sábado, 31 de dezembro de 2016


A fogueira e outros contos (1899-1911)
Jack London (1876-1916) - Estados Unidos        
Tradução: Ana Barradas     
Lisboa: Antígona, 2004, 218 páginas





Esta coletânea inclui nove das dezenas de contos publicados pelo autor, dois deles verdadeiras obras-primas da narrativa breve: “Um bife” e “A fogueira”. O Autor, um homem que buscou aventuras por todas as partes do mundo, quase sempre coloca seus personagens atuando em cenários exóticos – mas para refletir a respeito do ser humano, não sobre as coisas que o cercam. “Na esteira de Makaloa” é uma história de amor e desamor passada no Havaí; “As terríveis Salomão”, crítica feroz ao colonialismo e ao racismo, que lhe é inerente, usa as Ilhas Salomão, no Oceano Pacífico, como espaço romanesco; “As pérolas de Parlay”, para além da magnífica descrição de uma borrasca em um atol na Micronésia, expõe a ganância e a crueldade do homem branco; “Um bife” é a eterna luta entre a Juventude e a Velhice, metáfora do fluxo da vida, portanto, encenada em um ringue de boxe na Austrália; “Semper Idem” e “O benefício da dúvida”, este sobre a corrupção que adoece a sociedade, aquele sobre a insanidade que perpassa a normalidade, ambos ocorridos no interior dos Estados Unidos; “Burlado” narra o estratagema de um ex-revolucionário polonês para conseguir morrer no gelado espaço da América russa (o Alasca); também ali decorrem os contos “”O engenho de Porportuk” e “A fogueira” – um libelo a favor da honra e das mulheres, o primeiro, a impressionante descrição de uma morte por congelamento, o segundo. Um Autor indispensável.





Avaliação: MUITO BOM  

(Dezembro, 2016)


Entre aspas


“(...) o branco que queira ser inevitável não só deve desprezar as raças inferiores e considerar-se superior a elas, como também deve ter falta de imaginação. Não convém que tenha grande consciência sobre os instintos, costumes e processos mentais dos negros, dos amarelos e dos acobreados; porque não foi dessa maneira que a raça branca ascendeu à sua posição dominante em todo o mundo.” (p. 40)

“Um homem só não pode lutar contra uma máquina a menos que tenha outra máquina por trás.” (p. 136)

“(...) temia a tortura. Era uma ofensa para a alma.” (p. 153)

“(...) era (...) um homem sem imaginação. Era rápido e alerta nas coisas da vida, mas só nas coisas, e não nos significados” (p. 200)




sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

O monstro e outros contos (1898
Stephen Crane (1871-1900) - Estados Unidos          
Tradução: David Furtado      
Lisboa: Antígona, 2003, 161 páginas





Este livro reúne três contos: uma narrativa longa, "O monstro", e duas curtas, "O hotel azul" e "As luvas novas de Horace". "O monstro" e "As luvas novas de Horace" têm como cenário comum a pequena comunidade fictícia de Whilomville, no estado de Nova York, enquanto "O hotel azul" se passa em outra pequena comunidade fictícia, Fort Romper, em Nebraska. Em "O monstro" conhecemos a trágica história do negro Henry Johnson, cavalariço do doutor Trescott, homem elegante e charmoso, que causa admiração e inveja na cidade. Um dia, a casa onde trabalha pega fogo e, ao salvar a vida do pequeno Jim, filho do médico, sofre queimaduras terríveis, tornando-se um "monstro" irreconhecível. Repudiado por todos por sua aparência, Johnson só conta com a solidariedade do seu antigo patrão, cuja família passa a ser hostilizada por protegê-lo. "As luvas novas de Horace" recria, de maneira primorosa, as dúvidas e angústias da primeira infância, quando ainda buscamos nosso lugar no mundo. Já "O hotel azul" é uma história de violência e incompreensão, de hipocrisia e enganos. Um sueco hospeda-se em um hotel e desde sua chegada encaminha sua trajetória para um desfecho funesto, em uma bela metáfora a respeito da responsabilidade que cabe a cada um de nós em relação ao outro.  



