quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

A hora dos ruminantes (1966)
José J. Veiga (1915-1999BRASIL 
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, 101 páginas







Trata-se de uma fábula - e, como tal, presa a algumas limitações do gênero. As personagens não se tornam individualidade, mas fornecem tipos para o desenvolvimento da narrativa. Portanto, é uma história que, muito mais que dramas humanos subjetivos, tenta descrever uma situação objetiva envolvendo uma coletividade. No caso, a pequena cidade fictícia de Manarairema, que, um belo dia, vê sua tranquilidade acabar, com a chegada de um grupo de forasteiros que se instalam nos arredores. Eles não se relacionam com ninguém do povoado e pouco a pouco seus estranhos hábitos - os quais, aliás, nunca chegamos a conhecer - vão transformando o que era curiosidade em medo e depois em pavor. Coisas estranhas ocorrem, como a invasão do lugar por cachorros e depois por bois. Tanto uns quanto outros, que chegam às centenas, se instalam em todos os cantos, forçando os moradores a alterar seus hábitos e a passar a viver mergulhados numa realidade completamente absurda. Alegoria sobre a opressão, sobre os regimes ditatoriais, sobre a impotência, sobre a covardia, e sobre, principalmente, como as pessoas acabam se acostumando a qualquer coisa, inclusive a uma situação absolutamente anômala - ou, como afirma o narrador, a certa altura: "desaprovar em silêncio é pouco menos do que aprovar" (p. 38). Uma boa reflexão para esses dias cada vez mais sombrios.



Avaliação: BOM

(Fevereiro, 2019)

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Contos novos  (1947)
Mário de Andrade (1893-1945BRASIL 
Belo Horizonte: Villa Rica, 1993, 113 páginas




Publicado postumamente, este livro reúne nove contos, os melhores da produção do Autor. Ainda assim, trata-se de uma coletânea bastante irregular, o que, aliás, é uma marca de sua extensa obra, bastante superestimada pela crítica. Aqui, convivem uma obra-prima da narrativa breve brasileira, "O peru de Natal" - que possui um primoroso primeiro parágrafo* -, e um texto fraquíssimo, que nem chega a se constituir como conto, "O ladrão". Os relatos que cuidam da questão social - "Primeiro de maio" e "O poço" -, se destacam, assim como "Frederico Paciência", uma instigante história de homossexualidade juvenil**. Prejudicado por maneirismos da linguagem modernista, é literatura que envelhece muito rapidamente.



* Ei-lo: "O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas facilidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro sangue dos desmancha-prazeres". (pág. 75)


** Em 2007, quando organizava a antologia Entre nós - contos sobre a questão da homossexualidade, lançada pela Língua Geral, incluí esse texto na lista original, mas os detentores dos direitos autorais, à época, proibiram a sua utilização. 



Avaliação: BOM


(Fevereiro, 2019)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

200 crônicas escolhidas  
Rubem Braga (1913-1990BRASIL 
Rio de Janeiro: Record, 2005, 488 páginas





Rubem Braga é um Autor inclassificável. Criou um gênero singular - que não é crônica, que não é conto, que não é poema em prosa -, que ninguém conseguiu dar continuidade. É um texto único, profundo, lírico, atemporal, que nos arrebata e comove, sem nunca ser piegas. O Autor assim definiu, de maneira modesta, o seu ofício: "Há homens que são escritores e fazem livros que são verdadeiras casas, e ficam. Mas o cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai" (p. 236). Talvez pudéssemos concordar que essa definição se adequa à maioria dos cronistas - mas não a ele. Sua obra - que o Autor considerava "vã e cansativa" (p. 391) - permanecerá, porque extrapola o fato cotidiano no qual se debruça, alçando voos metafísicos que a literatura só raramente atinge (e isso, com simplicidade, com modéstia até). E é curioso que, pouco a pouco, e pode-se notar bem neste livro, o Autor vai compreendendo melhor o seu ofício - e, ao contrário do que normalmente ocorre, quanto mais o tempo passava, melhores ficavam seus textos. Não vou aqui elencar os destaques entre as crônicas, pois seriam muitos e formariam apenas uma sucessão de títulos, mas, só para termos uma ideia, se do primeiro título, O conde e o passarinho, de 1936, não salientaríamos nenhum texto em especial, do último, A traição das elegantes, um em cada quatro é de obrigatória inserção em qualquer antologia das obras-primas da literatura brasileira. 




Entre aspas: 

"(...) matamos, por distração, muitas ternuras". (pág. 201)

"Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas modernos que procuram esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem a muito equívoco e muita bobagem. Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem mais profundas..." (pág. 392)




Avaliação: MUITO BOM

(Fevereiro, 2019)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Contos e novelas 
João Alphonsus (1901-1941BRASIL 
Rio de Janeiro: Imago, 1976, 249 páginas


Reunião de três livros - Galinha cega (1931), A pesca da baleia (1942) e Eis a noite! (1943) - num total de dezoito contos, além de um inédito, "O ladrão". A morte prematura do Autor claramente interrompeu uma carreira em ascensão. Se nos dois primeiros livros, as narrativas são prejudicadas por concessões a cacoetes modernistas - no primeiro, mais que no segundo -, a derradeira coletânea já demonstra uma regularidade de execução. Ainda assim, de Galinha cega salva-se o conto-título, que descobre ternura num carroceiro bruto, e de A pesca da baleia destacam-se duas histórias dignas de antologias: o conto-título, que evoca o tédio e o sem sentido da vida, e "Sardanapalo", um terrível caso de crueldade gratuita. Mas é em "Eis a noite!" que encontramos o Autor em sua integral maturidade literária. Todos os oito contos que conformam o volume são bons, mas "Mansinho" e "Foguetes ao longe" são ótimos, duas histórias eivadas do mais alto lirismo e compreensão humana. Os personagens do Autor, em geral, são os "homo burocraticus" (p. 221), vivendo em pequenas cidades do interior de Minas Gerais ou nos subúrbios de Belo Horizonte, à exceção de "A pesca da baleia", que se passa em Ponta de Areia, início da extinta Estrada de Ferro Bahia-Minas.


Curiosidade: 

O Autor era filho de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), um dos maiores poetas brasileiros.





Avaliação: BOM

(Fevereiro, 2019)