terça-feira, 11 de setembro de 2018

Três novelas exemplares e um prólogo (1920)
Miguel de Unamuno (1864-1936) - ESPANHA                  
Tradução: Mustafa Yazbek      
São Paulo: Nova Alexandria, 1995, 110 páginas




O título é autoexplicativo, embora o que o Autor chame de novela poderíamos intitular contos longos... Mas, trata-se de uma mera questão de nomenclatura... O melhor do livro está no prólogo, não que eu necessariamente concorde com ele, mas pela sua proposta, uma confusa, mas divertida, discussão a respeito do realismo, do conceito de novela e do significado de exemplar... Não me encanta, entretanto, a literatura de tese, ou seja, a narrativa que defende uma ideia preconcebida - seja ela política, antropológica, sociológica, etc. E é o que faz o Autor. No primeiro conto, "Duas mães", ele coloca em evidência o seguinte raciocínio: o que ocorreria se Don Juan, o famoso mito literário, tivesse, no fim do vida, encontrado uma viúva esperta e estéril, que, empurrando-o para o casamento com outra mulher, essa jovem e fértil, conseguisse, ao mesmo tempo, ficar com toda a sua fortuna e com o filho advindo dessa relação? A outra história, a mais fraca de todas, "O Marquês de Lumbría", discute a podridão da aristocracia espanhola, com traição, vingança, humilhação, superação etc - um verdadeiro enredo descabelado... Por fim, em "Nada menos que um homem inteiro", a sensibilidade do Autor consegue superar as amarras da tese e ele constrói uma belíssima trama, que embora às vezes também beire ao romantismo mais deslavado, o suplanta com a criação de um personagem inesquecível, Alejandro Gómez, um rico proprietário, que "quando muito criança, havia sido levado por seus pais para Cuba, primeiro, e para o México, depois, e que ali se ignorava como havia construído uma enorme fortuna, uma fabulosa fortuna" (p. 72). Gómez sente profundo desprezo por gente de forma geral, pois acredita que tudo o que toca passa a lhe pertencer, incluindo as pessoas. Seu amor-próprio será colocado à prova quando sua mulher, a linda Júlia Yáñez, o trai com o jovem conde de Bordaviella. A maneira como Gómez resolve a questão e como, assim, revela sua verdadeira natureza, é realmente impressionante...




(Setembro, 2018)





Avaliação: BOM

Entre aspas: 

"A preguiça mental, o fato de não saber julgar a não ser conforme precedentes, é o mais característico daqueles que se dedicam a ser críticos". (pág. 7-8)

"(...) aquele que goza uma obra de arte é porque a cria em si mesmo, a recria e ela lhe apraz". (pág. 12)


segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Histórias sobrenaturais (1884-1926)
Rudyard Kipling (1865-1936) - INGLATERRA                  
Tradução: José J. Veiga     
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, 493 páginas


Reunião de 33 contos que emulam temas envolvendo fantasmas e espíritos, enfim, eventos não de todo explicáveis pela Razão. Do total, 24 narrativas têm como cenário o território ao norte da Índia,  fronteira com o agora Paquistão. embora os protagonistas sejam todos britânicos. As melhores histórias, curiosamente, contam como pano de fundo os horrores da Primeira Guerra Mundial e estão entre os últimos escritos do Autor: "Varrido e enfeitado", uma terrível alucinação de uma mulher alemã que vê em seu quarto crianças belgas assassinadas por seus compatriotas; "Nossa Senhora das Trincheiras", um caso de trauma de guerra, com aparições e suicídio; e o excelente "O jardineiro", a busca de uma tia pela tumba do sobrinho desaparecido no campo de batalha. No ciclo indiano, destacam-se "O signo da Besta", "A volta de Imray", "No fim do corredor", "A legião perdida" e "A tumba dos ancestrais", e, fora, "Eles", um conto que lembra o romance "A outra volta do parafuso" (1898), de Henry James (1843-1916). Não pense o leitor, contudo, que trata-se, como pode sugerir o título do livro, de histórias nas quais o mais importante é provocar sensações superficiais - nada disso. O Autor consegue, com maestria, impor, em todos os contos, "desespero sobre desespero, angústia sobre angústia, medo sobre medo, cada um com seu estrago próprio" (p. 413), de certa forma advertindo que nem tudo se encaixa dentro da nossa previsível compreensão.


