terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A lua vem da Ásia (1956)
Campos de Carvalho (1916-1998) - BRASIL
Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, 191 páginas


A crítica historiográfica brasileira, em geral medíocre e conservadora, nunca prestou atenção em Campos de Carvalho e ele sequer é nota de rodapé nos compêndios e manuais de literatura. Autor marginal de uma obra singularíssima, este romance é o ponto alto de sua carreira (junto com o também magnífico A chuva imóvel). Livro tristíssimo, narra em primeira pessoa a história de um sujeito inconformado que aos 50 anos ("Devo ter meus cinquenta anos, a julgar pela carne flácida que sinto quando passo as mãos pelo rosto e em volta do pescoço (...) (p. 122) está apartado da sociedade dita normal. Inicialmente, ele acredita que encontra-se em um hotel durante a guerra para, mais tarde, pensar que na verdade está em um campo de concentração - só à página 182 ele irá nomear o espaço como hospício, embora ainda acredite, confusamente, estar hospedado em uma pensão suspeita. O livro é uma espécie de diário do cotidiano do hospital, com seus personagens alienados (um potentado hindu que coleciona pulgas, um anarquista, o homossexual Príncipe Danilo, o embaixador da Abissínia), os acessos de loucura, as sessões de choques elétricos, as visitas esporádicas da mãe (que ele não reconhece como tal). E é também uma autobiografia nonsense - a personagem é capaz de percorrer as mais longínquas geografias para realizar disparatadas aventuras imaginárias. O narrador se sente como um "(...) oásis cercado de deserto por todos os lados (...)" (p. 43) e tem plena consciência da perda de sua subjetividade: "Há momentos em que me sinto mais lúcido, e há outros em que pelo contrário eu sinto uma presença estranha dentro de mim, como se devêssemos ser gêmeos e houvéssemos nascido dois num corpo só" (p. 37). O humor negro que perpassa as páginas é apenas um recurso auto-irônico de alguém que se sabe terrivelmente insignificante (como todos nós, enfim) e que seu suicídio, embora inexorável, afetará a Humanidade "(...) tanto quanto a morte de um dos milhões de perus sacrificados à véspera do Natal" (p. 188). Resta o consolo de que devolver a alma ao "(...) Criador ou a quem lhe faça as vezes (...)" é como restituir "(...) um guarda-chuva que apenas lhe foi dado em empréstimo" (p. 191). Livro imprescindível em um "(...) mundo em que o absurdo é cada vez mais a regra geral, ou tende a sê-lo pelo menos" (p. 68), possui uma das melhores aberturas da literatura ocidental (V. abaixo).    

(Janeiro, 2017)

Avaliação: MUITO BOM   





Entre aspas



“Se não consigo ser otimista é porque igualmente não consigo ser menos calvo do que sou, ou menos baixo de estatura, ou ainda menos feio do que pareço diante do espelho" (p. 125)

"Não há realmente pior forma de terrorismo do que não aceitar o terrorismo implantado há milênios pela máquina do Estado (...)" (p. 183)



Primeiro parágrafo

"Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Invocando a legítima defesa - e qual defesa seria mais legítima? - logrei ser absolvido por 5 votos contra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. // Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-se então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo".


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