sonhando altas glórias como literato que não é - "um crítico teatral de sua própria tragédia", como se define à pág. 89. Até que, por meio de golpe financeiro - "Transformei em carta de crédito e pus a juros altos o dinheiro todo deixado pelos revolucionários [referência à Revolta de 1924] no quarto do Pombinho" [filho de Serafim Ponte Grande] (pág. 100) -, ele larga a família e embarca para o estrangeiro, disposto a recuperar o suposto tempo perdido. Daí para a frente, a narrativa se transforma no relato de uma série de aventuras sexuais inconsequentes pela Europa e Oriente Médio. O livro termina, na verdade, com a reentrada em cena de José Ramos Goes Pinto Calçudo, um personagem literalmente expulso do livro à pág. 127 ("- Diga-me uma coisa. Quem é neste livro o personagem principal? Eu ou você? / Pinto Calçudo como única resposta solta com toda a força um traque, pelo que é imediatamente posto para fora do romance" (pág.127). No epílogo, intitulado "Os antropófagos", Pinto Calçudo ressurge como comandante de um navio pirata que percorre o mundo numa eterna orgia... Romance que é um epígono da obra do Autor, às vezes resvala, com seu humor algo catatônico, para o mau gosto, mas que, ainda assim, mantém uma verve criativa e demolidora pouco comum na literatura brasileira.



Avaliação: BOM

(Janeiro, 2020)

domingo, 5 de janeiro de 2020

Os emigrantes (1992) 
W.G. Sebald (1944-2001) ALEMANHA   
Tradução: José Marcos Macedo     
São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 237 páginas





O livro reúne quatro narrativas independentes, mas que se vinculam entre si por exibirem vidas devastadas pelos insanos episódios históricos da primeira metade do século XX, em particular pela loucura das guerras e mais em particular ainda pela inominável perseguição aos judeus. "Dr. Selwyn" relata a vida de Hersch Seweryn - nome original do protagonista -, de família de judeus lituanos, que resolvidos a emigrar para América, em busca de dias melhores, são abandonados em Londres, sem maiores explicações. Dr. Selwyn tinha sete anos e pela Inglaterra acabou ficando, onde estudou medicina e casou-se com uma mulher rica, casamento que acabou depois que revelou suas origens. O narrador o encontra morando, exilado, numa casa em Hingham, perto de Norwich, solitário, mergulhado na memória de um único momento de felicidade no passado - até saber, tempos depois, de seu suicídio. "Paul Bereyter" reconstrói a biografia do professor do narrador. Filho de um rico comerciante judeu com sua empregada cristã, Paul tivera uma infância feliz em S., aldeia do interior da Alemanha, e formara-se professor primário, por um  "idealismo absolutamente incondicionado" (p. 51). Em meados dos anos 30, no entanto, tudo muda. Começam as restrições aos judeus, o pai morre de desgosto e o empório da família é vendido "a preço de banana" (p. 58) para um comerciante "ariano" local. Finda a guerra, Paul volta para ocupar seu cargo de professor em S., aldeia que "odiava, (...), e que teria preferido ver destruída e arrasada, junto com seus habitantes, pelos quais sentia profunda aversão", mas que, "bom professor, ele teria acreditado que se podia simplesmente passar uma borracha nesses doze anos infelizes e virar a página para começar tudo do zero" (p.61). Em dezembro de 1983, uma semana depois de completar setenta e quatro anos, Paul Bereyter deitou-se nos trilhos à espera do trem... "Ambros Adelwarth" é o relato da vida aventureira do tio-avô homossexual do narrador, que muito jovem deixa a Alemanha e emigra para os Estados Unidos. O narrador viaja àquele país para tentar compreender quem havia sido aquele personagem que aparecia e desaparecia em sua infância, durante temporadas de férias em S. Após ganhar o mundo, como acompanhante de viagem de um jovem milionário da região de Nova Iorque, Ambros, na velhice, resolve se internar em um sanatório para doentes mentais, em Ithaca, onde se submete, voluntariamente, a sessões de eletrochoque, "como alguém a ser em breve sepultado em alto-mar" (p. 118). O que Ambros procurava destruir era sua "memória infalível": "Por isso, contar histórias era para ele tanto uma tortura quanto uma tentativa de libertação, uma espécie de resgate e ao mesmo tempo uma forma inclemente de autoimolação" (p. 103). "Max Ferber" talvez seja para onde confluem todos os questionamentos das histórias anteriores. O narrador torna-se amigo de um pintor judeu alemão, exilado em Manchester, na Inglaterra, que lá chegara em 1939, com um visto conseguido pelo pai por meio de suborno de um cônsul inglês. Max entrega ao narrador um "pacote envolto em papel de embrulho e amarrado com barbante, no qual se achavam, além de algumas fotografias, quase cem páginas de anotações manuscritas", que sua mãe, Luisa Lanzberg, fizera entre 1939 e 1941, antes de ser enviada para um campo de extermínio. O narrador então resume as memórias de Luisa: sua infância quase idílica, no começo do século XX, em Steibach, na Baixa Francônia, e a juventude em Bad Kissingen, balneário frequentado pela aristocracia russa, onde o pai adquirira uma enorme casa. Mas ali Luisa não foi feliz: perdeu o primeiro amor, um trompista cristão de uma orquestra que tocava para os veranistas, morto por um derrame cerebral, e depois o segundo amor, um tenente que chega cego, vítima dos combates da I Guerra Mundial, e que é acometido de uma doença que o leva rapidamente. Depois, enfim, conhece Fritz Ferber, que se torna galerista de arte em Munique, de cujo casamento nasce Max. A vida transcorria tranquila, até que começam as perseguições antissemitas. Luisa escreve: "(...) vejo nuanças de azul por toda parte - uma única superfície vazia que se estende até o crepúsculo vespertino, sulcada pelas trilhas de patinadores desaparecidos" (p. 218). Max Ferber irá mais tarde tentar fazer retratos a carvão. Afirma o narrador: "Eu não cansava de me admirar de como Ferber, ao final de um dia de trabalho, produzia um retrato de grande vividez com as poucas linhas  e sombras que haviam escapado à destruição, e muito mais me admirava quando, na manhã seguinte, tão logo o modelo assumisse sua pose e ele lhe lançasse um primeiro olhar, tornava a apagá-lo, a fim de escavar novamente do pano de fundo, já bastante danificado pelos incessantes estragos, os traços do rosto e os olhos em última análise (como ele dizia) incompreensíveis de seu modelo" (p. 163-4). Impossível retratar o horror de uma época em que a Humanidade descarrilhou dos trilhos da Razão...


