sábado, 5 de dezembro de 2020

 A história de Mildred Pierce  (1941)

James M. CAIN (1892-1977) - ESTADOS UNIDOS 

Tradutor: Celso Nogueira 

São Paulo: Companhia das Letras, 2008, 320 páginas



A Literatura - com ele maiúsculo - definitivamente não só prescinde de adjetivos, mas, e talvez principalmente, prejudica-se quando o mercado, ou a moda, ou as circunstâncias, o atrelam a eles. Este livro, publicado numa coleção de literatura policial, é exemplo gritante disso. Porque o Autor, em algum momento, carimbaram-no como "policial", alguém resolveu mantê-lo circunscrito a esse nicho. Agora, quando acabamos de ler este romance, sabemos que o público foi duplamente logrado: aqueles que buscam na narrativa os elementos clássicos do gênero - assassinato, detetive, solução do crime - não os encontrarão e sairão frustrados; aqueles que buscam literatura de qualidade e que torcem o nariz para esse tipo de enredo, em geral, mas nem sempre, superficial e ligeiro, perderão a oportunidade de desfrutar de uma obra-prima da história da literatura ocidental. Poucas vezes o leitor mais exigente vai se deparar com personagens tão fascinantes como a que dá título à obra e sua filha, Veda. Estamos em pleno período da Depressão, ou seja, os conturbados anos 1930, e o cenário é a pequena Glendale, um subúrbio na região de Los Angeles. Mildred, casada com Bert Pierce, é uma pacata dona de casa que usufruiu dos bons tempos, quando o mundo parecia renascer depois dos tenebrosos anos que se seguiram à I Guerra Mundial. Mas, com o crash da Bolsa de Nova York, Bert perde tudo que havia conquistado com os empreendimentos imobiliários que mantinha sob o nome de Pierce Inc. À derrocada financeira segue-se a pessoal: sua mulher, Mildred, o expulsa de casa, ao descobrir que ele tem uma amante, Maggie Biederhof. Bert deixa a confortável casa e o carro para a mulher, que sozinha terá que cuidar das duas filhas, Veda e Ray. Para ganhar algum dinheiro, Mildred tenta se empregar como empregada doméstica e governanta, mas acaba rejeitando a ideia, por orgulho e receio de causar humilhação nas filhas. Afinal, aconselhada pela amiga e vizinha, Sra. Gessler, aceita emprego de garçonete num restaurante em Hollywood. Ali, descobre que poderia faturar mais dinheiro vendendo tortas que fazia em casa. Inicialmente, fornece-as para o restaurante onde trabalha e para moradores de Glendale, mas depois, acatando sugestão de um ex-amigo de Bert, Wally Burgan, ela resolve abrir seu próprio negócio. Poucos dias antes da inauguração, ela conhece Monty Beragon, descendente dos primeiros colonizadores da Califórnia, que vive da renda proporcionada pelas ações de uma empresa de exportação de frutas - e também perde sua filha mais nova, Ray (os capítulos 7 e 8, que narram a agonia e a morte de Ray conformam algumas das páginas mais tristes que já li). Abalada, entretanto Mildred tem que tocar a vida e agarra-se à filha mais velha, Veda, que, desde criança, mostrava-se egocêntrica, petulante e cruel. Enfim, os negócios de Mildred engrenam: ela abre filiais de seus restaurantes e aposta no pretenso talento de Veda para o piano. Enquanto a mãe se esgota de manhã à noite, Veda frequenta as altas rodas da burguesia de Pasadena acompanhando Monty. Após a morte de seu tutor musical, Veda procura outro, o famoso Sr. Treviso, que revela a ela - e a Mildred - que não possui nenhum talento para o piano. Veda entra em crise, rompe com a mãe - a relação entre as duas é tensa, a mãe eivada de culpas, a filha, cheia de acusações -, muda-se para Hollywood e descobre-se cantora - uma grande cantora, uma "coloratura", como a denomina Sr. Treviso, que revela seu real talento. Enquanto os negócios de Mildred avançam, os de Monty naufragam - ele passa a viver em um quarto minúsculo numa mansão em decadência - e eles se separam. Mildred procura reaproximar-se de Veda, sem sucesso, até que lhe vem uma ideia: casar-se com Monty, comprar sua mansão, e oferecer a Veda a vida de glamour, luxo e ostentação que ela tanto almeja. Para realizar seu projeto, endivida-se. E aí começa a sua própria derrocada: ela não consegue cumprir suas obrigações e os credores passam a pressioná-la. Ela perde tudo, inclusive Veda, que, descobre, tem um caso com Monty e com ele foge para Nova York para dedicar-se à sua carreira musical. Falida, Mildred casa-se novamente com Bert, que manteve-se sempre ao seu lado, e recomeça tudo de novo, vendendo tortas para a vizinhança. O livro pode ser assim resumido: Mildred "sentia medo de Veda, de seu esnobismo, de seu desprezo, de seu espírito inquebrantável. E temia algo que ocultava sempre sob a falsa sofisticação de Veda: um desejo frio, cruel e vulgar de torturar a mãe, de  humilhá-la e, acima de tudo, de magoá-la. Mildred ansiava desesperadamente pelo carinho da filha (...) mas só recebia dela uma contrafação afetada, teatral. Tinha que aceitar esse prêmio de consolação, tentando não vê-la como realmente era" (p. 97). Uma história magnífica!


 Entre aspas:

"(...) os cínicos são cínicos demais para sonhar" (pág. 183)

 

Avaliação: OBRA-PRIMA 

(Dezembro, 2020)


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