domingo, 13 de setembro de 2020

 Manon Lescault (1731)

Abbé Prevost (1697-1793) - FRANÇA

Tradução: Annie Dymetman

São Paulo: Ícone, 1987, 132 páginas




Este é um romance "amoral" - aliás, como é "amoral" a nossa época. O protagonista, Cavalheiro Des Grieux, é um aristocrata, cuja noção de bem e mal não está submetida a princípios universais, mas a interesses de sua classe. Trata-se de um personagem que a mim provoca antipatia e enfastio, um homem mimado que não mede esforços para ver satisfeitos seus desejos, no caso, o amor - absolutamente doentio - por Manon Lescault, ela própria uma personagem frívola, vulgar e egocêntrica. O "Autor" encontra, em Passy, o narrador da história, este Cavalheiro Des Grieux, que acompanha uma diligência que leva prostitutas para o porto de Havre para serem deportadas para a América Francesa (hoje, Louisiana). O "Autor" se condói com a situação de penúria e desespero em que se encontra o narrador, que relata que, naquela comitiva, vai o amor de sua vida, Manon Lescault. Dois anos depois, ele reencontra esse mesmo personagem, em Calais, que acaba de desembarcar de Nova Orleans, sem dinheiro, e convida-o a almoçar. Então, o Cavalheiro des Grieux conta-lhe toda a sua trágica história com Manon Lescault. Ele estava em Amiens, terminando seus estudos de filosofia, quando conheceu Manon Lescault, pronta para entrar para a vida religiosa. Eles se apaixonam perdidamente e resolvem fugir para Paris. Lá, ela se torna sua amante e mostra-se uma mulher caprichosa, inconstante e infiel, uma mulher para quem o mais importante era desfrutar dos prazeres que o dinheiro oferece. Poucos meses após estarem vivendo em Paris, ela, percebendo a dificuldade do amante de conseguir dinheiro para sustentá-la, aceita a oferta do Senhor de B. , e abandona Des Grieux e até mesmo ajuda o novo amante a se livrar do antigo. Des Grieux voltar para casa, e, após um período em que é mantido sob vigília, aceita entrar para um seminário, em Paris. Lá, ele reencontra Manon Lescault e foge com ela. Com a ajuda do irmão da amante, ele entra para uma irmandade de jogadores de cartas que vivem de ludibriar os incautos, até Manon se interessar por outro amante, agora o velho Senhor G. de M. Manon, Des Grieux e o cunhado armam uma cilada para roubar o Senhor G. de M., mas são descobertos e vão presos, Manon no Hospital, Des Grieux em Saint Lazare. Após algumas peripécias, Des Grieux consegue acesso a uma arma e com ela foge da prisão, matando um vigia, e consegue ainda libertar Manon, com a ajuda do Senhor de T. Esse novo personagem é amigo do filho do Senhor G. de M., que por sua vez vai se interessar por Manon, e ela por ele. Manon, Des Grieux e o cunhado resolvem dar um novo golpe, mas falham - o cunhado é morto, Des Grieux é preso em Petit Chatelet e Manon é condenada à deportação para a América Francesa. Como é aristocrata - e aos aristocratas tudo se perdoa -, o pai de Des Grieux convence o Senhor G. de M. a perdoar o filho - afinal, os malfeitos que ele praticou são coisas da juventude - e assim é feito. Mas Des Grieux, tomado de paixão por Manon, não a abandona. Segue com ela para Louisiana. Lá, eles desembarcam como um casal, mas após algum tempo, Des Grieux confessa ao governador local que eles são amantes e que querem se casar legalmente. Diante do novo estatuto de Manon, o governador informa a Des Grieux que sua amante seria entregue ao filho, Synnelet, como uma mercadoria... Des Grieux não aceita, duela com o filho do governador e, pensando que o matou, foge com Manon para a pradaria, onde ela morre. O governador, após saber que Des Grieux agira como um cavalheiro no duelo contra o filho, que, afinal, não morreu, perdoa-o e ele volta para a França, para assumir a herança familiar a que tinha direito com a morte do pai. Se são inverossímeis algumas passagens, não o são o caráter dos protagonistas. Des Grieux é um irresponsável que não sente culpa alguma em relação a seus diversos crimes - incluindo o de assassinato -, enquanto Manon não lamenta, de verdade, em momento algum seu comportamento errático. É um ótimo retrato de uma época em que os ricos viviam na sociedade acima de suas leis... Muito parecido com nossos tempos, de corrupção, obscurantismo e desregramento... O cinismo de Des Grieux pode ser resumido neste trecho: "Como depois de tudo, não houvesse nada em meu comportamento que pudesse me desonrar, pelo menos comparando-o com o dos jovens de nível, e que uma amante não é uma infâmia no século em que vivemos, nem mesmo um pouco de astúcia para atrair a sorte no jogo, sinceramente dei a meu pai os detalhes da vida que eu levara. A cada erro que eu lhe confessava, tinha o cuidado de acrescentar exemplos famosos para diminuir a minha vergonha" (p. 107). O livro tem bastante problemas de revisão e o mais irritante deles é tratar Saint-Sulpice como Saint Suplice... um verdadeiro suplício...