Avaliação: BOM   

(Dezembro, 2016)




terça-feira, 20 de dezembro de 2016

A escavação (1987
Andrei Platónov (1899-1951) - Rússia          
Tradução: António Pescada      
Lisboa: Antígona, 2011, 173 páginas




Concluído em 1930, esse livro só foi publicado 57 anos depois - 36 anos após a morte do Autor. É uma crítica desalentadora ao processo de construção da União Soviética, com seus desmandos, sua burocracia incompreensível, o clima de delações e oportunismos e as incertezas nascidas da pequena autoridade - como explica Páchkin, presidente do conselho sindical da região: "cada pessoa deve ter um pouco de poder" porque isso torna o sujeito "mais calmo e mais conveniente" (p. 39). Mas não se trata de um romance de denúncia nem de tese, nem mesmo de uma distopia, como querem os editores. É o olhar sensível que limita-se a descrever algumas situações - e que, para ser o mais realista possível, lança mão de elementos... fantásticos! A narrativa torna-se assim extremamente eficaz, não adquirindo nunca um tom satírico ou sarcástico, que em geral não me agrada, por ser arrogante, deixando-se conduzir pela ironia, que julga, mas não condena, que compreende, mas não concorda. Influenciado certamente por Franz Kafka (1883-1924), encontramos no livro cavalos com estrito sentido de coletividade, que dividem o feno "submetendo-se à disciplina de maneira organizada, sem o cuidado do homem" (p. 104); um urso proletário, Misha, que trabalha martelando "como um homem uma tira de ferro incandescente" (p. 126); kulaks, termo soviético pejorativo para designar proprietários de terra, que dormem em caixões (p. 130 e seguintes); uma jangada construída para levar os kulaks para o oceano, para sempre (p. 121); a menina Nástia, filha de uma burguesa, que não quis nascer "enquanto só viviam os burgueses", mas aguardou a chegada de Stálin para vir ao mundo (p. 69) e a própria escavação, que dá título ao livro, alicerce para a construção da "única casa proletária comum, em substituição da velha cidade onde ainda agora as pessoas viviam de modo individual e isolado" (p. 25). Neste mundo, onde a felicidade, “um conceito burguês”, só leva as pessoas “à vergonha” (p. 23), desenvolve-se o fanatismo, que leva a crer que a ciência soviética poderia até mesmo ressuscitar os mortos, como argumenta o mutilado Játchev: “O marxismo pode fazer tudo. Senão, porque Lênine continua inteiro em Moscovo? Espera pela ciência, quer ressuscitar" (p. 146). Voschev, um dos personagens principais do livro – o romance parodia o realismo socialista, onde não há lugar para protagonismos – e alterego do Autor, resume enfim o desalento de quem acreditou na eficácia da Revolução Russa: "tenho sempre a impressão de que lá longe existe qualquer coisa especial ou objeto magnífico irreal, e eu vivo na tristeza" (p. 99).



Avaliação: BOM   

(Dezembro, 2016)


Entre aspas

"(...)  a paixão da razão é a atracção pela morte (...)" (p. 153)



sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Contos 3 (1934-1987
Ernest Hemingway (1899-1961) - Estados Unidos         
Tradução: José J. Veiga      
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015, 461 páginas