(Setembro, 2018)




Avaliação: MUITO BOM

Curiosidade 


No conto "Eles", o Autor confunde o nome da capital dos Estados Unidos... Ele narra, à pág. 386: "Passado aquele preciso lugarejo que deu nome à capital dos Estados Unidos, encontrei aldeias escondidas onde as únicas coisas vivas etc" - ele estava se referindo a York...

Entre aspas: 

"Homens e mulheres podem às vezes depois de grande esforço passar uma mentira convincente, mas a casa, que é o templo de homens e mulheres, só pode dizer a verdade sobre os que nela moram". (pág. 400)



terça-feira, 4 de setembro de 2018

Cenas de vida siciliana (1874-87)
Giovanni Verga (1840-1922) - ITÁLIA                 
Tradução: Vários     
São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2001, 283 páginas




Esta coletânea reúne 18 contos, incluindo Cavalleria rusticana, publicado originalmente em 1880, que redundou, dez anos depois, na famosíssima ópera homônima, de Pietro Mascagni, uma história violentíssima de traição e honra primitiva. Aliás, um certo primitivismo dá o tom a todas as narrativas, que têm como cenário a Sicília do começo do século XIX, habitada por homens e mulheres semi-selvagens, acossados pela miséria, pela fome, pela malária e pelo cólera. Alguns contos, na verdade, não passam de anedotas - como Guerra dos santos, O mistério, Assim é o Rei -, outros sugerem crônicas - A amante de Gramigna, Fantasia, Os bens, Os coléricos -, e outros ainda funcionam como núcleos de romances frustrados - O padre, Andanças, Pão amargo -, ou trechos de romances não escritos - Liberdade, A loba. Destaque para as trágicas histórias de Nedda, de Jeli, o pastor, e do Ruivo Pêlo-ruim. O Autor claramente não se sente à vontade na narrativa curta, quase todos os contos transbordam em enredo e terminam provocando no leitor aquela sensação de que havia mais a ser revelado. De qualquer forma, é uma boa entrada para o universo do Autor.



(Setembro, 2018)



Avaliação: BOM


Entre aspas: 

"As galinhas, quando não têm nada para bicar no galinheiro, se bicam entre si". (pág. 208)

sábado, 18 de agosto de 2018

Jane Eyre (1847)
Charlote Brontë (1816-1855) - INGLATERRA                 
Tradução: Adriana Lisboa     
Rio de Janeiro: Zahar, 2018, 535 páginas