AVALIAÇÃO: MUITO BOM

(Setembro, 2020)




terça-feira, 8 de setembro de 2020

A chuva imóvel  (1963)
Campos de Carvalho (1916-1998) BRASIL         
    Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, 104 páginas





Talvez seja a única narrativa do Autor que possua um fiapo de enredo, ainda que isso não tenha a menor importância para a economia do texto. André tem uma irmã gêmea, Andréa, por quem nutre uma atração erótica que é claramente um sintoma de autoimolação... Ele estava sendo criado para ser "alguém" na vida, para seguir a carreira diplomática, por sua inteligência e modos civilizados, um verdadeiro Medeiros da velha cepa. Mas a morte do irmão, que optou por rebelar-se contra a farsa de uma família aristocrática decadente e tornou-se mensageiro do Correio, sempre em cima de sua bicicleta, acaba por mostrar a André a inutilidade das convenções sociais. Ele então torna-se arquivista onde o marido de Andréa é chefe, e pouco a pouco vai enlouquecendo. Essa, aliás, é a trilha perseguida pelo Autor, a loucura como única forma possível de enfrentar um mundo sem qualquer sentido, como diz o narrador: "ESTE ANO NÃO HAVERÁ PRIMAVERA; nem este ano nem em nenhum outro, enquanto houver Auschwitz ou Little Rock*" (p. 33). Mas, aqui, não há saída: ao protagonista só resta vingar-se através do suicídio.



* Cidade que se tornou símbolo do movimento anti-racista estadunidense.



 Avaliação: BOM 

(Setembro, 2020)

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Vagamundo (1973)
Eduardo Galeano (1940-2015) - URUGUAI         
Tradução: Eric Nepomuceno                  
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, 95 páginas




Essa coletânea reúne 24 contos, a maioria deles curtíssimos, que têm como paisagem comum as diversas tragédias da América Latina. O Autor percorre, com bastante segurança, a realidade de países bastante distintos, oferecendo histórias que, em geral, trazem como pano de fundo a desigualdade social existente por aqui, e uma esperança - típica dos anos 1970 e 1980 - na luta armada como solução política. Além disso, o Autor não esconde - ou pelo menos não esconde o suficiente - uma cosmovisão lírica (ou poderíamos mesmo dizer romântica), que, muitas das vezes, intoxica os relatos com um uma exagerada dose de pieguice... Mas, quando supera esse problema, alcança voos altíssimos, como em pelo menos dois contos, "Conto um conto de Babalu" e "A cidade como um tigre", nos quais encontramos, em perfeito equilíbrio, a crença numa ideia e desconstrução dessa ideia, aquele momento em que a destinação individual esbarra com o projeto coletivo... Há um outro conto, que estaria no mesmo nível dos supracitados, "Ter duas pernas me parece pouco", narrativa que acompanha um uruguaio a cavalo pelos pampas buscando ultrapassar a fronteira com o Brasil, uma linda história de liberdade, que o Autor transforma, no final, numa estúpida anedota... 


