segunda-feira, 27 de abril de 2020

Os prisioneiros (1963)
Rubem Fonseca (1925-2020) - BRASIL
           Rio de Janeiro: GRD, 1963, 145 páginas






Esta coletânea reúne 11 contos, que, sendo o primeiro livro do Autor, já apontam para os temas que ele irá tratar, obsessivamente, ao longo de sua obra. Homens e mulheres marginalizados, fascínio por assassinatos e pelo submundo do crime, a fixação no tédio e na inutilidade de tudo - além do gosto pelo vocabulário preciso e pela trama policialesca. Não tivessem nenhum outro mérito - e têm - essas narrativas inauguram a literatura urbana moderna brasileira  - até então os escritores recusavam-se em retratar o caos das grandes cidades, limitando-se a tramas subjetivas que transcorriam em ambientes burgueses ou pequeno-burgueses. O Autor antecipa, com esse livro, aquilo que viria a se constituir, ao longo do fim do século XX, o caldo de cultura para a tragédia sócio-político-econômica que enfrentaríamos no século XXI. As histórias são expostas cruamente, mas, em seus melhores momentos, transportam uma carga de lirismo que elevam-nas a experiências estéticas poucas vezes alcançadas. Contos como "Fevereiro ou março", "Gazela" e "O inimigo" - pequenas jóias obrigatórias em qualquer antologia - são suficientes para demonstrar a envergadura do Autor, um dos mais importantes da história da literatura brasileira.




 Avaliação: MUITO BOM


(Abril, 2020)

terça-feira, 21 de abril de 2020

A Praça do Diamante (1962)
Mercè Rodoreda (1908-1983) ESPANHA      
Tradução: Luis Reyes Gil            
São Paulo: Planeta, 2019, 253 páginas





Escrito em catalão, esse romance narra a comovente trajetória de Natàlia, apelidada de Colometa, vivendo os atribulados anos 1930 e 1940 em Barcelona. Jovem, Natàlia conhece o impetuoso Quimet na Praça do Diamante, num dia de festas, e, de tanto ele insistir em namorá-la, ela acaba desmanchando seu noivado com o cozinheiro Pere. Colometa e o marceneiro Quimet iniciam então uma relação conturbada, mas intensa, que rapidamente desemboca em casamento e dois filhos, Antoni (Toni) e Rita. Machista, egocêntrico e imaturo, Quimet alimenta quimeras - compra uma motocicleta e enche o apartamento de pombos, com a venda dos quais imagina ganhar dinheiro, o que nunca acontece. O casal vive rodeado pelos amigos de Quimet, Cintet e Mateu, enquanto Natàlia tem em dona Enriqueta uma espécie de refúgio materno. Para auxiliar no orçamento doméstico, Natàlia emprega-se na casa de uma família burguesa, e assim o casal vai levando uma vida que, se não é de fartura, também não é de miséria. Até que explodem os conflitos da Guerra Civil, que opôs republicanos, comunistas e anarquistas aos fascistas e monarquistas. Os amigos Quimet, Cintet e Mateu aderem aos anti-fascistas e seguem para o front. Natàlia é demitida, por seu marido estar envolvido com os inimigos de seus patrões, e sua vida sofre uma brusca transformação. Convivendo com a falta dinheiro, as privações rondam sua casa: "Passamos uma época tão triste que nem dá para explicar: a gente ia cedo para a cama para não perceber tanto que não havia janta. No domingo não levantávamos cedo para não sentir tanta fome" (p. 159). Então, um dia recebe a notícia de que Quimet havia morrido em combate - assim como seu amigo Cintet, enquanto Mateu é fuzilado pelos fascistas. As coisas pioram bastante e, sem perspectivas, Natàlia resolve se matar e matar os filhos: "(...) a gente não fazia nenhum mal a ninguém e não tinha ninguém que gostasse da gente" (p. 173), constata, com profunda amargura. Ela decide então comprar uma garrafa de ácido nítrico, mas acaba recebendo uma proposta de trabalho do merceeiro, também chamado Antoni. Após alguns meses convivendo com ele - cuidando de sua casa -, Antoni a pede em casamento, explicando que, como era um mutilado de guerra - "(...) sou inútil aqui no meio" (p. 196) -, assumiria a família como sua. E assim ocorre:  Natàlia une-se a ele, que oferece a todos o seu melhor, em termos afetivos e financeiros. O tempo passa, Natàlia vê Rita se casar e Toni prestar o serviço militar. A cena final é uma das mais lindas da literatura mundial: Natàlia se dirige ao antigo apartamento, grava seu nome na porta de madeira, pondo um ponto final naquela vida anterior, e assumindo de vez o amor por Antoni, por quem, até então, conseguira ser apenas grata. "Tive que me fazer de cortiça para poder seguir em frente, porque se em vez de ser de cortiça com coração de neve tivesse continuado como antes, de carne que dói quando a gente belisca, não teria conseguido atravessar uma ponte tão alta e tão estreita e tão comprida" (p. 164). Belíssima história, narrada na primeira pessoa, que, numa simbiose perfeita, mostra como as trajetórias pessoal e coletiva necessariamente se imbricam. 



