quarta-feira, 18 de março de 2020

Os sonâmbulos - Volume II (1932) 
Hermann Broch (1886-1951) ÁUSTRIA    
Tradução: Marcelo Backes       
São Paulo: Benvirá, 2011, 312 páginas


Este segundo volume da trilogia "Os sonâmbulos" traz como protagonista um contador luxemburguês - e aqui começa a estranheza provocada pelo Autor: raramente encontraremos um romance que tenha como personagem principal um contador ou alguém nascido em Luxemburgo, e, muito menos, claro, um que reúna ambas as características, que seja contador e que tenha como pátria Luxemburgo... Isso é apenas um índice da mudança de tom imposta pelo Autor neste volume. Ao contrário do primeiro, realista, cujo enredo desenvolvia-se entre Berlim e o campo na Prússia, e colocava em questão o embate entre valores aristocráticos ancorados no mundo rural e os novos valores burgueses citadinos, essa segunda parte da trilogia persegue outras atmosferas. Subintitulado "Esch ou A anarquia - 1903", acompanhamos agora a vida de August Esch - o tal contador luxemburguês -, que, ao longo do ano citado, circula entre Colônia e Mannheim, no superindustrializado Vale do Reno. Inicialmente, encontramos Esch, para quem "é preciso haver ordem quando se quer subir na vida" (p. 14), sendo demitido de seu emprego numa pequena distribuidora de vinhos, em Colônia, e mudando-se para Mannheim, por indicação do agitador socialista, Martin Geyring. Nesta cidade, ele começa a trabalhar numa grande companhia de navegação, cujo presidente é nosso velho conhecido Eduard von Bertrand (v. resenha do volume anterior), e fica amigo de seu colega, o inspetor  Balthasar Korn, na casa de quem vai viver.  Korn tenta empurrar sua irmã, Erna, para Esch, mas esse se apaixona, ainda que platonicamente, por Ilona, uma húngara, assistente do atirador de facas Teltscher-Teltini. A "cabeça confusa" de Esch, segundo ótima definição de Geyring (p. 225), busca todo o tempo a graça da redenção, um obscuro sistema próprio místico erótico-religioso, que o empurra de um lado para outro, como se tivesse sido dado a ele a incumbência de "ensinar o rigor da ordem e a disciplina ao bando" (p. 116). Assim, revoltado com a prisão de Geyring, por incitação dos trabalhadores da empresa de Bertrand à greve, Esch se desliga do emprego e torna-se sócio de Gernerth, dono de uma companhia de espetáculos mambembe, onde Teltscher e Ilona se apresentam. Narrado num tom burlesco, a narrativa pouco a pouco abandona o realismo e abraça o fantástico e há mesmo várias passagens inteiramente descompromissadas com a verossimilhança (sendo algumas, comento abaixo, francamente inverossímeis). De regresso a Colônia, Esch volta a frequentar o restaurante da viúva Frau Gertrud Hentjen, enquanto administra as contas de seu novo empreendimento, luta romana entre mulheres. Para esse negócio, que também tem Teltscher como sócio, Esch consegue convencer Erna e um comerciante de charutos, vegetariano e abstêmio, Fritz Lohberg, a investirem um pequeno capital. Afinal, as coisas vão se encaixando, com o suposto beneplácito de Esch: Korn e Ilona se tornam amantes; Erna e Lohberg se casam; e ele mesmo se torna, primeiro, amante da viúva Frau Hentjen, e depois, marido. Gernerth foge com o dinheiro da empresa e Esch desiste de uma obsessiva imigração para os Estados Unidos. Frau Hentjen vende o restaurante e, convencida por Esch, investe num novo empreendimento, um espetáculo teatral em Duisburg, tendo à testa Teltscher, e perde todo o capital. Mas, a essa altura, Esch já se tornara contador-chefe de uma grande indústria de Luxemburgo, onde vivia com Frau Hentjen. Como disse, há momentos absolutamente inverossímeis no livro (mas que, embora isso, não destoam do clima geral do livro). Em sua sanha de consertar o mundo, Esch conhece por acaso, quando anda à procura de mulheres para participar das lutas romanas, um sujeito chamado Harry Köhler, que descobre foi amante de Bertrand (o que confirma as insinuações do volume anterior). De posse dessa informação, ele se desloca até Badenweiller, na Floresta Negra, e ameaça denunciar Bertrand por prática homossexual se ele não pedir a liberdade de Geyring. Estranhamente, Bertrand o recebe e então encetam uma intangível conversa metafísica.  Depois, consumada a denúncia, Bertrand se mata e morre também seu amante, Köhler. (Além de Bertrand, que surge de forma bastante episódica, embora essencial, nesse volume, também nos deparamos com outra personagem do volume anterior, a boêmia Ruzena Hruska, amante de Pasenow, numa brevíssima passagem à pág. 128, quando ela, "gorda e mole", tenta ser aproveitada no elenco das lutas romanas). Esch representa o caos mental desse momento de passagem de século, em que o conservadorismo religioso e as mudanças de hábitos e costumes radicalizam as posições ideológicas.


 Avaliação: MUITO BOM

(Março, 2020)

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