 Avaliação: BOM

(Setembro, 2020)

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

A peste (1947)
Albert Camus (1913-1960) FRANÇA         
Tradução: Valerie Rumjanek                  
Rio de Janeiro: Record, s/d, 213 páginas





Este livro é a prova inconteste de que boa literatura é aquela que ultrapassa as barreiras de espaço, tempo e língua... Se o leitor procura um "depoimento" vivo sobre essa pandemia que assola o mundo e tem nos colocado nos limites da sobrevivência individual e coletiva é só abrir as páginas deste romance... escrito e publicado há mais de 70 anos... Em suas páginas, nos deparamos com a chegada da peste, vista ainda com ceticismo e desconfiança; sua instalação, primeiro nos bairros pobres periféricos, depois de maneira generalizada; a quarentena a que é submetida a população e suas tentativas de quebrá-la; a dissolução da economia e das finanças; o colapso dos hospitais e cemitérios; a sensação de impotência que pouco a pouco transforma a contestação em conformismo; a busca pela religião e depois sua recusa; o trabalho exaustivo e quase inútil de médicos, enfermeiros e voluntários; a solidariedade na desgraça... E, por fim, a certeza de que tudo aquilo um dia estará de volta, pois a peste, ainda que desapareça como surgiu, do nada, mantém-se à espreita: "(...) ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada", porque "viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz" (p. 213). Com um realismo quase documental - narrado por um personagem neutro, que depois se revela como o médico Bernard Rieux -, o Autor encontrou um solução formal perfeita para levar a cabo essa história feita de medo, derrotas e sofrimento, mas também de heroísmo e esperança, não heroísmo e esperança banais, mas aqueles sentimentos que brotam nos homens que estão na Terra não para ser parte do bando, mas para diferenciar-se dele, mesmo que anonimamente. E se o livro tematiza a peste - um misto de peste bubônica e pneumônica -, metaforicamente é um alerta contra todas as formas de dizimação, sejam elas provocadas por micróbios, sejam elas impostas pelo obscurantismo ideológico... Infelizmente, hoje, o Brasil encontra-se assolado por ambas, o covid-19 e o bolsonarismo... O que torna mais urgente a leitura e reflexão deste livro...




Entre aspas:

"(...) um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação". (pág. 31)

"As pessoas cansam-se da piedade, quando a piedade é inútil". (pág. 66)

"O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade". (pág. 93)

"(...) nada é menos espetacular que um flagelo e, pela sua própria duração, as grandes desgraças são monótonas. Na lembrança dos sobreviventes, os dias terríveis da peste não surgem como grandes chamas intermináveis e cruéis e sim como um interminável tropel que tudo esmaga à sua passagem". (pág. 126)



Curiosidade: 

1) À pag. 42, encontramos o seguinte parágrafo: "Grand  chegara a assistir a uma cena curiosa com a vendedora de tabaco. No meio de uma conversa animada, ela falara de uma prisão recente que alvoraçava Argel. Tratava-se de um jovem que matara um árabe na praia". Na verdade, é uma clara referência ao núcleo temático de outro romance do autor, O estrangeiro, publicado em 1942...

2) Inexplicavelmente, o nome da tradutora, Valerie Rumjanek, aparece como Valery Rumjanek, que seria um homem... Esse é apenas o mais grave dos vários problemas de revisão com que nos deparamos no livro...




 Avaliação: MUITO BOM

(Setembro, 2020)

terça-feira, 25 de agosto de 2020

O púcaro búlgaro (1964)
Campos de Carvalho (1916-1998) BRASIL         
    Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, 96 páginas





Este romance propõe uma experiência pouco comum - uma narrativa que foge ao realismo naturalista, mas também não se submete às tendências do realismo mágico ou fantástico. Trata-se de uma viagem aos recônditos do absurdo, onde nada faz sentido, e o prazer encontra-se simplesmente em deixar-se levar pelos jogos de palavras - às vezes insanos; pelos trocadilhos - às vezes infames -; pelo humor desenfreado - às vezes grotesco; pelas observações ácidas - às vezes, vulgares... Um sujeito, não por acaso chamado Hilário (seu nome aparece uma única vez, à pág. 57), faz um chamamento para interessados em participar de uma expedição destinada a descobrir a Bulgária - ou, ao contrário, confirmar a sua inexistência. Ao seu convite, atendem o professor Radamés Stepanocinsky, cearense de Quixeramobim (sic); Expedito, o expedicionário sem expediente; Pernachio, que acreditava que ao invés de a Torre de Pisa estar torta era todo o resto que estava; Ivo que viu a uva, descendente em linha reta do sábio hindu que inventou o zero e que ganhava royalties sobre todos os zero usados no mundo; e Rosa, a empregada de Hilário, cobiçada por todos e que, afinal, foge com Expedito e todo o dinheiro juntado para realizar a expedição. Evidentemente, a expedição nunca acontece, o que ocorre são reuniões intermináveis do MSPDIDRBOPMDB (Movimento Subterrâneo Pró-Descoberta ou Invenção Definitiva do Reijo da Bulgária Ou Pelo Menos dos Búlgaros), em se discute as mais malucas teorias sobre os mais doidos assuntos... Aos que gostam de teorias conspiratórias e querem encontra profecias em tudo, à pág. 7, o narrador afirma: "Este espantoso documento já estava para ser entregue ao seu afortunado editor quando uma comissão de búlgaros, berberes, aramaicos e outros levantinos, todos encapuzados, procurou certa noite o autor e ofereceu-lhe dez milhões de dracmas para que não o publicasse - pelo menos até o começo do século XXI, quando certamente o mundo já não teria mais sentido"... Acertou na mosca: o mundo não faz mais sentido neste começo de século XXI...





