segunda-feira, 27 de abril de 2020

Os prisioneiros (1963)
Rubem Fonseca (1925-2020) - BRASIL
           Rio de Janeiro: GRD, 1963, 145 páginas






Esta coletânea reúne 11 contos, que, sendo o primeiro livro do Autor, já apontam para os temas que ele irá tratar, obsessivamente, ao longo de sua obra. Homens e mulheres marginalizados, fascínio por assassinatos e pelo submundo do crime, a fixação no tédio e na inutilidade de tudo - além do gosto pelo vocabulário preciso e pela trama policialesca. Não tivessem nenhum outro mérito - e têm - essas narrativas inauguram a literatura urbana moderna brasileira  - até então os escritores recusavam-se em retratar o caos das grandes cidades, limitando-se a tramas subjetivas que transcorriam em ambientes burgueses ou pequeno-burgueses. O Autor antecipa, com esse livro, aquilo que viria a se constituir, ao longo do fim do século XX, o caldo de cultura para a tragédia sócio-político-econômica que enfrentaríamos no século XXI. As histórias são expostas cruamente, mas, em seus melhores momentos, transportam uma carga de lirismo que elevam-nas a experiências estéticas poucas vezes alcançadas. Contos como "Fevereiro ou março", "Gazela" e "O inimigo" - pequenas jóias obrigatórias em qualquer antologia - são suficientes para demonstrar a envergadura do Autor, um dos mais importantes da história da literatura brasileira.




 Avaliação: MUITO BOM


(Abril, 2020)

terça-feira, 21 de abril de 2020

A Praça do Diamante (1962)
Mercè Rodoreda (1908-1983) ESPANHA      
Tradução: Luis Reyes Gil            
São Paulo: Planeta, 2019, 253 páginas





Escrito em catalão, esse romance narra a comovente trajetória de Natàlia, apelidada de Colometa, vivendo os atribulados anos 1930 e 1940 em Barcelona. Jovem, Natàlia conhece o impetuoso Quimet na Praça do Diamante, num dia de festas, e, de tanto ele insistir em namorá-la, ela acaba desmanchando seu noivado com o cozinheiro Pere. Colometa e o marceneiro Quimet iniciam então uma relação conturbada, mas intensa, que rapidamente desemboca em casamento e dois filhos, Antoni (Toni) e Rita. Machista, egocêntrico e imaturo, Quimet alimenta quimeras - compra uma motocicleta e enche o apartamento de pombos, com a venda dos quais imagina ganhar dinheiro, o que nunca acontece. O casal vive rodeado pelos amigos de Quimet, Cintet e Mateu, enquanto Natàlia tem em dona Enriqueta uma espécie de refúgio materno. Para auxiliar no orçamento doméstico, Natàlia emprega-se na casa de uma família burguesa, e assim o casal vai levando uma vida que, se não é de fartura, também não é de miséria. Até que explodem os conflitos da Guerra Civil, que opôs republicanos, comunistas e anarquistas aos fascistas e monarquistas. Os amigos Quimet, Cintet e Mateu aderem aos anti-fascistas e seguem para o front. Natàlia é demitida, por seu marido estar envolvido com os inimigos de seus patrões, e sua vida sofre uma brusca transformação. Convivendo com a falta dinheiro, as privações rondam sua casa: "Passamos uma época tão triste que nem dá para explicar: a gente ia cedo para a cama para não perceber tanto que não havia janta. No domingo não levantávamos cedo para não sentir tanta fome" (p. 159). Então, um dia recebe a notícia de que Quimet havia morrido em combate - assim como seu amigo Cintet, enquanto Mateu é fuzilado pelos fascistas. As coisas pioram bastante e, sem perspectivas, Natàlia resolve se matar e matar os filhos: "(...) a gente não fazia nenhum mal a ninguém e não tinha ninguém que gostasse da gente" (p. 173), constata, com profunda amargura. Ela decide então comprar uma garrafa de ácido nítrico, mas acaba recebendo uma proposta de trabalho do merceeiro, também chamado Antoni. Após alguns meses convivendo com ele - cuidando de sua casa -, Antoni a pede em casamento, explicando que, como era um mutilado de guerra - "(...) sou inútil aqui no meio" (p. 196) -, assumiria a família como sua. E assim ocorre:  Natàlia une-se a ele, que oferece a todos o seu melhor, em termos afetivos e financeiros. O tempo passa, Natàlia vê Rita se casar e Toni prestar o serviço militar. A cena final é uma das mais lindas da literatura mundial: Natàlia se dirige ao antigo apartamento, grava seu nome na porta de madeira, pondo um ponto final naquela vida anterior, e assumindo de vez o amor por Antoni, por quem, até então, conseguira ser apenas grata. "Tive que me fazer de cortiça para poder seguir em frente, porque se em vez de ser de cortiça com coração de neve tivesse continuado como antes, de carne que dói quando a gente belisca, não teria conseguido atravessar uma ponte tão alta e tão estreita e tão comprida" (p. 164). Belíssima história, narrada na primeira pessoa, que, numa simbiose perfeita, mostra como as trajetórias pessoal e coletiva necessariamente se imbricam. 