 Avaliação: OBRA-PRIMA


(Abril, 2020)

terça-feira, 14 de abril de 2020

A última tentação (1951)
Nikos Kazantzákis (1883-1957) - GRÉCIA      
Tradução: Marisa Ribeiro Donatiello           
São Paulo: Grua, 2015, 517 páginas





O Autor reescreve a história dos três últimos anos de vida de Jesus Cristo, usando os Evangelhos como base, mas tomando liberdade para criar novas cenas e insuflar características próprias aos personagens. Segue bem de perto o desdobramento da narrativa tradicional, mas dando ao protagonista uma humanidade - melhor, uma carnalidade - que, se o aproxima de nós, leitores, ao mesmo tempo afasta-o dos preceitos canônicos (tanto que o livro esteve no Index das igrejas católicas e ortodoxa por muitos anos, o que demonstra a estupidez e o obscurantismo das religiões, ou pelo menos de seus dirigentes). A questão mais relevante do romance é trazer à tona um sujeito que contradiz, inicialmente, todas as expectativas aguardadas para um ser divino. Jesus mora em Nazaré com sua mãe, Maria, e seu pai, José, paralítico, e tem por ofício fabricar cruzes para os romanos crucificarem os judeus rebelados. Pouco a pouco, ele vai tomando consciência de que pode ser o Messias tão aguardado e tão desejado naqueles tempos conturbados, de ocupação romana e de opressão pela própria elite corrupta que dominava Jerusalém. Então, angustiado e indeciso, ele sai à procura de um sinal que confirme ou não que seria ele mesmo o Filho do Homem que iria libertar o povo de Israel. Quando finalmente se convence de que é o Escolhido, começa a pregação itinerante e lidera um bando de espoliados - pescadores, pastores, pequenos comerciantes -, arregimentando como seu braço-direito Judas, um ativista zelote, que recebe, segundo o entrecho imaginado pelo Autor, a pior incumbência, a de trair Jesus para que ele pudesse cumprir o seu papel, de morrer pelos homens, livrando-os de todos os pecados e para que pudessem ressuscitar, após a morte, no Reino dos Céus. Antes ainda, já na cruz, Jesus sofre uma última tentação de Satanás: ao invés de morrer crucificado, por que não viver uma vida normal, casar, ter filho, netos, desfrutar enfim das coisas terrenas? É neste sonho-tentação que encontra com Paulo - que na minha opinião é o verdadeiro edificador do Cristianismo - e ouve dele uma terrível sentença: "(...) não estou nem um pouco preocupado com verdades e mentiras, se o vi ou não, se foi crucificado ou não. Com obstinação, paixão e fé, eu crio a verdade. Não luto para encontrá-lo, eu o construo" (p. 493-494). O romance defende uma tese interessante - a profunda humanidade de Cristo -, mas que perde a força como ficção, porque o fio da história não nos traz surpresas, porque a linguagem usada (que tenta emular a linguagem bíblica, poética e fantástica) esgota-se em si mesma, porque os personagens - mesmo Jesus em suas idas e vindas - são tipos que agem segundo um plano pré-concebido. 


