terça-feira, 29 de dezembro de 2020

 História do Dr. Johann Fausto (1587)

Anônimo -  ALEMANHA  

Tradutora: Magali Moura  

São Paulo: Filocalia, 2019, 272 páginas




Primeira compilação das aventuras desse que se tornaria figura emblemática do imaginário ocidental: Fausto, o que vendeu seu corpo e sua alma ao Diabo, por meio de um pacto de sangue. Baseado em um personagem real, que teria vivido entre o final do século XV e o início do século XVI, em itinerância como mago, astrólogo e alquimista pelas regiões da Alta Saxônia e Baviera, coube ao tipógrafo Johann Spies compor esse primeiro livro, certamente recolhido das histórias que já corriam na boca do povo. Fausto, interessado em viver no luxo e na luxúria, sem precisar se esforçar para isso, aceita assinar um documento, que, por um lado, coloca à sua disposição um "servo do infernal Príncipe do Oriente", um espírito chamado Mefostófiles, responsável por tornar realidade qualquer desejo seu, por outro aceita, passados 24 anos, "dispor de mim, se apoderar, reger, conduzir todo meu corpo, alma, carne, sangue e bens e assim até a eternidade" (p. 38). A partir daí, Fausto passa a fazer cumprir seus caprichos, que vão desde fazer aparecer a seus amigos Helena de Troia, que aliás se torna sua concubina, até instalar-se para beber na adega do bispo de Salzburgo, passando por sobrevoos a cidades mundo afora e demonstrações de magia e encantamento e enganações. Quando chega o fim do contrato, ele deixa para Wagner, um seguidor a quem trata como filho, a sua casa com jardim em Wittenberg, e mais "1.600 florins em cartas de crédito, uma propriedade rural no valor de 800 florins, 600 florins em dinheiro vivo, uma corrente de ouro no valor de 300 coroas e talheres de prata que trouxera de várias cortes (...) que valiam cerca de 1.000 florins" (p. 180), além de um "espírito", na forma de um "macaco de estatura bem grande" (p. 182). Quando chega a hora de partir, Fausto lamenta e se angustia e se arrepende por morrer tão jovem e cheio de saúde, e de forma tão trágica: seus amigos encontram seu corpo "junto ao esterco, (...) a cabeça e todos os seus membros pendiam esquartejados" (p. 197). A destacar o belíssimo trabalho elucidativo de Magali Moura, nas inúmeras notas de rodapé e extenso e erudito posfácio.


 Avaliação: MUITO BOM

(Dezembro, 2020)


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

  O dia do gafanhoto e outras histórias (1939)

Nathaniel West (1903-1940) -  ESTADOS UNIDOS  

Tradutor: Alcebíades Diniz 

São Paulo: Carambaia, 2015,  341 páginas


Este romance, que busca retratar os Estados Unidos sob a Depressão, escolhe um ambiente bastante propício: Hollywood, lugar para onde convergem todos os sonhos. Tod Hackett é um pintor que vive de criar cenários e figurinos para filmes - e, embora frustrado e intimamente sabendo que nunca se tornará o artista que imaginava, mantém-se auto-iludido em suas expectativas. Homer Simpson vem de uma pequena cidade de Iowa, onde, após anos trabalhando como contador de um hotel, acumulou dinheiro suficiente para se instalar ali para se curar de uma pneumonia. E finalmente Faye Greener, jovem candidata ao estrelato, filha de um vendedor ambulante, ex-palhaço e figurante. Faye é ambiciosa e manipuladora, mas sem nenhum talento. A história gira em torno desse trio: Homer, apaixonado platonicamente por Faye, resolve adotá-la e investir em sua carreira - e para isso não mede esforços, nem financeiros, nem de autoestima. Faye, vulgar e interesseira, o despreza e flerta com todos aqueles que julga que poderão ajudá-la a brilhar no mundo do cinema. O livro se desdobra em episódios corriqueiros, nos quais os personagens se movimentam e tomam forma, até o epílogo, quando Homer, fora de si, comete um crime hediondo, no meio de uma grande confusão provocada pela estreia de um filme, na qual os atores, conhecidíssimos, irão comparecer. Aliás, essa cena magistral, apocalíptica, e duas outras, o surreal e hilário passeio de Tod por sets de filmagem, quando esbarra em figurantes saídos de diversos filmes de diferentes épocas (capítulo 18), e a briga de galos (capítulo 21), demonstram a grandeza do Autor. (O olhar interessado mas indiferente de Tod Hackett me lembrou muito Nick Carraway, o narrador de O grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, publicado em 1925).