 Avaliação: OBRA-PRIMA


(Abril, 2020)

terça-feira, 14 de abril de 2020

A última tentação (1951)
Nikos Kazantzákis (1883-1957) - GRÉCIA      
Tradução: Marisa Ribeiro Donatiello           
São Paulo: Grua, 2015, 517 páginas





O Autor reescreve a história dos três últimos anos de vida de Jesus Cristo, usando os Evangelhos como base, mas tomando liberdade para criar novas cenas e insuflar características próprias aos personagens. Segue bem de perto o desdobramento da narrativa tradicional, mas dando ao protagonista uma humanidade - melhor, uma carnalidade - que, se o aproxima de nós, leitores, ao mesmo tempo afasta-o dos preceitos canônicos (tanto que o livro esteve no Index das igrejas católicas e ortodoxa por muitos anos, o que demonstra a estupidez e o obscurantismo das religiões, ou pelo menos de seus dirigentes). A questão mais relevante do romance é trazer à tona um sujeito que contradiz, inicialmente, todas as expectativas aguardadas para um ser divino. Jesus mora em Nazaré com sua mãe, Maria, e seu pai, José, paralítico, e tem por ofício fabricar cruzes para os romanos crucificarem os judeus rebelados. Pouco a pouco, ele vai tomando consciência de que pode ser o Messias tão aguardado e tão desejado naqueles tempos conturbados, de ocupação romana e de opressão pela própria elite corrupta que dominava Jerusalém. Então, angustiado e indeciso, ele sai à procura de um sinal que confirme ou não que seria ele mesmo o Filho do Homem que iria libertar o povo de Israel. Quando finalmente se convence de que é o Escolhido, começa a pregação itinerante e lidera um bando de espoliados - pescadores, pastores, pequenos comerciantes -, arregimentando como seu braço-direito Judas, um ativista zelote, que recebe, segundo o entrecho imaginado pelo Autor, a pior incumbência, a de trair Jesus para que ele pudesse cumprir o seu papel, de morrer pelos homens, livrando-os de todos os pecados e para que pudessem ressuscitar, após a morte, no Reino dos Céus. Antes ainda, já na cruz, Jesus sofre uma última tentação de Satanás: ao invés de morrer crucificado, por que não viver uma vida normal, casar, ter filho, netos, desfrutar enfim das coisas terrenas? É neste sonho-tentação que encontra com Paulo - que na minha opinião é o verdadeiro edificador do Cristianismo - e ouve dele uma terrível sentença: "(...) não estou nem um pouco preocupado com verdades e mentiras, se o vi ou não, se foi crucificado ou não. Com obstinação, paixão e fé, eu crio a verdade. Não luto para encontrá-lo, eu o construo" (p. 493-494). O romance defende uma tese interessante - a profunda humanidade de Cristo -, mas que perde a força como ficção, porque o fio da história não nos traz surpresas, porque a linguagem usada (que tenta emular a linguagem bíblica, poética e fantástica) esgota-se em si mesma, porque os personagens - mesmo Jesus em suas idas e vindas - são tipos que agem segundo um plano pré-concebido. 


