domingo, 28 de junho de 2020

Morrer sozinho em Berlim (1947)
Hans Fallada (1893-1947) - ALEMANHA        
Tradução: Claudia Abeling               
São Paulo: Estação Liberdade, 2018, 639  páginas



Este livro é a prova inconteste de que é possível engendrar grande livros em situações absolutamente excepcionais. Neste caso, trata-se, sem dúvida, de um dos melhores livros que li em toda a minha vida. Publicado em 1947, e escrito no ano anterior, portanto, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, descreve, de forma brilhante, a vida de cidadãos comuns sob a vigência do regime nazista, e a resistência, por vezes patética, à brutalidade, à insanidade, à insensibilidade que a todos contamina. O casal Otto e Anna Quangel, trinta anos de casados, "sempre em harmonia, ele silencioso e calmo, ela trazendo um pouco de vida à casa" (p. 23), vive num prédio na Jablonskistrasse, em Berlim, sem contato com quase ninguém, tentando se manter à margem das imposturas da ditadura de Adolf Hitler. Em 1940, após receber uma carta-padrão informando a morte do único filho na frente de batalha, aquilo que neles era indignação silenciosa transforma-se em vontade de realizar algo que pudesse abalar as pessoas. Então, Otto, um sujeito de seus cinquenta anos, profissional respeitado, ex-proprietário de uma pequena marcenaria, falida em 1930, agora encarregado na Movelaria Krause (que, seguindo o curso da guerra, se transformará em fábrica de caixas para bombas e por fim em fábrica de caixões), insuspeito em sua devotada neutralidade e dono de um ritmo de vida obcecadamente rotineiro, resolve agir. Com a anuência de Anna, ele passa a escrever cartões com palavras de ordem contra o governo, o que se constitui crime de alta traição, que abandona em locais aleatórios. A regularidade com que esses cartões são entregues à polícia acaba chamando a atenção da Gestapo, que destaca um delegado, Escherich, para investigar e prender o subversivo. Otto estava convencido de que, "mesmo que seu efeito seja somente o de essa gente perceber novamente que ainda há resistência, que nem todos seguem o Führer. (...) Talvez façamos os outros pensarem em escrever cartões parecidos. No final, serão dezenas, centenas, sentados, escrevendo... Vamos soterrar Berlim com os cartões, vamos interromper o curso da máquina, vamos derrubar o Fürher, acabar com a guerra" (p. 174). Com o passar do tempo, Otto encoraja-se a passa também a escrever cartas contra Hitler e o regime nazista. Aos poucos, o delegado Escherich, usando de métodos científicos, traça o perfil daquele homem tão procurado e vai se acercando dele. Até que, por um descuido, em 1942, Otto é detido e levado para a prisão, assim como Anna. É quando Otto, por meio do delegado, descobre que, dos 276 cartões e nove cartas espalhadas por Berlim, ao longo de dois anos, apenas 18 não foram entregues à polícia. O delegado o invectiva, dizendo que ele conseguiu apenas trazer "medo e aflição" às pessoas que encontravam os cartões: "Elas quase se desmanchavam de terror, alguma foram presas e conheço um que, com certeza, se suicidou por causa deles" (p. 447). Decepcionado, frustrado, Otto admite a derrota "nunca soube avaliar as pessoas direito" (p. 448), mas ao mesmo tempo tem consciência de ter feito a sua parte, lembrando as palavras de seu colega de cela, o maestro Reichhardt, de que "todo homem morre sozinho. Mas não é por isso que estamos sozinhos (...) não é por isso que vamos morrer em vão. Nada acontece por acaso neste mundo, e, como lutamos pela justiça contra a violência cega, acabaremos vencedores" (p. 509). Na prisão, Otto e Anna serão terrivelmente torturados e Anna, sem querer, mencionará os nomes de Trudel Baumann, ex-noiva do filho, agora casada com Karl Hergesell, e de seu irmão, Ulrich. Presos, Karl morrerá em decorrência das torturas, Trudel se suicidará e Ulrich enlouquecerá. Curiosamente, o delegado Escherich, que durante todo o tempo tenta obsessivamente encontrar aquele que chama de "solerte", torna-se o único homem convertido pelos cartões de Otto Quangel e, não suportando compreender seu papel na máquina de tortura e morte do regime nazista, estoura os miolos. Ao final, Otto é decapitado e Anna morre nos escombros da prisão, após um bombardeio da aviação aliada. O romance é escrito como uma espécie de thriller policial, com reviravoltas, mas sem malabarismos, pois já sabemos, desde o princípio, do resultado daquela ação quixotesca, de um mosquito que quer lutar contra o elefante, como afirma o delegado Escherich: "um simples trabalhador quer lutar contra o Führer, que é apoiado pelo partido, o Exército, a SS, a SA?" (p. 448). De uma maneira impressionante, o narrador opera com dezenas de personagens, profundos em sua complexidade, explicitando as várias facetas da Alemanha sob o jugo nazista - o antissemitismo, as milícias formadas por ladrões, assassinos e corruptos, o medo, a deduragem, o clima de terror, algo que o honesto juiz Fromm descreve como "uma metade do povo aprisiona a outra metade (...) Quanto pior melhor. O fim chega mais rápido" (p. 441). Mas, no meio dessa barbárie, há lugar para pequenos grandes atos heroicos, como o de Otto e Elise Hampel, nomes verdadeiros das pessoas reais que inspiraram o romance.