Jane Eyre tem 30 anos quando resolve escrever sua autobiografia. O que lemos neste livro é o relato de sua trajetória, entre os 10 e os 20 anos, sendo talvez dois terços das mais de 500 páginas dedicados a um único ano passado na propriedade de Thornfield Hall, quando se apaixona pelo patrão, Edward Fairfax de Rochester. Jane conta que, logo após nascer, os pais morrem, ambos de febre tifóide, e ela vai morar com a família do tio materno, Sr. Reed, na propriedade de Gateshead Hall. Mas o tio também morre e ela passa a ser hostilizada pela viúva, Sra. Reed, e pelos primos. Por reagir com veemência à forma injusta com que é tratada, Jane é encaminhada para Lowood, uma instituição de caridade para educação de órfãs, situada a oitenta quilômetros de Gateshead Hall. Em Lowood, com "alimentação frugal, roupas simples, acomodações sem sofisticação, hábitos árduos e ativos" (p. 51), vivem oitenta moças, sob a tirania do administrador, Sr. Blocklehurst. A "natureza insalubre do local, a qualidade e a quantidade de comidas das crianças, a água salobra e fétida usada em seu preparo, as roupas e acomodações miseráveis das alunas" (pág. 107) concorre para um surto de tifo, que dizima as estudantes e chama a atenção para a situação de indigência da escola. Ali, Jane permanece por oito anos, seis como aluna, dois como professora, sem nunca ter saído do lugar e sem nunca ter recebido visitas, tendo como referências apenas a diretora, Srta. Temple, e Helen Burns, uma colega que sucumbe ao tifo. Buscando outros ares, Jane se candidata a uma vaga de educadora e muda-se para a propriedade de Thornfield Hall, um lugar com "aspecto de uma casa saída do passado - um altar à memória" (p. 131). Ali passa um ano como professora de Adèle, uma menina francesa, talvez filha natural do senhor da propriedade, Sr. Rochester: "o estreito crescente do meu destino parecia se alargar; os vazios da existência eram preenchidos. Minha saúde fisica melhorou; ganhei peso e força" (pág. 179), confessa Jane. Jane e Rochester se apaixonam perdidamente e, apesar da diferença social (ele rico, ela pobre) e de idade (quase vinte anos), resolvem se casar. No dia da cerimônia, entretanto, é revelado um impedimento - Rochester havia se casado anteriormente na Jamaica e mantém a mulher, louca, apartada num quarto secreto da mansão. Decepcionada e desiludida, embora ainda atraída por Rochester, Jane foge literalmente com a roupa do corpo. Após dois dias de viagem de diligência, chega a Whitcross e, sem conhecer ninguém, quase morre de fome. É salva à porta de uma casa situada num ermo, propriedade conhecida como Marsh End, acolhida pelos Rivers - St. John, que se  se prepara para ser missionário na Índia, e suas irmãs Diana e Mary. Jane vive um ano como professora de uma escola paroquial, e neste intervalo recebe a notícia de que herdara uma fortuna - 20 mil libras - de um tio paterno, que se mudara para a ilha da Madeira. Descobre então ser prima de St. John e suas irmãs e decide dividir o dinheiro igualmente com eles. St. John a pede em casamento, ela recusa-o por não amá-lo, e busca saber o destino de Rochester. Encontra a mansão de Thornfield Hall em ruínas, é informada de que a mulher de Rochester morreu e que ele ficou cego e teve amputada uma das mãos. Jane o procura em outra propriedade da família, Ferndean, reata a relação, casam-se e têm um filho. Apesar de certo romantismo - a redenção quase milagrosa da pobreza pela fortuna deixada por um tio desconhecido -, o livro não afunda nunca "num estado sentimental patético" (pág. 320), e também, apesar de professar uma fé inabalável na Providência Divina "mantive fiel aos princípios e à lei, e desprezei e esmaguei os insanos impulsos de um momento desmedido. Deus me guiou a fazer uma escolha acertada: agradeço à Sua providência pela orientação" (pág. 419), o que sobressai deste romance é o impressionante libelo feminista*. Jane Eyre, embora frágil física e socialmente, não aceita ser tratada como inferior. O fato de se casar no final com Rochester - que poderia ser compreendido como uma resignação às convenções -, não é possível de assim ser entendido: afinal, o marido, cego e maneta, depende dela em tudo para sobreviver, invertendo assim os papéis destinados tradicionalmente ao homem e à mulher. Com ironia e bom-humor, a narradora antecipa, à pág. 429, por meio da fala da srta. Oliver, que "tinha certeza de que minha história prévia, se conhecida, daria um ótimo romance". E deu mesmo...






* Alguns momentos do discurso feminista:

& "Ninguém sabe quantas rebeliões, para além das rebeliões políticas, fermentam nas massas de vida que as pessoas enterram. Das mulheres se espera que sejam muito calmas, de modo geral. Mas as mulheres sentem como os homens. Necessitam exercício para suas faculdades e espaço para os seus esforços, assim como seus irmãos; sofrem com uma restrição rígida demais, com uma estagnação absoluta demais, exatamente como sofreriam os homens. E é uma estreiteza de visão por parte de seus companheiros mais privilegiados dizer que elas deveriam se confinar a preparar pudim e tricotar meias, a tocar piano e bordar bolsas. É insensato condená-las ou rir delas se buscam fazer mais ou aprender mais do que os costume determinou necessário ao seu sexo." (p. 136-137)


& Quando Rochester pensando no casamento próximo diz a Jane que a cobrirá de jóias e riqueza, ela responde: "Só quero uma mente tranquila (...) e não sobrecarregada por inúmeras obrigações. Lembra-se do que falou sobre Céline Varens? Sobre os diamantes e as caxemiras que lhe deu? Não serei sua Céline Varens inglesa [Céline Varens tinha sido uma amante de Rochester, em Paris]. Continuarei sendo a educadora de Adèle; desse modo terei moradia e alimento, além de trinta libras por ano. Meu guarda-roupa virá desse dinheiro, e o senhor não me dará nada além de... (...) seu afeto". (p. 316)

"Não seria estranho (...) ser acorrentada para o resto da vida a um homem que só me considera um instrumento útil?" (p. 482)


(Agosto, 2018)





Avaliação: MUITO BOM


Entre aspas: 