Entre aspas:

"(...) as palavras nunca conseguem esvaziar o coração do homem e aliviá-lo, só o silêncio (...)" (pág. 369-370)

 Avaliação: BOM


(Abril, 2020)


quinta-feira, 2 de abril de 2020

O Anjo Azul (1905)
Heinrich Mann (1871-1950) ALEMANHA      
Tradução: Erlon José Paschoal           
São Paulo: Estação Liberdade, 2002, 257 páginas






O professor Raas - apelidado de Unrat (Lixo, em português) - dá aulas de gramática e literatura clássica no ginásio local há 25 anos (o lugar não é mencionado diretamente, mas trata-se de Lübeck, cidade-natal do Autor). Ele conduz suas turmas com o autoritarismo e o sadismo inerentes aos medíocres. Ressentido, o mestre-escola persegue os alunos, não só dentro do recinto das salas de aula, como também julga-os pelo que fazem extramuros - defensor que é de "obediência estrita e costumes rígidos" (p. 43). Há anos a fama de moralista empedernido de Unrat provoca nos habitantes um misto de desprezo e ironia. A vida de Unrat, no entanto, muda, quando ele resolve averiguar a conduta de três alunos "suspeitos": o aristocrata rural von Ertzum; o proletário Kieselack; e o burguês Lohmann. A pista para as investigações é um poema inacabado, escrito por Lohmann, interceptado pelo professor, dedicado a uma musa chamada Rosa Fröhlich, que, a princípio, ele julga ser uma artista de teatro - sua busca por ela é hilária. Até que finalmente descobre que trata-se de uma cantora de cabaré, do cabaré que empresta o nome ao título do livro. Unrat, um homem que "não fumava muito, e raramente bebia; não tinha nenhum dos vícios burgueses" (p. 32), acaba por envolver-se pateticamente com Rosa, e, pouco a pouco, afunda-se numa espiral de autopunição, sadomasoquismo e vingança que o leva à demissão do emprego. Casa-se então com Rosa - para escárnio da cidade - e transforma sua moradia em um local "onde se jogavam altas quantias, bebia-se caro e onde se encontravam pessoas do sexo feminino que não eram totalmente prostitutas, mas também não eram damas; onde a dona da casa, uma mulher casada, a esposa do professor Unrat, cantava maliciosamente, dançava de modo inconveniente, e, quando se agia corretamente, era até mesmo possível tê-la por alguma bagatela" (p. 202). Por meio do comportamento liberal de Rosa, o professor atrai para o bordel que virou sua casa os mais diversos tipos, entre eles vários de seus ex-alunos, muito bem postos na sociedade, levando-os à ruína pelo jogo, pelos presentes ofertados a Rosa, pelas brigas domésticas provocadas pela frequência àquele lugar - mostrando, de certa maneira, que também o moralismo deles era simples verniz. Assim, Rosa torna-se, para o professor, uma arma efetiva para a condenação da sociedade que sempre o menosprezou. Unrat é um personagem desprezível, capaz das piores coisas para se desforrar das humilhações sofridas, até mesmo a sua autodestruição. Caricatura que antecipa o fascismo, o professor Unrat é alimentado pelo ressentimento, que conduz todas as suas ações - muito parecido com o que temos hoje, um tirano medíocre à frente do governo, um lixo humano, que não tem pejo de lançar mão de qualquer subterfúgio para concluir sua obra de perversão.




Curiosidade:

À pág. 179, aparece um brasileiro (que reaparecerá em vários momentos para a frente):
"(...) a família acabou sentando-se, para o café em sua barraca de praia, com dois comerciantes de Hamburgo, um jovem brasileiro e um industrial saxônio".
O brasileiro será um dos apaixonados por Rosa Fröhlich, chegando mesmo a presenteá-la com uma joia caríssima...




 Avaliação: MUITO BOM


(Abril, 2020)


segunda-feira, 30 de março de 2020

Os sonâmbulos - Volume III (1932) 
Hermann Broch (1886-1951) ÁUSTRIA    
Tradução: Marcelo Backes       
São Paulo: Benvirá, 2011, 500 páginas