 Avaliação: OBRA-PRIMA 

(Junho, 2020)

domingo, 7 de junho de 2020

Espere a primavera, Bandini (1938)
John Fante (1909-1983) ITÁLIA        
Tradução: Roberto Muggiatti              
Rio de Janeiro: José Olympio, 2015, 206  páginas





É fim de ano na pequena e gelada cidade de Rocklin, no Colorado. A família Bandini luta para vencer mais um inverno de privações. O pai, Svevo, pedreiro, não consegue trabalho, por causa do mau tempo, e zanza de um lado para o outro, perdendo o pouco dinheiro que ainda resta jogando no Salão de Bilhar Imperial e bebendo com Rocco Saccone, amigo de infância, dos tempos em que moravam numa aldeia perdida nos Abruzzos, na Itália. Em casa, a mulher, Maria, e seus três filhos, o revoltado e romântico Arturo, o pio August e o pequeno hipócrita Federico, tentam seguir a vida, frequentando a escola católica, onde estudam de favor, e enfrentando os problemas do cotidiano - a comida escassa, a vestimenta inadequada para o clima, as constantes brigas entre os pais. Até que, nas vésperas do Natal, Svevo some. Arturo, protagonista da história, apaixonado por Rosa Pinelli, e, mau aluno, envergonhado por ser filho de imigrantes e por sua pobreza, tenta impressioná-la, sem sucesso. Um dia, na rua, Arturo vê o pai passar de carro com uma mulher, Effie Hildegarde, viúva riquíssima - fascinado pelo pai, ele não o condena por tê-los abandonado, e sente até mesmo orgulho por  sabê-lo relacionando-se com uma mulher da alta sociedade, bonita e dona de inúmeros imóveis na cidade. A situação em casa piora cada vez mais, e a família só não morre de fome porque o dono do armazém, sr. Craik, penalizado, fornece alguns mantimentos fiado. Maria, inconformada com a traição de Svevo, começa a agir de maneira errática, ora consumindo os dias sentada em frente à janela da rua, ora arrumando maniacamente a casa. Buscando conquistar Rosa, Arturo rouba um anel da mãe e oferece à amada, que rejeita o presente, chamando-o de ladrão... No dia de Natal, Svevo volta para casa, de sapatos novos e cem dólares no bolso. Mas a mulher o expulsa, arranha seu rosto e queima o dinheiro. Svevo ainda faz nova tentativa de se desculpar com Maria, mas ela o ataca com uma tesoura. Chega o novo ano, as aulas são retomadas e Arturo descobre que Rosa, acometida de uma pneumonia, morreu. Desconsolado, adota um cachorro, que chama de Jumbo, e com ele vai ao encontro do pai,  na casa de Effie Hildegarde. Após discutir com a amante, que xinga o menino de "monstrinho" e de "estrangeiro", Svevo resolve retornar para a família. Em breve, a primavera chegará e com ela a possibilidade de retomar a vida... Uma bela história, complexa, triste, comovente, que retrata, de maneira pouco usual, o cotidiano da classe média baixa norte-americana, em particular dos imigrantes pobres italianos tentando "fazer a América"...


 Avaliação: MUITO BOM 


(Junho, 2020)