quarta-feira, 2 de setembro de 2020

A peste (1947)
Albert Camus (1913-1960) FRANÇA         
Tradução: Valerie Rumjanek                  
Rio de Janeiro: Record, s/d, 213 páginas





Este livro é a prova inconteste de que boa literatura é aquela que ultrapassa as barreiras de espaço, tempo e língua... Se o leitor procura um "depoimento" vivo sobre essa pandemia que assola o mundo e tem nos colocado nos limites da sobrevivência individual e coletiva é só abrir as páginas deste romance... escrito e publicado há mais de 70 anos... Em suas páginas, nos deparamos com a chegada da peste, vista ainda com ceticismo e desconfiança; sua instalação, primeiro nos bairros pobres periféricos, depois de maneira generalizada; a quarentena a que é submetida a população e suas tentativas de quebrá-la; a dissolução da economia e das finanças; o colapso dos hospitais e cemitérios; a sensação de impotência que pouco a pouco transforma a contestação em conformismo; a busca pela religião e depois sua recusa; o trabalho exaustivo e quase inútil de médicos, enfermeiros e voluntários; a solidariedade na desgraça... E, por fim, a certeza de que tudo aquilo um dia estará de volta, pois a peste, ainda que desapareça como surgiu, do nada, mantém-se à espreita: "(...) ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada", porque "viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz" (p. 213). Com um realismo quase documental - narrado por um personagem neutro, que depois se revela como o médico Bernard Rieux -, o Autor encontrou um solução formal perfeita para levar a cabo essa história feita de medo, derrotas e sofrimento, mas também de heroísmo e esperança, não heroísmo e esperança banais, mas aqueles sentimentos que brotam nos homens que estão na Terra não para ser parte do bando, mas para diferenciar-se dele, mesmo que anonimamente. E se o livro tematiza a peste - um misto de peste bubônica e pneumônica -, metaforicamente é um alerta contra todas as formas de dizimação, sejam elas provocadas por micróbios, sejam elas impostas pelo obscurantismo ideológico... Infelizmente, hoje, o Brasil encontra-se assolado por ambas, o covid-19 e o bolsonarismo... O que torna mais urgente a leitura e reflexão deste livro...




Entre aspas:

"(...) um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação". (pág. 31)

"As pessoas cansam-se da piedade, quando a piedade é inútil". (pág. 66)

"O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade". (pág. 93)

"(...) nada é menos espetacular que um flagelo e, pela sua própria duração, as grandes desgraças são monótonas. Na lembrança dos sobreviventes, os dias terríveis da peste não surgem como grandes chamas intermináveis e cruéis e sim como um interminável tropel que tudo esmaga à sua passagem". (pág. 126)



Curiosidade: 

1) À pag. 42, encontramos o seguinte parágrafo: "Grand  chegara a assistir a uma cena curiosa com a vendedora de tabaco. No meio de uma conversa animada, ela falara de uma prisão recente que alvoraçava Argel. Tratava-se de um jovem que matara um árabe na praia". Na verdade, é uma clara referência ao núcleo temático de outro romance do autor, O estrangeiro, publicado em 1942...

2) Inexplicavelmente, o nome da tradutora, Valerie Rumjanek, aparece como Valery Rumjanek, que seria um homem... Esse é apenas o mais grave dos vários problemas de revisão com que nos deparamos no livro...




 Avaliação: MUITO BOM

(Setembro, 2020)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.