Este terceiro e último volume da trilogia "Os sonâmbulos" traz como protagonista Wilhelm Huguenau, desertor do exército alemão durante a I Guerra Mundial, um dos mais desprezíveis personagens da literatura mundial: "Huguenau é o homem que age buscando objetivos. Dividiu objetivamente seus dias, conduz objetivamente seus negócios, concebe objetivamente seus contratos e os assina" (p. 120). Estamos em 1918, último ano da guerra, e Huguenau, descendente de uma família de industriais da Alsácia - região eternamente em disputa entre Alemanha e França -, abandona o campo de batalha e surge na cidade de Trier. Ali, de maneira sórdida, aproxima-se do agora major Joachim von Pasenow (protagonista do primeiro volume), que comanda a cidade naqueles tempos de conflito, e o convence a apresentá-lo aos maiorais do lugar, sob o argumento que representa os interesses de um importante grupo capitalista disposto a investir na compra do jornal local, que, segundo ele, não estaria demonstrando patriotismo suficiente. Com sua conversa nacionalista, consegue seu intento e passa a dirigir o jornal, Mensageiro do Eleitorado de Trier, cujo ex-dono é August Esch (protagonista do segundo volume), que se mantém no periódico como redator. Huguenau conduz seus movimentos em Trier com uma mistura de cinismo, hipocrisia e mau-caratismo - a tal objetividade que subintitula esse volume - e enreda em sua teia todos à sua volta. Ao fim, Huguenau assassina Esch durante a sublevação dos prisioneiros, já no final da guerra, um crime sem testemunhas, e, num golpe de sorte, salva a vida de Pasenow e, com isso, embora seu nome conste na lista original de desertores, consegue um salvo conduto. Em Colônia, rouba o dinheiro dos acionistas do jornal e ainda revende sua parte da empresa à viúva de Esch, Frau Hentjen. Huguenau assume a firma do pai, André Huguenau Indústria Têxtil, em Colmar, na Alsácia, tornando-se portanto cidadão francês: "Huguenau viveu sua vida em paz. Era pai de família, sua redondeza elástica se abaulou ainda mais (...) Era cortês com seus clientes, um chefe severo, de zelo modelar para o trabalho, com seus funcionários. (...) Ganhou honras municipais (...) Sua vida era a mesma que seus ancestrais carnais já levavam havia duzentos anos (...)" (p. 457). Se a construção do personagem de Huguenau é verossímil e convincente - a insinuação de seu desejo pedófilo para com Marguerite, uma francesinha criada por Esch, é impressionante! - , o mesmo não se dá com o regresso de Esch e Pasenow, cujas participações neste volume parecem um tanto quanto forçadas. Para estar em Trier, Esch recebe uma "herança imprevisível " (p. 45), e Pasenow encontra-se ali por acaso. Outra personagem conhecida, Frau Hentjen, com quem aliás Haguenau se relaciona sexualmente, numa cena patética, não lembra nem de longe a mulher forte e determinada que casou-se com Esch no segundo volume. As presenças de Esch e Pasenow não se justificam no romance - poderiam ser quaisquer outros, sem prejuízo da trama - e parecem ter a função apenas de amarrar os três volumes. Além disso, a ideia de experimentar diversos gêneros dentro do romance (tratado estético, ensaio filosófico, poesia, etc) não funcionam, servem apenas para provocar dispersão do fulcro principal, assim como os vários núcleos romanescos - a história da paixão impossível entre o judeu Nuchem Sussin e Marie, a moça do Exército da Salvação; a dilaceração psíquica do pedreiro e reservista Ludwig Gödicke; o desencanto do engenheiro e tenente Jaretzki, que teve amputado um braço por conta do gás mostarda;  a "esposa insignificante de um insignificante advogado provinciano" (p. 60), Hanna Wendling - tudo isso fica solto e sem relação intrínseca com a história principal. De qualquer forma, trata-se de literatura de alto calibre, que, de alguma forma, antecipa o horror da II Guerra Mundial, que surgiria na figura do Führer, descrita à perfeição na pág. 58. "É bem provável que seja por isso que ansiamos pelo guia, pelo 'líder', a fim de que ele nos conceda a motivação para um acontecimento que sem ele podemos chamar apenas de demente". 




 Avaliação: BOM


(Março, 2020)

quarta-feira, 18 de março de 2020

Os sonâmbulos - Volume II (1932) 
Hermann Broch (1886-1951) ÁUSTRIA    
Tradução: Marcelo Backes       
São Paulo: Benvirá, 2011, 312 páginas