Entre aspas:

"(...) as palavras nunca conseguem esvaziar o coração do homem e aliviá-lo, só o silêncio (...)" (pág. 369-370)

 Avaliação: BOM


(Abril, 2020)


quinta-feira, 2 de abril de 2020

O Anjo Azul (1905)
Heinrich Mann (1871-1950) ALEMANHA      
Tradução: Erlon José Paschoal           
São Paulo: Estação Liberdade, 2002, 257 páginas






O professor Raas - apelidado de Unrat (Lixo, em português) - dá aulas de gramática e literatura clássica no ginásio local há 25 anos (o lugar não é mencionado diretamente, mas trata-se de Lübeck, cidade-natal do Autor). Ele conduz suas turmas com o autoritarismo e o sadismo inerentes aos medíocres. Ressentido, o mestre-escola persegue os alunos, não só dentro do recinto das salas de aula, como também julga-os pelo que fazem extramuros - defensor que é de "obediência estrita e costumes rígidos" (p. 43). Há anos a fama de moralista empedernido de Unrat provoca nos habitantes um misto de desprezo e ironia. A vida de Unrat, no entanto, muda, quando ele resolve averiguar a conduta de três alunos "suspeitos": o aristocrata rural von Ertzum; o proletário Kieselack; e o burguês Lohmann. A pista para as investigações é um poema inacabado, escrito por Lohmann, interceptado pelo professor, dedicado a uma musa chamada Rosa Fröhlich, que, a princípio, ele julga ser uma artista de teatro - sua busca por ela é hilária. Até que finalmente descobre que trata-se de uma cantora de cabaré, do cabaré que empresta o nome ao título do livro. Unrat, um homem que "não fumava muito, e raramente bebia; não tinha nenhum dos vícios burgueses" (p. 32), acaba por envolver-se pateticamente com Rosa, e, pouco a pouco, afunda-se numa espiral de autopunição, sadomasoquismo e vingança que o leva à demissão do emprego. Casa-se então com Rosa - para escárnio da cidade - e transforma sua moradia em um local "onde se jogavam altas quantias, bebia-se caro e onde se encontravam pessoas do sexo feminino que não eram totalmente prostitutas, mas também não eram damas; onde a dona da casa, uma mulher casada, a esposa do professor Unrat, cantava maliciosamente, dançava de modo inconveniente, e, quando se agia corretamente, era até mesmo possível tê-la por alguma bagatela" (p. 202). Por meio do comportamento liberal de Rosa, o professor atrai para o bordel que virou sua casa os mais diversos tipos, entre eles vários de seus ex-alunos, muito bem postos na sociedade, levando-os à ruína pelo jogo, pelos presentes ofertados a Rosa, pelas brigas domésticas provocadas pela frequência àquele lugar - mostrando, de certa maneira, que também o moralismo deles era simples verniz. Assim, Rosa torna-se, para o professor, uma arma efetiva para a condenação da sociedade que sempre o menosprezou. Unrat é um personagem desprezível, capaz das piores coisas para se desforrar das humilhações sofridas, até mesmo a sua autodestruição. Caricatura que antecipa o fascismo, o professor Unrat é alimentado pelo ressentimento, que conduz todas as suas ações - muito parecido com o que temos hoje, um tirano medíocre à frente do governo, um lixo humano, que não tem pejo de lançar mão de qualquer subterfúgio para concluir sua obra de perversão.




Curiosidade:

À pág. 179, aparece um brasileiro (que reaparecerá em vários momentos para a frente):
"(...) a família acabou sentando-se, para o café em sua barraca de praia, com dois comerciantes de Hamburgo, um jovem brasileiro e um industrial saxônio".
O brasileiro será um dos apaixonados por Rosa Fröhlich, chegando mesmo a presenteá-la com uma joia caríssima...




 Avaliação: MUITO BOM


(Abril, 2020)