Avaliação: MUITO BOM

(Janeiro, 2020)

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

O tempo e o vento
(Parte I - O Continente: Volume 2) (1949) 
Erico Veríssimo (1905-1975)  BRASIL 
São Paulo: Companhia das Letras, 2005, 432 páginas





Monumental saga sobre a história política do Brasil (sobre sua formação geográfica, econômica, social, política, imaginária) composta por três partes divididas por sua vez em sete volumes. Este segundo volume da Parte I descreve a história dos Terra Cambará (e, por consequência, a transformação de Santa Fé, do Rio Grande do Sul, do Brasil, enfim) ao longo da segunda metade do século XIX, curiosamente, um período mais calmo que o relatado no volume anterior. "A teiniaguá" narra a história do casamento infeliz entre Bolívar, filho de Bibiana Terra e do capitão Rodrigo Cambará, com Luzia Silva, neta adotada de Aguinaldo Silva, um pernambucano que aportou em Santa Fé, de origem incerta, e que acumulou enorme fortuna, consubstanciada no Sobrado, construído sobre lotes usurpados de Pedro Terra, pai de Bibiana. Após o casamento, realizado como uma espécie de vingança de Bibiana contra Aguinaldo Silva, os Terra Cambará passam a ocupar o Sobrado. Este capítulo, narrado em terceira pessoa, mas tendo como ponto de vista privilegiado o olhar do dr. Carl Winter, médico alemão que acaba dando os costados em Santa Fé, e que por lá se enraiza, mostra como Luzia, culta, inteligente, moderna, vai aos poucos perdendo a razão, enfurnada num lugar atrasado, casada com um sujeito limitado intelectualmente, e tendo que conviver com o ódio explícito da sogra. "A guerra" ecoa os anos da Guerra do Paraguai, o primeiro conflito que não envolve diretamente a linhagem dos Terra Cambará (apesar de tornar coxo Florêncio, primo de Bolívar), quando acompanhamos o desenvolvimento de Licurgo, filho de Bolívar, morto ao tentar romper uma quarentena em que estavam confinados, ele e a mulher, por conta do cólera que grassava na Província. Licurgo, com a mãe ausente e com o beneplácito da avó, passa a maior parte do tempo na fazenda Angicos, cuidando de gado e ouvindo as conversas dos peões. "Ismália Caré" revela o aumento da rivalidade entre as famílias Terra Cambará e Amaral, fundadores de Santa Fé, colocando de um lado Licurgo, republicano e abolicionista, contra os Amarais, monarquistas e escravocratas. Licurgo está prestes a se casar com a prima Alice, filha de Florêncio, enquanto alimenta sua paixão proibida pela amante, Ismália Caré, filha de empregados da fazenda. Esses capítulos são intercalados por outros três capítulos intitulados "O Sobrado", que servem de contraponto à história que vai sendo desdobrada. No final deste volume, cai o cerco ao sobrado dos Terra Cambará pelos Amarais. O impressionante dessa saga  é a capacidade do Autor de contar a história do Brasil (e do Rio Grande do Sul) sem, uma única vez, sair dos limites da pequena cidade de Santa Fé... Um feito e tanto!


Avaliação: MUITO BOM

(Janeiro, 2020)