Último dos três volumes que reúnem a obra contística completa do Autor, este livro compila 21 narrativas bastante diversas entre si em termos temáticos, mas bastante próximas no resultado mediano. Trata-se, na verdade, de um ajuntamento de histórias não recolhidas em vida - provavelmente porque não se adequavam à sua exigência - e outras que são meros esboços de romance ("Um país estranho", que viria a ser aproveitado para a composição de As ilhas da corrente, publicado postumamente em 1970), capítulos de romance não terminado ("Viagem de trem" e "O cabineiro"), contos inacabados ("Quando o mundo era novo") e até mesmo fábulas infantis ("O leão bondoso" e "O touro fiel"). Os cenários são Cuba ("Uma travessia", "O regresso do mercador"*, Ninguém morre jamais", "Cada isso nos lembra um aquilo", "Boas notícias da terra firme"), a guerra civil espanhola ("A denúncia", "A borboleta e o tanque", "Véspera de batalha", "Ao pé da cordilheira" e "Paisagem com figuras"**), savanas africanas ("Arranje um cachorro de cego" e "Episódio africano"), a França no final da Segunda Guerra Mundial ("Burro preto na encruzilhada") e os Estados Unidos ("Um homem experiente", "Viagem de trem", "O cabineiro", "Um país estranho", "Veranistas" e "Quando o mundo era novo""*** ). Embora os textos tragam a marca inconfundível de Hemingway, e portanto, não desçam nunca ao nível do ruim, este é um livro dispensável: para o leitor comum, não dá ideia da grandiosidade do Autor; para seus admiradores, nada acrescenta. Talvez valha para candidatos a escritor, porque nele se pode pinçar uma frase que vale todo um manual de literatura: "Escreva sobre assuntos que você conheça" (p. 371).


"Uma travessia" e "O regresso do mercador" têm o mesmo protagonista, um certo Harry, e exploram mais ou menos o mesmo tema, o contrabando entre os Estados Unidos e Cuba - de gente, de bebida, de tudo.
** A borboleta e o tanque", "Véspera de batalha", "Ao pé da cordilheira" e "Paisagem com figuras" têm como personagem principal Edwin Henry (Hank), misto de jornalista e escritor que cobre as batalhas pela posse de Madri, entre nacionalistas e republicanos, durante a guerra civil espanhola.
*** Veranistas" e "Quando o mundo era novo" retomam o personagem Nicholas (Nick) Adams, alter ego de Hemingway, que aparece em 12 contos do volume 1.




Avaliação: BOM  

(Dezembro, 2016)


quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O Leopardo (1958
Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa (1896-1957) - Itália         
Tradução: Rui Cabeçadas      
São Paulo: Abril, 1979, 279 páginas




Romance póstumo (foi publicado no ano seguinte à morte do Autor), retrata com uma precisão impressionante a derrocada da aristocracia periférica da Europa (no caso, a siciliana), mas, muito além disso, flagra as contradições de uma época, prenunciando o impasse que viria resultar no caos da primeira metade do século XX. Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, homem "imenso e forte" (p. 19), de "pele clara e uns cabelos loiros entre um povo de pele olivácea e cabelos negros", possui "um temperamento autoritário, uma certa rigidez moral, uma propensão às ideias abstratas" (p. 20). Descendente de uma família tão rica "que, pelos séculos afora, não aprendera sequer a fazer a soma das despesas e a subtração das dívidas" (p. 20), ele tem por hobby a caça em uma de suas propriedades, Donnafugata, e a observação astronômica - chegou a descobrir dois planetas e ostenta orgulhoso medalhas e condecorações pelos seus feitos, concedidas por renomadas universidades europeias. O Príncipe de Salina, no entanto, tem plena consciência de que é o último representante não só de sua estirpe, mas de sua classe social: "(...) o significado de uma linhagem nobre está todo nas tradições, quer dizer, nas recordações vitais (...)" (p. 249). Melancólico, o Príncipe percebe a decadência inexorável de Donnafugata - os móveis estragados, os tecidos manchados, os utensílios desfalcados, as pinturas das paredes esmaecidas, os jardins abandonados -, tão grande que ele nunca havia posto os pés em muitos de seus recantos, pois, pensava orgulhoso, que "palácio de que se conheciam todas as dependências não era digno de ser habitado" (p. 162). Mas o livro é também e principalmente um magnífico afresco social. A aristocracia sai de cena, mas não seus membros. Em uma das mais célebres citações da literatura - verdadeiro tratado de sobrevivência política, e de cinismo, portanto -, o sobrinho do Príncipe, Tancredi Falconeri, que mantém títulos mas não possui dinheiro algum, avisa ao tio que vai se juntar aos revolucionários que lutam pela unificação da Itália - contra o Reino das Duas Sicílias. O tio se surpreende, mas Tancredi explica: "Se nós não estivermos lá, eles fazem uma república. Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude" (p. 40). A Itália se unifica e Tancredi se casa com uma plebeia, Angelica, neta de um rendeiro do Príncipe, "tão porco e tão selvagem que lhe chamavam de Peppe Merda" (p. 124), mas filha do avarento don Calogero Sedàra, "muito rico e também muito influente" (p. 124). Tancredi se monetariza, Angelica é aceita na sociedade - e o povo permanece na miséria e na ignorância, seja nos campos inférteis dos latifúndios, seja nas ruas imundas e perigosas das cidades. Dividido em sete capítulos, devidamente datados (maio, agosto, outubro e novembro de 1860, fevereiro de 1861,novembro de 1862, julho de 1883 e maio de 1910), vale a pena ler e reler o capítulo VII, que descreve a morte do Príncipe - 14 das mais bem escritas páginas da literatura ocidental. Estupendo romance!