 Avaliação: BOM 

(Agosto, 2020)

domingo, 23 de agosto de 2020

Vontade de ferro (1876)
Nikolai Leskov (1831-1895) RÚSSIA         
Tradução: Francisco de Araújo                 
São Paulo: Jabuticaba, 2020, 167 páginas





Nesse livro conhecemos a história de Hugo Kárlovitch Pektoralis, um engenheiro alemão, dono da tal "vontade de ferro" que traduz o título, narrada por Fiódor Afanássievitch Vótchiniev a seus amigos, enquanto desfrutam de um chá. Pektoralis é contratado por uma empresa inglesa instalada na Rússia para pôr em operação as máquinas importadas destinadas a um moinho a vapor e uma serraria. Desde sua chegada, Pektoralis demonstra excessivo apego à sua "vontade de ferro", traduzida numa teimosia por nunca abrir mão de princípios que impõe a si mesmo, ainda que isso o conduza ao escárnio e à desgraça. Ele é o exemplo do "espírito alemão", organizado e determinado, em contraste com o "espírito russo", que forma uma "massa simples, mole e crua" (p. 11), segundo as palavras do narrador. Após uma série de aventuras - ou desventuras -, Pektoralis, antes admirado e respeitado por sua "vontade de ferro", pouco a pouco vai sendo engolido por essa mesma "vontade de ferro", que acaba se mostrando simples obsessão de uma mente  inflexível. A novela culmina com a disputa entre ele e o fundidor Safrônytch, ou seja, no encontro entre o ferro alemão e a massa mole russa: e ambos saem perdendo... É interessante notar que, em muitos aspectos, o espírito do povo russo, pelo menos naquele momento de sua história, o século XIX, se assemelha muito ao espírito brasileiro, pendendo entre a esperteza e a autodepreciação...


 Avaliação: BOM 

(Agosto, 2020)

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Diário de um pároco de aldeia (1936)
Goerges Bernanos (1888-1948) - FRANÇA         
Tradução: Edgar de Godoi da Mata-Machado                
São Paulo: É Realizações, 2011, 285 páginas


Jovem, filho de camponeses miseráveis, o padre sem nome, personagem principal deste romance, acaba de assumir uma pequena paróquia no extremo norte da França. Cheio de ideais, esbarra logo de cara com as dificuldades de compreender os seus paroquianos, imersos na ignorância e distantes de Deus, e de conviver com seus superiores, acomodados a uma vida de conforto material. Os embates com uns e outros, tendo como pano de fundo as cicatrizes deixadas pela Primeira Guerra Mundial, levarão o pároco a um beco sem saída. Optando claramente por uma vida simples e próxima ao povo, que no entanto o rechaça, o narrador-protagonista desenvolve um câncer no estômago e morre. Crítica contundente aos rumos que a Igreja Católica tomava, ao abandonar os ensinamentos originais, o romance esbarra, para mim, apenas em um ponto incontornável, que é a inverossimilhança da forma de diário escolhida pelo Autor.


Entre aspas: 

"A esperança é um animal (...) um animal que está dentro do homem, um terrível e feroz animal. É melhor deixá-la extinguir lentamente. Ou, então, não mexa com ela. Se o senhor mexer, ela arranha, morde" (pág. 259)



 Avaliação: BOM 

(Agosto, 2020)