"Se as pessoas fossem sempre gentis e obedientes com aqueles que são cruéis e injustos, as pessoas más sempre fariam as coisas ao seu modo; nunca teriam medo, e assim nunca haveriam de mudar, só piorar cada vez mais. Quando recebemos um golpe sem razão, devemos revidar com muita força (...), Com tanta força que a pessoa que nos agrediu aprenda a nunca mais fazer isso." (pág. 77)

"A maioria dos seres nascidos em liberdade se submete a qualquer coisa por um salário." (pág. 165)

"O remorso é o veneno da vida." (pág. 167)

"O sentimento sem julgamento é (...) uma bebida insípida, mas o julgamento sem o tempero do sentimento é um alimento demasiado amargo e penoso para a deglutição humana." (pág. 279)

"Preconceitos (...) são mais difíceis de erradicar num coração cujo solo nunca foi revirado ou fertilizado pelos estudos; eles crescem ali, firmes como ervas daninhas em meio a pedras." (pág. 398)






terça-feira, 31 de julho de 2018

Contos de amor, de loucura e de morte (1917)
Horácio Quiroga (1879-1937) - URUGUAI                
Tradução: Eric Nepomuceno     
Rio de Janeiro: Record, 2001, 174 páginas







O livro reúne 15 contos do Autor, divididos pelos temas que o título antecipa, alguns deles, pelo menos a metade, sempre presentes em antologias das melhores narrativas curtas latino-americanas. Na verdade, para mim, há aqui uma obra-prima indiscutível, "A insolação", que, curiosamente, engloba amor (de um norte-americano, perdido na selva que margeia o rio Paraná, pelos seus cães), loucura (a visão personificada da Morte) e morte, e que, de certa maneira, prenuncia o que depois viria a ser chamado de 'realismo fantástico'. Também me agradam "Uma estação de amor", "Nosso primeiro cigarro", e, apesar do péssimo título, "A meningite e sua sombra". Mas outros contos conhecidíssimos, como "A galinha degolada", "À deriva" e "O travesseiro de plumas", perdem a força, a meu ver, pelo prazer naturalista de simplesmente chocar o leitor. 



(Julho, 2018)



Avaliação: BOM 

domingo, 22 de julho de 2018

Crónica familiar (1947)
Vasco Pratolini (1913-1991) - ITÁLIA                
Tradução: José Manuel Calafate    
Lisboa: Unibolso, s/d, 190 páginas





Logo após nascer, em 1918, Ferruccio é deixado aos cuidados do mordomo de uma mansão, nos arredores de Florença. Sua mãe morreu vinte e cinco dias após dar à luz, de complicações provocadas pela gripe espanhola, e seu pai convalescia num hospital dos ferimentos recebidos na guerra. Mas, o que era para ser apenas uma ação piedosa, torna-se uma espécie de doação, quando o pai, já recuperado, toma 300 liras de empréstimo do mordomo e some da vida do menino. Será o irmão, cinco anos mais velho, que contará a breve trajetória de Ferruccio, desde os primeiros anos, quando a avó lhe levava para rápidos encontros formais na cozinha da mansão, até a reaproximação, já em Roma, em um hospital, durante uma nova guerra, quando, desenganado, Ferruccio - abandonado pela mulher e longe da filha - luta contra uma doença que ninguém consegue diagnosticar. Reconstrução de uma época (o entreguerras, na Itália), quando impera a pobreza e a falta de perspectivas, o romance evoca a amizade, o afeto, a passagem inexorável do tempo. Embora o livro termine em 1945, não busque o leitor o tenso ambiente de radicalização política, cenas de combate ao fascismo ou relatos sobre batalhas - somente mencionados, de maneira distante -, pois o narrador quer apenas e tão somente - e não é pouco - fixar a memória do irmão morto ainda jovem, antes dos 30 anos...



(Julho, 2018)




Avaliação: BOM 


sexta-feira, 20 de julho de 2018


Berlin Alexanderplatz (1929)
Alfred Döblin (1878-1957) - ALEMANHA               
Tradução: Irene Aron   
São Paulo: Martins Fontes, 2009, 534 páginas