  



CURIOSIDADES
1) O Brasil em O Leopardo: "O nome da Virgem, invocado por aquele coro virginal, enchia a galeria e transformava as macaquinhas em mulheres, dado que não constava ainda que os saguis das florestas brasileiras ser tivessem convertido ao catolicismo." (p. 225)

2) O narrador usa de uma técnica inusual, de antecipar fatos, a respeito dos personagens, que não constam do livro. Dois exemplos:
"Aqueles foram os dias melhores da vida de Tancredi e de Angelica, vidas que depois haviam de ser tão diversas, tão cheias de pecado sobre o inevitável fundo de dor" (p. 168)
"(...) mobiliário que Concetta considerava antiquado e mesmo de péssimo gosto, mas que, vendido no leilão que se seguiu à sua morte, constitui hoje o orgulho de um rico mandatário (...)" (p. 264)



Avaliação: OBRA-PRIMA  

(Dezembro, 2016)


Entre aspas

"Era quase noite cerrada e àquela hora os conventos dominavam a paisagem, como déspotas incontestados. Era verdadeiramente contra eles que aquelas fogueiras da montanhas ardiam, atiçadas, de resto, por homens [os rebeldes garibaldinos] que muito se assemelhavam aos que viviam nos conventos: como eles, fanáticos; solitários, como eles; como eles, ávidos de poder, isto é, como sempre, ávidos de ociosidade." (p. 34)


"(...) que diabo faria o Senado de mim, de um legislador inexperiente a que falta a faculdade de enganar-se a si próprio, requisito este essencial a quem queira guiar os outros?" (p. 186)


"(...) todas as vezes que se encontra um parente encontra-se um espinho (...)" (p. 206)


"(...)  a consideração da sua própria morte serenava-o tanto quanto o perturbava a morte dos outros; talvez porque, no fundo, bem lá no fundo, a sua morte fosse, em primeiro lugar, a morte do mundo inteiro." (p. 230)


"(...) sentimentalismo e beija-mãos: são mesmo os argumentos políticos mais eficazes (...)" (p. 238)



sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Contos 2 (1925-1938
Ernest Hemingway (1899-1961) - Estados Unidos         
Tradução: Ênio Silveira e José J. Veiga      
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, 319 páginas





Segundo dos três volumes que reúnem a obra contística completa do Autor, este livro compila 21 narrativas curtas, entre as quais pelo menos três obras-primas da literatura universal: "A vida breve e feliz de Francis Macombe", "As neves do Kilimanjaro" e "Os pistoleiros" - curiosamente, as duas primeiras têm como cenário a África e na outra ressurge Nick Adams, protagonista de 12 dos 28 contos do primeiro volume. Além disso, quase todos as histórias que tematizam a guerra (seja a Primeira Guerra, seja a Guerra Civil Espanhola) são primorosas em sua compreensão do ser humano, com destaque para "O velho na ponte", A volta do soldado", "Agora vou dormir" e a terrível "História natural dos mortos". Também merecem atenção as narrativas que abordam fins de relacionamento amoroso: "Colinas parecendo elefantes brancos" e "Um canário para ela". Estranhamente, não me dizem nada os contos cujos personagens estão envolvidos com o mundo da tourada - "esporte" que o Autor adorava e que motivará todo um romance, "O sol também se levanta" (1926). Neste volume, temos Ernest Hemingway em sua melhor forma.



