quinta-feira, 30 de julho de 2020

Aniquilação (2003)
Imre Kertész (1929-2016) HUNGRIA         
Tradução: Ernesto Rodrigues                
Lisboa: Ulisséia, 2003, 88 páginas








Keserü tem por volta de 40 anos, é editor de literatura de uma publicação oficial, durante o regime comunista na Hungria, e está há anos separado da mulher e dos filhos. Por conta de seu círculo de amizades, conhece B., um tradutor erudito e esquivo. Sobrevivente de Auschwitz, onde teve, ainda bebê, a numeração marcada na coxa, por ser o antebraço muito pequeno, B. vive afastado de todos num bairro do subúrbio. Um dia, Keserü é convocado por Sara, mulher de um dos amigos do grupo, para ir com urgência à casa de B., onde descobre que ele se matara e que Sara era sua amante. Pouco a pouco, vamos compreendendo a solidão radical de B., incapaz de lidar com o trauma dos campos de extermínio nazistas. Keserü acredita que B. deixou escrito um romance, que seria a chave de compreensão de sua total desilusão em relação ao ser humano, e procura a ex-mulher dele, Judit. Descobrimos então que ele realmente escreveu o livro, mas que entregou-o a Judit para que o queimasse. A descoberta de que Judit ainda mantinha-se espiritualmente ligada a B. leva a que seu marido Ádám se separe dela. A narrativa, embora curta, possui uma estrutura formal bastante complexa, um livro dentro do livro - uma peça de teatro - que descreve e antecipa fatos que realmente ocorreram, com mudanças bruscas de foco narrativo. 





 Avaliação: BOM 

(Julho, 2020)

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Johnny vai à guerra (1939)
Dalton Trumbo (1905-1976) ESTADOS UNIDOS        
Tradução: José Geraldo Couto               
São Paulo: Biblioteca Azul,  2017, 231 páginas





Joe Bonham, um jovem atlético e saudável do interior do Colorado, tem cerca de 19 anos quando os Estados Unidos entram na I Guerra Mundial, em 1917. Após quatro meses de treinamento e onze meses no front na França, uma bomba o atinge, faltando menos de dois meses para o fim do conflito, e ele acorda numa cama de hospital, tornado "(...) um homem sem pernas nem braços nem orelhas nem olhos nem nariz nem boca mas que respira e come e está tão vivo quanto você e eu" (p. 90). É a partir desse lugar sem lugar, desse tempo sem tempo, que o narrador constrói um libelo radical contra todas as guerras. O protagonista relembra sua infância e adolescência, evoca o pai fracassado e a mãe amorosa, a namorada com quem ele provavelmente iria se casar, recorda episódios fundadores de sua passagem para a vida adulta, tudo isso sem qualquer perspectiva de romper com a sua solidão, a mais profunda solidão, que é a impossibilidade de comunicação. Johnny ocupa o momento presente, quando os dias são absolutamente iguais, sem nem mesmo ter certeza se vive ou se sonha. E passa então a "(...) falar pelos mortos porque era um deles" (p. 119). Livro tristíssimo e arrebatador, primoroso na construção de um discurso inteiramente despido de vírgulas - sem que isso cause qualquer tipo de ruído na compreensão das frases -, acaba, no entanto, nos levando a um curioso paradoxo. A defesa veemente do pacifismo é também a defesa intransigente do individualismo (v. Cap. X). Como alega à pág. 34, "(...) essa guerra não era sua", o individualismo exacerbado pode nos empurrar para o alheamento, para a a defesa da tese de que nenhum combate é válido, nos paralisando, mesmo se vivemos sob um regime autoritário. Esse perigo hermenêutico é tão claro que o livro, tendo sido lançado no ano do início da Segunda Guerra Mundial, acabou sendo adotado também pela... extrema-direita... Tanto que o Autor preferiu, ao esgotar a  primeira edição, não relançá-lo até a derrota do nazifascismo. E, depois, também impediu sua circulação durante a Guerra da Coreia, só retornando na época da Guerra do Vietnã - o próprio Autor conta isso no prefácio... 


Observação:

O Autor usa um sobrenome do pai, Bonham, para nomear o protagonista do romance e certamente evoca sua própria infância e adolescência no Colorado para ilustrar as memórias do personagem.



 Avaliação: BOM 

(Julho, 2020)


quarta-feira, 15 de julho de 2020

Metal do diabo (1946)
Augusto Céspedes (1903-1997) BOLÍVIA        
Tradução: Ana Arruda               
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, 271 páginas