Em fins de 1927, Franz Biberkopf, "homem de trinta e poucos anos", (p. 27), "rude, grandalhão, de aparência repulsiva" (p. 47), "antigo operário de construção e de transportes" (p. 9) que esteve "com os prussianos na trincheira" (p. 37), deixa a penitenciária após cumprir quatro anos de prisão por ter assassinado a mulher, Ida, "bonita moça de uma família de serralheiros" (p. 47). Disposto a se reintegrar na sociedade, tenta arrumar algum emprego honesto como vendedor ambulante, primeiro de jornais, depois de gravatas, mas afinal acaba se aproximando de obscuros personagens que transitam à margem da Alexanderplatz, centro nevrálgico de Berlim, naquele momento uma cidade em profunda mudança urbanística. Já no começo do ano seguinte, Franz envolve-se com Lina, uma prostituta polaca que o sustenta financeiramente, mete-se com política (vende jornais nazistas, frequenta círculos operários comunistas), e, pelas mãos de um tal Reinhold, entra quase sem querer para um bando de ladrões. Após uma malsucedida tentativa de roubo, Reinhold empurra Franz do carro em que se encontravam, ele é atropelado e perde um braço. Durante a restabelecimento, Franz reencontra o casal Eva e Herbert, antigos companheiros que o apresentam a Mieze, com quem passa a viver, explorando-a como cafetão. Franz perdoa Reinhold, volta ao bando, mas Reinhold, desejando se apropriar de Mieze, e diante da reação negativa dela, termina por assassiná-la. Após algumas peripécias, Franz é preso, suspeito - por causa de seu passado - de ter participado da morte de Mieze. Profundamente deprimido, é internado em uma manicômio e, quando de lá sai, vai trabalhar como auxiliar de porteiro em uma fabrica. Contado dessa matéria, permanece à tona apenas a matéria romanesca - mas o livro é muito, muito mais que isso. Usando técnicas de colagem, utilizando métodos psicanalíticos para abordar a essência dos personagens, e formulando moderníssimas técnicas narrativas*, o Autor constrói um universo magnífico, que compreende sim a história de Franz Biberkopf, mas ao mesmo antecipa, com incrível clarividência, o clima do entreguerras, uma Alemanha ressentida, caótica, que exibe nas ruas as cicatrizes da I Guerra Mundial, povoada por homens e mulheres totalmente amorais, que vivem suas vidas como protagonistas de histórias alheias. Essa apatia que iria redundar no horror da II Guerra Mundial...



* O Autor foi acusado de imitar o irlandês James Joyce (1882-1941), em particular seu romance, Ulysses, de 1922, fato que repudiou veementemente. Na verdade, embora haja pontos em comum, os dois livros diferem radicalmente no trato com as questões de espaço e tempo, primordiais em ambas as narrativas. "Uma mesma época pode dar ensejo a coisas parecidas e até mesmo iguais em lugares diferentes, independentemente umas das outras", anotou, com total razão (pág. 525).


(Julho, 2018)




Avaliação: OBRA-PRIMA


Entre aspas: 

"(...) estar vivo exige mais do que um simples pãozinho com manteiga". (pág. 10)
"(...) a coisa principal no ser humano são seus olhos e seus pés. É preciso ver o mundo e caminhar até ele". (pág. 25)
"Sucede com o homem o mesmo que com o fogo: quando arde, ele tem que devorar, e se não consegue devorar, ele apaga, tem que se extinguir". (pág. 342)




Curiosidades:

& Há uma passagem que em tudo lembra o tema principal de um romance de Luigi Pirandello (1867-1936), O falecido Mattia Pascal, publicado em 1904, portanto 25 anos antes: "Em Pottsdam (...) havia um sujeito que depois foi chamado de cadáver ambulante. (...) o sujeito, um certo Bornemann, saindo a passeio de Neugard, encontra um morto boiando na água, no rio Spree (...) e diz: 'Na verdade, já estou morto', vai até lá, rouba-lhe os documentos, agora está morto. E a senhora Bornemann: 'E eu o que faço? Não há mais o que fazer, ele está morto, será que é meu marido, ora, graças a Deus é ele, não se perde nada com um homem desses, o que se lucra com um cara desses, a metade da vida na cadeia, lixo imprestável'. (...) Ele vai para Anklam (...), torna-se peixeiro (...) e se chama Finke. Bornemann, então, não existe mais". (pág. 371-2).

& Valeria a pena um estudo relacionando Berlin Alexanderplatz com o romance O agressor (1943), do brasileiro Rosário Fusco (1910-1977)

Sobre o Brasil:

Na pág. 93, aparecem referências ao café do Brasil. "Café puro em grãos 2,29, Santos garante mistura pura e excelente para uso doméstico, forte e econômico no preparo, Van Campinas, mistura forte, de paladar puro (...)".
Na pág. 186, a referência é ao tabaco : "(...) qualidades de primeira para todos os gostos: Brasil, Havana, México (...)".