 

Avaliação: BOM 

(Dezembro, 2020)



sábado, 12 de dezembro de 2020

 A inocência do Padre Brown (1911)

G. K. Chesterton (1874-1936) -  INGLATERRA 

Tradutor: Carlos Nougué 

Rio de Janeiro: Sociedade Chesterton Brasil;

Porto Alegre: Instituto Cultural Hugo de São Vitor, 2017,  303 páginas


Reunião de doze contos, tendo sempre como protagonista o Padre Brown, um dos mais insólitos personagens-detetives da história da literatura - e aqui cabe o rótulo de "policial", porque os enredos giram em torno do desvendamento de um crime. Padre Brown, sacerdote católico, muito baixo, "tinha a cara redonda e insípida como um pudim de Norfolk; olhos tão vazios como o Mar do Norte" (p. 40), enfim, "a essência mesmo" das pessoas simplórias. Como todo bom detetive diletante, ele encontra-se sempre acompanhado de um detetive particular de verdade, o francês Hercule Flambeau, um ex-criminoso - "rei dos ladrões e a mais famosa figura de Paris" (p. 198) - convertido pelo Padre Brown (em "As estrelas fugazes"). Padre Brown usa sua imensa capacidade de observação e dedução para descobrir os responsáveis pelos assassinatos ocorridos nos lugares por onde ambos passam - aliás, é este o ponto fraco das narrativas, que se tornam inverossímeis pelas inúmeras coincidências. Escrevo aqui o que escrevi quando resenhei O olho de Apolo (conto, aliás, também presente neste volume), em 13 de fevereiro de 2018: trata-se apenas de interessantes desafios racionais.


 

Entre aspas:


"(...) há na vida um elemento de conto de fadas que as pessoas, contando só com o prosaico, nunca percebem" (pág. 41)

"A alegria sem senso de humor é algo muito desagradável" (pág. 292)

 

Curiosidade:

O Brasil aparece à página 45, estranhamente como produtor de nozes: "Sobre o monte das nozes havia um pedaço de papelão em que estava escrito com claro giz azul: (...) "'As mais finas nozes do Brasil, quatro por uma libra'"...

E o conto "O sinal da espada partida" tem o Brasil como essencial para o desdobramento da história - onde aparece até mesmo um herói, presidente do país, chamado Oliveira...


Avaliação: BOM 

(Dezembro, 2020)



sábado, 5 de dezembro de 2020

 A história de Mildred Pierce  (1941)

