domingo, 31 de janeiro de 2016

A dama de branco e outros contos (1835) 
Nathaniel Hawthorne (1804-1864) - Estados Unidos            
Tradução: Ana Moura           
Lisboa: Estampa, s/d, 252 páginas 


Não se trata, estrito senso, de contos, mas de parábolas com um fundo moral um tanto quanto difuso. Por isso, não há personagens, mas tipos: o enredo anda a serviço da exposição de uma tese, herança da literatura pré-realista, da qual o autor ainda é tributário. São nove narrativas - sendo que a última, "Lendas da Casa Provincial", se desdobra em quatro histórias - que beiram ao absurdo, pois nascem sempre de emblemáticas situações-limite. O destaque, sem dúvida, vai para "Wakefield", um homem que um dia, sem qualquer propósito, deixa sua casa e instala-se incógnito numa rua vizinha, onde passa a viver. Vinte anos mais tarde, retorna como se nada tivesse acontecido. Personagens estranhas ou bizarras povoam as páginas de Nathaniel Hawthorne: "A dama de branco" que espectral atordoa a cidade com seu mistério; o noivo abandonado que se vinga dezenas de anos depois ("O dobre nupcial"); os velhos que aspiram à eterna juventude ("A experiência do doutor Heidegger"); o homem que destrói sua casa buscando um cofre cheio de ouro ("O tesouro de Peter Goldthwaite"); um religioso que denuncia a hipocrisia de sua comunidade ("O véu negro do pastor"); os fantasmas que habitam os cômodos da velha "Casa Provincial"; as metáforas da arte contidas em "O artista do belo" e "A estátua de madeira". 


Avaliação: BOM

(Janeiro de 2016)

Entre aspas

“É muito perigoso cavar um abismo nas afeições humanas, não por ficarem muito tempo expostas, mas pelo contrário se fecharem muito rapidamente." (p. 31)

"No meio da confusão aparente do nosso mundo misterioso, os indivíduos estão tão exatamente ajustados a um sistema, e os sistemas estão tão perfeitamente adaptados um ao outro e a um todo, que se um homem se afasta dele um só instante, corre o terrível risco de perder para sempre o seu lugar". (p. 39)

"O artista ideal precisa possuir uma força de caráter que não parece compatível com a sua delicadeza. Deve possuir fé em si próprio enquanto o mundo incrédulo o assalta com as suas dúvidas. Tem de se levantar contra a humanidade e ser o seu único discípulo, no que respeita, ao mesmo tempo, o seu gênio e os fins para que o mesmo tende." (p. 51)

"Amamos tanto a vida em si mesma e raramente tememos perdê-la. Quando desejamos a vida para alcançar qualquer objetivo, reconhecemos então a fragilidade da sua consistência." (p. 65)

"(...) à medida que avançamos na vida, quando os objetos começam a perder a frescura das cores e as nossas almas a delicadeza de percepção, que o espírito da beleza se torna mais necessário." (p. 68) 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A jeira de Deus (1933) 
Erskine Caldwell (1903-1987) - Estados Unidos        
Tradução: Silvano Ferreira            
Lisboa: Ulisséia, 1985, 202 páginas 


Antes de mais nada, por se tratar de uma tradução portuguesa, esclareço que "jeira" equivale a algo como um pedaço de terra - em inglês, o título do livro é "God's little acre". O romance narra a história de uma família de brancos pobres, brutalizados e amorais, os Walden, que há quinze anos subsistem em um enorme equívoco: o patriarca, Ty Ty, ao invés de plantar algodão em suas terras, na Geórgia, como todos os vizinhos, esburaca-a em busca de ouro. Nesta ilusão envolve os filhos Shaw e Buck, casado com a belíssima Griselda, a filha Darling Jill, os empregados negros Black Sam e Tio Félix, além da filha casada, Rosamond e seu marido, o líder operário Will Thompson, que vivem em Scottsville, uma cidade fabril da Carolina do Sul. Ty Ty tem ainda outro filho, Jim Leslie, o único que, rebelando-se contra a fantasia de riqueza fácil do pai, foi embora, casando-se com uma mulher de posses e tornando-se um bem sucedido especulador de algodão. O romance gira todo em torno da "febre do ouro" que consome Ty Ty, mas principalmente da sexualidade animalesca das personagens*, que irá aniquilar a família, e poderia ser resumido na frase: "Deus pôs-nos em corpos de animais e quis fazer-nos agir como pessoas" (p. 200). 

* Valeria a pena estudar a influência de Erskine Caldwell sobre o brasileiro Jorge Amado (1912-2001), que certamente leu o escritor norte-americano. 

   

Avaliação: BOM

(Janeiro de 2016)


terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Hotel Savoy (1924) 
Joseph Roth (1894-1939) - Ucrânia              
Tradução: Silvia Bittencourt            
São Paulo: Estação Liberdade, 2013, 183 páginas 


Súdito do Império Austro-húngaro, Roth, nascido em uma cidade que hoje localiza-se na Ucrânia, e escrevendo em alemão, narra a história de Gabriel Dan, soldado judeu capturado durante a I Guerra Mundial e preso na Sibéria (Rússia). A história se inicia quando ele, então livre, para em um lugar inominado, a meio caminho entre o leste e o oeste da Europa, visando conseguir dinheiro de um parente rico para prosseguir viagem. Enquanto isso, hospeda-se no Hotel Savoy, com seus mais de 800 quartos distribuídos em sete andares. Romance premonitório, o hotel é uma espécie de gueto onde os judeus estão confinados, conhecidos não por seus nomes, mas "(...) de acordo com o número do quarto" (p. 57). Povoado por personagens marginalizados, o hotel oferece no Salão das Cinco Horas jovens nuas aos poderosos do lugar. Dan e seu amigo, o croata Zwonimir Pansin, um revolucionário "(...) desde o nascimento" (p. 88) que "(...) amava a América" (p. 89), dividem o quarto e o desejo de alcançar seus países de origem. A chegada de um ser meio mítico, Henry Bloomfield, a quem Dan irá secretariar, muda suas expectativas. Ao final, antecipando o caos que precederia o surgimento do nazismo, a polícia reprime duramente uma manifestação popular, o hotel é incendiado e Dan pode continuar seu trajeto.