Avaliação: MUITO BOM  

(Dezembro, 2016)


Entre aspas


"(...) quando se está apaixonado (...) lembra-se de coisas que aconteceram, mas a sensação não é recuperada". (p. 291)

"Revolução é catarse; um êxtase que só pode ser prolongado por tirania". (p. 319)


terça-feira, 29 de novembro de 2016

Memórias de um morto (1918
Hjalmar Bergman (1883-1931) - Suécia         
Tradução: João Reis       
Vila Nova de Gaia: Eucleia, 2011,326 páginas



Trata-se de um romance bastante desigual: o primeiro bloco, que ocupa cerca de 2/3 do livro, é muito bom e funciona como unidade autônoma; o segundo, no entanto, é confuso e inverossímil. A primeira parte, da página 10 a 178, compreende a infância do protagonista, Jan Arnberg, com uma introdução (os dois primeiros capítulos) sobre a origem obscura da família Arnberg (que tinha sido Fält, depois Fältman), envolvendo roubo e assassinato, e que, mais tarde, iria se orgulhar de contar com um bispo (Julius), médicos e advogados. Narrado em primeira pessoa, Jan acompanha as notícias de seu pai, Johann, aventurando-se nos Estados Unidos e ganhando e perdendo dinheiro com um remédio "milagroso" contra tuberculose, e, depois, com a morte de sua mãe, a volta para W., interior da Suécia, onde mantém relações conturbadas com o sogro, o bispo Julius, inflexível em suas predições morais, e com cunhados e concunhados. Johann casa-se em  segundas núpcias com Hedda, com quem já tinha uma filha, Anna, vivendo todos em uma situação de quase miséria, o pai a perseguir invenções inexequíveis. A repetição do destino das personagens - que morrem de tuberculose ou vitimados pelo álcool - e o clima meio onírico no qual a história transcorre faz com que nos lembremos - a angústia da influência - do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014): poderíamos até mesmo afirmar que Memórias de um morto seria assim uma espécie de Cem anos de solidão protestante. Como exemplo, leiamos o que se segue: : "(...) sofria pelos pecados de seus antepassados, e (...) o seu castigo e também da família, era o de que o mesmo crime tinha de ser perpetuado geração após geração" (pág. 282) ou "Nós, Arnbergs, tornamo-nos ou pecadores ou fantasmas" (pág. 200). Mas, se nessas páginas iniciais há um clima mágico que dá sentido à narrativa, o segundo bloco, que transcorre em Hamburgo, Alemanha, uns 15 anos mais tarde, é recheado de coincidências gratuitas e revelações inexplicáveis que embaralham-se, tornando a história complicada e não complexa. Uma pena, porque a ideia de que Jan, antes mesmo de morrer já está morto, materializada nesta excelente imagem, "O relógio do pai perdeu os ponteiros. Os números estão lá, e o mecanismo faz tique-taque, mas não sei é de manhã ou de tarde, dia ou noite" (pág. 264), não sustenta a pretendida unidade do livro. 


Avaliação: BOM  

(Novembro, 2016)


sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Águas de primavera (1872
Ivan Turgueniêv (1818-1883) - Rússia         
Tradução: Sonia Branco      
Barueri: Amarilys, 2015, 233 páginas