Este segundo volume da trilogia "Os sonâmbulos" traz como protagonista um contador luxemburguês - e aqui começa a estranheza provocada pelo Autor: raramente encontraremos um romance que tenha como personagem principal um contador ou alguém nascido em Luxemburgo, e, muito menos, claro, um que reúna ambas as características, que seja contador e que tenha como pátria Luxemburgo... Isso é apenas um índice da mudança de tom imposta pelo Autor neste volume. Ao contrário do primeiro, realista, cujo enredo desenvolvia-se entre Berlim e o campo na Prússia, e colocava em questão o embate entre valores aristocráticos ancorados no mundo rural e os novos valores burgueses citadinos, essa segunda parte da trilogia persegue outras atmosferas. Subintitulado "Esch ou A anarquia - 1903", acompanhamos agora a vida de August Esch - o tal contador luxemburguês -, que, ao longo do ano citado, circula entre Colônia e Mannheim, no superindustrializado Vale do Reno. Inicialmente, encontramos Esch, para quem "é preciso haver ordem quando se quer subir na vida" (p. 14), sendo demitido de seu emprego numa pequena distribuidora de vinhos, em Colônia, e mudando-se para Mannheim, por indicação do agitador socialista, Martin Geyring. Nesta cidade, ele começa a trabalhar numa grande companhia de navegação, cujo presidente é nosso velho conhecido Eduard von Bertrand (v. resenha do volume anterior), e fica amigo de seu colega, o inspetor  Balthasar Korn, na casa de quem vai viver.  Korn tenta empurrar sua irmã, Erna, para Esch, mas esse se apaixona, ainda que platonicamente, por Ilona, uma húngara, assistente do atirador de facas Teltscher-Teltini. A "cabeça confusa" de Esch, segundo ótima definição de Geyring (p. 225), busca todo o tempo a graça da redenção, um obscuro sistema próprio místico erótico-religioso, que o empurra de um lado para outro, como se tivesse sido dado a ele a incumbência de "ensinar o rigor da ordem e a disciplina ao bando" (p. 116). Assim, revoltado com a prisão de Geyring, por incitação dos trabalhadores da empresa de Bertrand à greve, Esch se desliga do emprego e torna-se sócio de Gernerth, dono de uma companhia de espetáculos mambembe, onde Teltscher e Ilona se apresentam. Narrado num tom burlesco, a narrativa pouco a pouco abandona o realismo e abraça o fantástico e há mesmo várias passagens inteiramente descompromissadas com a verossimilhança (sendo algumas, comento abaixo, francamente inverossímeis). De regresso a Colônia, Esch volta a frequentar o restaurante da viúva Frau Gertrud Hentjen, enquanto administra as contas de seu novo empreendimento, luta romana entre mulheres. Para esse negócio, que também tem Teltscher como sócio, Esch consegue convencer Erna e um comerciante de charutos, vegetariano e abstêmio, Fritz Lohberg, a investirem um pequeno capital. Afinal, as coisas vão se encaixando, com o suposto beneplácito de Esch: Korn e Ilona se tornam amantes; Erna e Lohberg se casam; e ele mesmo se torna, primeiro, amante da viúva Frau Hentjen, e depois, marido. Gernerth foge com o dinheiro da empresa e Esch desiste de uma obsessiva imigração para os Estados Unidos. Frau Hentjen vende o restaurante e, convencida por Esch, investe num novo empreendimento, um espetáculo teatral em Duisburg, tendo à testa Teltscher, e perde todo o capital. Mas, a essa altura, Esch já se tornara contador-chefe de uma grande indústria de Luxemburgo, onde vivia com Frau Hentjen. Como disse, há momentos absolutamente inverossímeis no livro (mas que, embora isso, não destoam do clima geral do livro). Em sua sanha de consertar o mundo, Esch conhece por acaso, quando anda à procura de mulheres para participar das lutas romanas, um sujeito chamado Harry Köhler, que descobre foi amante de Bertrand (o que confirma as insinuações do volume anterior). De posse dessa informação, ele se desloca até Badenweiller, na Floresta Negra, e ameaça denunciar Bertrand por prática homossexual se ele não pedir a liberdade de Geyring. Estranhamente, Bertrand o recebe e então encetam uma intangível conversa metafísica.  Depois, consumada a denúncia, Bertrand se mata e morre também seu amante, Köhler. (Além de Bertrand, que surge de forma bastante episódica, embora essencial, nesse volume, também nos deparamos com outra personagem do volume anterior, a boêmia Ruzena Hruska, amante de Pasenow, numa brevíssima passagem à pág. 128, quando ela, "gorda e mole", tenta ser aproveitada no elenco das lutas romanas). Esch representa o caos mental desse momento de passagem de século, em que o conservadorismo religioso e as mudanças de hábitos e costumes radicalizam as posições ideológicas.