Avaliação: BOM

(Janeiro, 2016)

Entre aspas

"As pessoas não são más, quando dispõem de bastante espaço." (p. 110)

"Elas iam mal, as pessoas. Elas mesmas preparavam seu destino, mas acreditavam que ele viesse de Deus. Estavam presas em tradições e seu coração pendia em mil fios, mas suas mãos mesmas trançavam esses fios." (p. 142)

"A vida está tão visivelmente conectada com a morte, e os vivos, com seus mortos. Não há um fim, uma ruptura - sempre continuação e ligação." (p. 154)

"As mulheres fazem suas bobagens não como nós, por descuido e imprudência, mas quando estão infelizes." (p.  161)

  

domingo, 17 de janeiro de 2016

O morro dos ventos uivantes (1847) 
Emily Brontë (1818-1848) - Inglaterra             
Tradução: Rachel de Queiroz           
Rio de Janeiro: Record, 2004, 397 páginas 





Essa tragédia shakespeariana é um dos maiores monumentos da literatura ocidental. Tecnicamente genial, apresenta o retrato do mais execrável personagem jamais surgido, Heathcliff, sempre de maneira indireta o leitor o conhece apenas pelo olhar da narradora, a governanta Ellen (Nelly) Dean –, enquanto a verdadeira protagonista, Catherine, morre quando o livro vai apenas pela metade... O romance conta a história de Heathcliff, um menino recolhido nas ruas de Liverpool e levado para a propriedade da família Earnshaw, no extremo norte da Inglaterra. Lá, ele convive com os irmãos Hindley, que se torna seu inimigo, e Catherine, por quem doentiamente se apaixona, e os vizinhos Edgar e Isabella Linton. Quando Catherine se casa com Edgar, a loucura de Heathcliff se aprofunda, e ele some. Ao voltar, três anos depois, cego de ressentimento, executa um terrível plano para se vingar de cada um daqueles que acredita contribuiu para a sua infelicidade - Hindley, Edgar, Isabella... Ousada, a Autora arma uma história declaradamente anti-romântica (V. p. 357) e amoral, já que o personagem principal - egoísta, ladrão, perverso, mau - não recebe qualquer punição pelos seus atos e acaba se deixando morrer de inanição*.    

* É de três anos antes outra maravilhosa história movida pela vingança, "O Conde de Monte Cristo", do francês Alexandre Dumas (1802-1870), com uma diferença fundamental: Edmond Dantès é um homem bom que se deixa corromper pelo ódio, enquanto Heathcliff é um ser apenas amargura e ressentimento.   
   
Avaliação: OBRA-PRIMA 

(Janeiro de 2016)

Entre aspas

“Gente orgulhosa forja tristeza com as próprias mãos” (p. 72)

“O tirano tortura os escravos, mas os escravos nunca se voltam contra ele; vão esmagar aqueles que lhe ficam por baixo” (p. 138)

“(...) às vezes, temos dó de criaturas que não sabem ter dó nem de si nem dos outros” (p. 200)



Nova edição: 
Há uma edição excelente, comentada, com tradução de Adriana Lisboa, apresentação de Rodrigo Lacerda, nota biográfica de Ellis e Acton Bell ( Emily e Anne Brontë) e cronologia sobre a vida e a obra da autora. 
Rio de Janeiro: Zahar, 2016, 375 páginas



quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) 
Machado de Assis (1839-1908) - Brasil             
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: MEC, 1975, 301 páginas 






Um dos melhores romances da literatura ocidental, “(...) livro escrito com pachorra, (...) que não edifica nem destrói, não inflama nem regela (...) mais que passatempo e menos do que apostolado” (p. 104). Morto, Brás Cubas pode mostrar-se como é, sem receio do julgamento de seus pares: egoísta, interesseiro, parasita social que usufrui da fortuna deixada pelo pai. Se do ponto de vista formal é inovador e moderno basta observar, por exemplo, os capítulos VI (O delírio), digno de figurar nas melhores antologias fantásticas; o magnífico LV (O velho diálogo de Adão e Eva), inteiro construído com interrogações, exclamações e reticências; o CXXXIX (De como não fui ministro de Estado), feito somente com reticências, pois “há coisas que melhor se dizem calando” (p.281) não o é menos na introdução de novas temáticas no horizonte da ficção nacional. Escrito com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia” (p. 97), é irônico, pessimista, cruel observe, entre outros, os capítulos XXI (O almocreve), o XLVI (A herança), o LXVIII (O vergalho) e o LXXV (Comigo). Interessante também notar que destas Memórias surgem algumas sugestões para textos posteriores, particularmente o romance Quincas Borba (1892)*.

* É aqui que surge o personagem e aqui também que é exposta sua filosofia, o Humanitismo (cap. CXVII). 



Avaliação: OBRA-PRIMA 

(Janeiro, 2016)


PRIMEIRO PARÁGRAFO

“Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião".


ÚLTIMO PARÁGRAFO

“Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semi-demência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. 


Entre aspas

“Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste”. (p. 111)

“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis, nada menos”. (p. 132)

“Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não é; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes” (p. 152)

“A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana (p. 222)