quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O Leopardo (1958
Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa (1896-1957) - Itália         
Tradução: Rui Cabeçadas      
São Paulo: Abril, 1979, 279 páginas




Romance póstumo (foi publicado no ano seguinte à morte do Autor), retrata com uma precisão impressionante a derrocada da aristocracia periférica da Europa (no caso, a siciliana), mas, muito além disso, flagra as contradições de uma época, prenunciando o impasse que viria resultar no caos da primeira metade do século XX. Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, homem "imenso e forte" (p. 19), de "pele clara e uns cabelos loiros entre um povo de pele olivácea e cabelos negros", possui "um temperamento autoritário, uma certa rigidez moral, uma propensão às ideias abstratas" (p. 20). Descendente de uma família tão rica "que, pelos séculos afora, não aprendera sequer a fazer a soma das despesas e a subtração das dívidas" (p. 20), ele tem por hobby a caça em uma de suas propriedades, Donnafugata, e a observação astronômica - chegou a descobrir dois planetas e ostenta orgulhoso medalhas e condecorações pelos seus feitos, concedidas por renomadas universidades europeias. O Príncipe de Salina, no entanto, tem plena consciência de que é o último representante não só de sua estirpe, mas de sua classe social: "(...) o significado de uma linhagem nobre está todo nas tradições, quer dizer, nas recordações vitais (...)" (p. 249). Melancólico, o Príncipe percebe a decadência inexorável de Donnafugata - os móveis estragados, os tecidos manchados, os utensílios desfalcados, as pinturas das paredes esmaecidas, os jardins abandonados -, tão grande que ele nunca havia posto os pés em muitos de seus recantos, pois, pensava orgulhoso, que "palácio de que se conheciam todas as dependências não era digno de ser habitado" (p. 162). Mas o livro é também e principalmente um magnífico afresco social. A aristocracia sai de cena, mas não seus membros. Em uma das mais célebres citações da literatura - verdadeiro tratado de sobrevivência política, e de cinismo, portanto -, o sobrinho do Príncipe, Tancredi Falconeri, que mantém títulos mas não possui dinheiro algum, avisa ao tio que vai se juntar aos revolucionários que lutam pela unificação da Itália - contra o Reino das Duas Sicílias. O tio se surpreende, mas Tancredi explica: "Se nós não estivermos lá, eles fazem uma república. Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude" (p. 40). A Itália se unifica e Tancredi se casa com uma plebeia, Angelica, neta de um rendeiro do Príncipe, "tão porco e tão selvagem que lhe chamavam de Peppe Merda" (p. 124), mas filha do avarento don Calogero Sedàra, "muito rico e também muito influente" (p. 124). Tancredi se monetariza, Angelica é aceita na sociedade - e o povo permanece na miséria e na ignorância, seja nos campos inférteis dos latifúndios, seja nas ruas imundas e perigosas das cidades. Dividido em sete capítulos, devidamente datados (maio, agosto, outubro e novembro de 1860, fevereiro de 1861,novembro de 1862, julho de 1883 e maio de 1910), vale a pena ler e reler o capítulo VII, que descreve a morte do Príncipe - 14 das mais bem escritas páginas da literatura ocidental. Estupendo romance!


  



CURIOSIDADES
1) O Brasil em O Leopardo: "O nome da Virgem, invocado por aquele coro virginal, enchia a galeria e transformava as macaquinhas em mulheres, dado que não constava ainda que os saguis das florestas brasileiras ser tivessem convertido ao catolicismo." (p. 225)

2) O narrador usa de uma técnica inusual, de antecipar fatos, a respeito dos personagens, que não constam do livro. Dois exemplos:
"Aqueles foram os dias melhores da vida de Tancredi e de Angelica, vidas que depois haviam de ser tão diversas, tão cheias de pecado sobre o inevitável fundo de dor" (p. 168)
"(...) mobiliário que Concetta considerava antiquado e mesmo de péssimo gosto, mas que, vendido no leilão que se seguiu à sua morte, constitui hoje o orgulho de um rico mandatário (...)" (p. 264)



Avaliação: OBRA-PRIMA  

(Dezembro, 2016)


Entre aspas

"Era quase noite cerrada e àquela hora os conventos dominavam a paisagem, como déspotas incontestados. Era verdadeiramente contra eles que aquelas fogueiras da montanhas ardiam, atiçadas, de resto, por homens [os rebeldes garibaldinos] que muito se assemelhavam aos que viviam nos conventos: como eles, fanáticos; solitários, como eles; como eles, ávidos de poder, isto é, como sempre, ávidos de ociosidade." (p. 34)


"(...) que diabo faria o Senado de mim, de um legislador inexperiente a que falta a faculdade de enganar-se a si próprio, requisito este essencial a quem queira guiar os outros?" (p. 186)


"(...) todas as vezes que se encontra um parente encontra-se um espinho (...)" (p. 206)


"(...)  a consideração da sua própria morte serenava-o tanto quanto o perturbava a morte dos outros; talvez porque, no fundo, bem lá no fundo, a sua morte fosse, em primeiro lugar, a morte do mundo inteiro." (p. 230)


"(...) sentimentalismo e beija-mãos: são mesmo os argumentos políticos mais eficazes (...)" (p. 238)



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