Este livro é um ótimo exemplo de como boas intenções quase nunca redundam em boa literatura. O Autor se propõe a escrever um romance baseado na biografia do miliardário  boliviano Simón Patiño, cognominado "O Rei do Estanho", personalidade incontornável da trágica história político-econômica latino-americana. Na ficção, o empresário torna-se Zenon Omonte e, tirando esse detalhe, a narrativa segue de perto a trajetória pessoal daquele que foi em sua época um dos homens mais ricos (e mais odiados) do planeta. O narrador evoca a infância miserável de Omonte na região de Cochabamba; as primeiras tentativas frustradas de exploração das montanhas de Oruro (ele estava em busca de prata); a descoberta de um veio valiosíssimo de estanho, no momento mesmo em que esse minério ganha importância no mundo, principalmente devido aos preparativos para a Primeira Guerra Mundial; o poder que pouco a pouco o arrebata; a mudança para a Europa; as negociatas em que se envolve; a brutalidade com que atua para aumentar o ganho em suas minas; a total falta de empatia com os sofrimentos dos mineiros; a ridícula vida de luxo entre aristocratas europeus, que tenta imitar; a avareza para com os empregados, ao mesmo tempo em que age com imensa prodigalidade para obter coisas fúteis e supérfluas; a manipulação dos políticos bolivianos, em função de seus interesses financeiros; a aliança com o capitalismo internacional preocupado em auferir cada vez mais lucros. Ao mesmo tempo, o Autor descreve a vida miserável e sem perspectivas dos índios submetidos à ganância de Omonte e à crueldade dos métodos usados por seus capatazes. A narrativa, no entanto, é muitas vezes atropelada pela tentativa do Autor de passar uma mensagem de indignação e protesto, e para isso recorre a notas de rodapé, que ilustram, com fatos reais, o que vai narrado (na maioria das vezes, totalmente descontextualizados), e a discussões infindáveis e incompreensíveis, onde são usados termos técnicos (da mineração) ou jargão do mundo político-financeiro. Ao final, o livro fica a meio caminho entre a ficção e o ensaio jornalístico, não sendo nem um nem outro... O Autor perdeu, assim, a oportunidade de construir um excelente perfil de um personagem-símbolo da inacreditável tragédia da America Latina - porque, quando deixa de lado o discurso panfletário, o livro alcança altitudes literárias.



Observação:

1) No afã de julgar tudo e todos, o Autor não se intimida nem mesmo de condenar colegas, sem mostrar provas - o que parece desonesto -, como faz numa nota de rodapé à pág. 270, em que escreve: "A edição da mais infamante história da Bolívia, escrita por Alcides Arguedas, autor de Povo enfermo, foi subvencionada por Simón I. Patiño". 
Alcides Arguedas (1879-1946) é autor do romance Raça de Bronze (1919), escolhido para compor a Colección Archivos, da Unesco, na qual consta como volume 11.


2) Entre os comensais de Zenon Omonte, na mansão alugada na Champs Elisèe, aparece "um potentado brasileiro, em cujos dedos de orangotango os grãos de café se tinham convertido em diamantes" (p. 112-113)


 Avaliação: BOM 



(Julho, 2020)

terça-feira, 7 de julho de 2020

Terra alheia (1954)
Eduardo Caballero Calderón (1910-1993) COLÔMBIA        
Tradução: Jurema Finamour               
São Paulo: Brasiliense, 1968, 168  páginas






Este livro insere-se no movimento de intelectuais latino-americanos que buscou, a partir de meados do século XX, compreender e lutar contra as desigualdades sociais que marcam tragicamente a história deste subcontinente, lembrando, curiosamente, o chamado "regionalismo" brasileiro, misto de engajamento político e naturalismo estético. Neste romance, acompanhamos um período da vida de Siervo Joya, um sem-terra que, após cumprir o serviço militar, volta à sua região de origem, "numa nesguinha do Chicamocha, ao pé da Peña Morada, num lugar que se chama Vega del Pozo" (p. 16), na província colombiana de Boyacá. Siervo sonha em adquirir a pequena propriedade onde nasceu e cresceu. "Siervo jamais foi menino. (...) Quando pôde aguentar-se sobre as pernas, caminhava, despido da cintura para baixo, com um roupão sebento que lhe chegava ao umbigo e, nessa vestimenta, o mandavam cuidar das cabras no penhasco" (p. 58). Ingênuo, e ao mesmo tempo brutalizado, Siervo aceita sem discutir os percalços que a vida lhe impõe. Ao desembarcar, é encorajado a levar Tránsito para morar com ele - ela tinha sido mulher de um bandido morto pela polícia e desta relação resultara um bebê. A narrativa acompanha o cotidiano miserável destes seres animalizados, que são mantidos pelos patrões em uma submissão análoga à servidão medieval. Além da denúncia da situação absurda dos camponeses, mergulhados numa existência sem qualquer perspectiva de mudança, o narrador relata, como pano de fundo, a luta entre liberais e conservadores, cujas diferenças ideológicas não alcançam proporcionar diferenças significativas no universo da população pobre. Aliás, é numa destas contendas que Siervo assassinará um membro do partido conservador e terminará preso, sem julgamento, por vários anos. Quando foge, e tenta retomar a pequena lavoura mantida em sua ausência por Tránsito, estoura a guerra civil, cruel, bárbara, incompreensível. Findo o conflito, Siervo consegue pagar um sinal para a compra do "seu" pedaço de terra, que, liricamente denominou El Bosque. Mas o destino de Siervo já estava selado: morrerá antes mesmo de reassumir a plantação, assim como morreram seus filhos, pois assim é a história latino-americana, um presente sem futuro. Ou, como afirma a certa altura Siervo Joya: "Cachorra de vida! Vai-se todinha embora sem que a gente perceba e sem chegar a entender nunca o que se passa" (p. 99).



 Avaliação: BOM 


(Julho, 2020)