 Avaliação: MUITO BOM

(Março, 2020)

quarta-feira, 11 de março de 2020

A lenda do Cavaleiro sem cabeça 
 e outros contos (1820) 
Washington Irving (1783-1859) ESTADOS UNIDOS     
Tradução: Júlio Henriques       
Lisboa: Tinta da China, 2008, 173 páginas




Reunião de três contos - "Rip van Winkle", "A lenda do astrólogo árabe" e o que dá título à coletânea. "A lenda do Cavaleiro sem Cabeça" é uma anedota - um causo, destes que se contavam à beira do fogo em noites de lua cheia, em tempos de antanho. Situado no coração da colônia holandesa na Nova Inglaterra - assim como o conto que comentarei na sequência -, narra a disputa entre um "mocetão corpulento, animoso e jovial" (p. 40), Brom van Brunt, e mestre-escola Ichabod Crane, tão desconjuntado que "quem num dia ventoso o visse avançar num morro, ladeira acima, com a roupa a insuflar-se e a esvoaçar-lhe à roda do corpo, bem podia tomá-lo (...) por um espantalho a fugir de um milheiral" (p. 22). Ambos disputam o coração de Katrina Van Tassel, "de universal nomeada, não só pela beleza mas também pelas grandes probabilidades de herança futura" (p. 34). A lenda em questão - a do cavaleiro André, soldado que teve cabeça "arrancada por uma bala de canhão" (p. 17), cujas aparições assustam os camponeses, "correndo a toda a brida por entre as sombras da noite" (p. 17) - só serve como mote para o desfecho da história, uma peça pregada por Brom van Brunt contra o pobre Ichabod Crane, em vingança pela corte que esse fazia à pretendida daquele. Mais interessante é "Rip van Winkle", homem de "insuperável aversão a toda a espécie de trabalho lucrativo" (p. 90), "sempre disposto a cuidar das obrigações de toda a gente menos das dele" (p. 92), e, por isso mesmo, admirado e amado por todos de sua aldeia, exceto por sua mulher. Um dia, após mais uma de suas inúmeras brigas, Rip van Winkle bate em retirada, como sempre, e sobe com seu fiel cão, Lobo, em direção às montanhas Kaatskill, "ramo desmembrado da grande família dos Apalaches" (p. 85). Lá ele tem uma experiência bizarra: guiado por um "homem idoso, baixote, entroncado, de espesso cabelo emaranhado e barba grisalha" vestido com uma roupa "ao antigo estilo holandês" (p. 102) é levado para uma espécie de anfiteatro onde se reúne um "grupo de personagens de singular aparência" (p. 104) que se diverte jogando e bebendo. Rip também prova da bebida, "que lhe pareceu ter muito do sabor da excelente genebra holandesa" (p. 106), e acaba adormecendo. Quando acorda, no que pensa ser a manhã seguinte, regressa à aldeia e descobre que se passaram... vinte anos! A tudo estranha e todos também o estranham, mas acaba por ser reconhecido e reincorporado à comunidade - ele ainda vive muitos anos, na casa de uma de suas filhas, Judith Gardenier, Excelente história contada com lirismo e humor... um tanto quanto misógino... A última narrativa, "A lenda do astrólogo árabe", se desloca no espaço e no tempo - Granada, na Espanha, na época em que essa região era dominada pelos muçulmanos. Trata-se de uma "lenda oriental", gênero muito em voga em dado momento da história literária, que tem como objetivo contar um fato e enfeixar uma moral. O rei Aben Habuz, "conquistador aposentado" (p. 145), que, "mais não desejando do que viver em paz com o mundo inteiro" (p. 145), alia-se a Ibrahim Ebn Abu Ayub, um sábio que, dizia-se, "vivia desde o tempo de Maomé e que era filho de Abu Ayub, o último dos companheiros do Profeta" (p. 146). Segundo a fama, ele havia permanecido muitos anos "estudando com os sacerdotes egípcios as ciências ocultas e, em especial, a magia" (p. 146).  A pedido do rei, o sábio inventa-lhe um mecanismo fantástico para livrar-se do inimigo, recebendo em paga uma caverna nas montanhas, transformada inicialmente em eremitério e, mais tarde, "num sumptuoso palácio  subterrâneo" (p. 155), onde ele vive luxuosamente entre bailarinas "jovens e agradáveis à vista, pois a contemplação da juventude e da beleza reconforta a velhice" (p. 155). Tudo vai bem, até o dia em que surge no reino "uma donzela cristã de inexcedível formosura" (p. 156), uma princesa goda, por quem o rei se toma de amores, apesar de o sábio lhe chamar a atenção de que ela bem poderia ser "uma dessas feiticeiras do Norte (...) que adoptam as formas mais sedutoras para encantar os incautos" (p. 157). Também apaixonado pela donzela, o sábio se vinga do rei, roubando-a e fazendo desaparecer a ambos. Sinceramente, não sei qual seria a moral desta história...




Avaliação: BOM

(Março, 2020)