James M. CAIN (1892-1977) - ESTADOS UNIDOS 

Tradutor: Celso Nogueira 

São Paulo: Companhia das Letras, 2008, 320 páginas



A Literatura - com ele maiúsculo - definitivamente não só prescinde de adjetivos, mas, e talvez principalmente, prejudica-se quando o mercado, ou a moda, ou as circunstâncias, o atrelam a eles. Este livro, publicado numa coleção de literatura policial, é exemplo gritante disso. Porque o Autor, em algum momento, carimbaram-no como "policial", alguém resolveu mantê-lo circunscrito a esse nicho. Agora, quando acabamos de ler este romance, sabemos que o público foi duplamente logrado: aqueles que buscam na narrativa os elementos clássicos do gênero - assassinato, detetive, solução do crime - não os encontrarão e sairão frustrados; aqueles que buscam literatura de qualidade e que torcem o nariz para esse tipo de enredo, em geral, mas nem sempre, superficial e ligeiro, perderão a oportunidade de desfrutar de uma obra-prima da história da literatura ocidental. Poucas vezes o leitor mais exigente vai se deparar com personagens tão fascinantes como a que dá título à obra e sua filha, Veda. Estamos em pleno período da Depressão, ou seja, os conturbados anos 1930, e o cenário é a pequena Glendale, um subúrbio na região de Los Angeles. Mildred, casada com Bert Pierce, é uma pacata dona de casa que usufruiu dos bons tempos, quando o mundo parecia renascer depois dos tenebrosos anos que se seguiram à I Guerra Mundial. Mas, com o crash da Bolsa de Nova York, Bert perde tudo que havia conquistado com os empreendimentos imobiliários que mantinha sob o nome de Pierce Inc. À derrocada financeira segue-se a pessoal: sua mulher, Mildred, o expulsa de casa, ao descobrir que ele tem uma amante, Maggie Biederhof. Bert deixa a confortável casa e o carro para a mulher, que sozinha terá que cuidar das duas filhas, Veda e Ray. Para ganhar algum dinheiro, Mildred tenta se empregar como empregada doméstica e governanta, mas acaba rejeitando a ideia, por orgulho e receio de causar humilhação nas filhas. Afinal, aconselhada pela amiga e vizinha, Sra. Gessler, aceita emprego de garçonete num restaurante em Hollywood. Ali, descobre que poderia faturar mais dinheiro vendendo tortas que fazia em casa. Inicialmente, fornece-as para o restaurante onde trabalha e para moradores de Glendale, mas depois, acatando sugestão de um ex-amigo de Bert, Wally Burgan, ela resolve abrir seu próprio negócio. Poucos dias antes da inauguração, ela conhece Monty Beragon, descendente dos primeiros colonizadores da Califórnia, que vive da renda proporcionada pelas ações de uma empresa de exportação de frutas - e também perde sua filha mais nova, Ray (os capítulos 7 e 8, que narram a agonia e a morte de Ray conformam algumas das páginas mais tristes que já li). Abalada, entretanto Mildred tem que tocar a vida e agarra-se à filha mais velha, Veda, que, desde criança, mostrava-se egocêntrica, petulante e cruel. Enfim, os negócios de Mildred engrenam: ela abre filiais de seus restaurantes e aposta no pretenso talento de Veda para o piano. Enquanto a mãe se esgota de manhã à noite, Veda frequenta as altas rodas da burguesia de Pasadena acompanhando Monty. Após a morte de seu tutor musical, Veda procura outro, o famoso Sr. Treviso, que revela a ela - e a Mildred - que não possui nenhum talento para o piano. Veda entra em crise, rompe com a mãe - a relação entre as duas é tensa, a mãe eivada de culpas, a filha, cheia de acusações -, muda-se para Hollywood e descobre-se cantora - uma grande cantora, uma "coloratura", como a denomina Sr. Treviso, que revela seu real talento. Enquanto os negócios de Mildred avançam, os de Monty naufragam - ele passa a viver em um quarto minúsculo numa mansão em decadência - e eles se separam. Mildred procura reaproximar-se de Veda, sem sucesso, até que lhe vem uma ideia: casar-se com Monty, comprar sua mansão, e oferecer a Veda a vida de glamour, luxo e ostentação que ela tanto almeja. Para realizar seu projeto, endivida-se. E aí começa a sua própria derrocada: ela não consegue cumprir suas obrigações e os credores passam a pressioná-la. Ela perde tudo, inclusive Veda, que, descobre, tem um caso com Monty e com ele foge para Nova York para dedicar-se à sua carreira musical. Falida, Mildred casa-se novamente com Bert, que manteve-se sempre ao seu lado, e recomeça tudo de novo, vendendo tortas para a vizinhança. O livro pode ser assim resumido: Mildred "sentia medo de Veda, de seu esnobismo, de seu desprezo, de seu espírito inquebrantável. E temia algo que ocultava sempre sob a falsa sofisticação de Veda: um desejo frio, cruel e vulgar de torturar a mãe, de  humilhá-la e, acima de tudo, de magoá-la. Mildred ansiava desesperadamente pelo carinho da filha (...) mas só recebia dela uma contrafação afetada, teatral. Tinha que aceitar esse prêmio de consolação, tentando não vê-la como realmente era" (p. 97). Uma história magnífica!


 Entre aspas:

"(...) os cínicos são cínicos demais para sonhar" (pág. 183)

 

Avaliação: OBRA-PRIMA 

(Dezembro, 2020)