Magnífico romance! Dmitri Pávlovitch Sánin é um jovem aristocrata rural russo de 22 anos, entediado, que, voltando de uma viagem pela Itália, para em Frankfurt para descansar. Cinco horas antes de tomar a diligência para Petersburgo, passando por "uma das ruas mais insignificantes" da cidade (p. 20), acaba salvando por acaso um adolescente de 14 anos, quando conhece sua irmã, Gemma, uma "impetuosa" moça cinco anos mais velha. Embora nascidos na Alemanha, ambos têm origem italiana, filhos que são do fundador da Confeitaria Italiana Giovanni Roselli, tocada pela viúva, Leonora, e por um empregado. Sánin apaixona-se perdidamente por Gemma, mas ela está prometida a Karl Klüber, um promissor comerciante. Sánin adia a viagem de volta à Rússia e começa a frequentar a casa dos Roselli. Um dia, Gemma é ofendida por um jovem oficial alemão e, vendo que o noivo não reage, Sánin toma suas dores e desafia o provocador para um duelo, sem maiores consequências. Mas, a partir daí, Gemma e Sánin se aproximam e ela desiste da relação com Klüber - seria uma banalissima história, caso terminasse por aqui. Porém... Sánin resolve vender suas terras para se casar com Gemma. Antes de viajar para a Rússia, no entanto, esbarra com um antigo colega de infância, Ippolit Sídoritch Pólozov, casado com uma "beldade", Maria Nikoláievna, riquíssima, que "se curava de uma doença qualquer em Wiesbaden", um lugarejo vizinho (p. 155). Pólozov convence Sánin de que a mulher pode comprar suas "almas", evitando o longo e desgastante deslocamento. Entusiasmado, Sánin acompanha-o a Wiesbaden, onde é apresentado a Maria, uma jovem de 22 anos, fútil, sedutora e caprichosa. Em pouco tempo, ele apaixona-se violentamente por ela, esquecendo-se de Gemma, com quem rompe por carta. Sánin, como um escravo, acompanha o casal a Paris e de lá, após ser abandonado pela amante, retorna à Rússia, onde, desiludido e envergonhado, arrasta uma "vida solitária, sem família nem alegrias", cultivando "lembranças do passado" (p. 229). Apesar de os dois últimos capítulos serem de todo desnecessários - formam uma espécie de "que fim levou"... - trata-se de um romance magnífico!




Avaliação: MUITO BOM  

(Novembro, 2016)


terça-feira, 22 de novembro de 2016

Os ratos (1935) 
Dyonélio Machado (1895-1995) - Brasil         
São Paulo: Planeta, 2004, 207 páginas




Um dos melhores romances da literatura brasileira, acompanha 24 horas na vida do pequeno funcionário público Naziazeno Barbosa, homem apático, acuado pela pobreza, dono de uma "preguiça doentia" (p. 53), que tenta arrumar dinheiro para quitar sua dívida com o leiteiro, sob pena de este deixar de fornecer o produto, essencial para o filho "de quase quatro anos" (p.147). Naziazeno consome toda a manhã e a tarde percorrendo as ruas do centro de Porto Alegre na esperança de encontrar alguém - um colega, um agiota - que lhe empreste o dinheiro necessário. Covarde e sem carisma, ele hesita, ele titubeia, ele vacila. No meio da tarde, consegue uma modesta quantia com um conhecido e resolve testar a sorte na roleta, sem sucesso. Somente no começo da noite, com ajuda de dois notórios malandros, Alcides e Duque, é que consegue o dinheiro, por meio do empenho do anel de bacharel de um deles a um tal doutor Mondina. Satisfeito, Naziazeno chega em casa às nove horas da noite, levando queijo, manteiga, um brinquedinho para o filho e o montante da dívida. Ele coloca então as notas em cima da mesa da cozinha para que, na madrugada, o leiteiro as recolha. No entanto, ansioso, Naziazeno imagina, desesperado e impotente, que os ratos estão roendo o dinheiro e é assaltado pela insônia*. Magnífico exemplo de romance social não naturalista, tudo ocorre em um clima nebuloso, como se houvesse um véu impedindo a percepção da realidade pela personagem, que não é protagonista de sua própria vida. Nesse sentido, a singularidade de Naziazeno se erige em símbolo: a da pobreza como alienação de si mesmo. Naziazeno não é sujeito de sua história, mas mero expectador: todos os seus dias são dias inglórios. 



* O narrador antecipa o simbolismo dos ratos, que ocupa os últimos capítulos do romance, primeiro como metáfora: são seus colegas de repartição "que se esgueiram, que se somem com pés de ratos" (p. 46).






Avaliação: OBRA-PRIMA  

(Novembro, 2016)


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Contos 1 (1925-1938) 
Ernest Hemingway (1899-1961) - Estados Unidos        
Tradução: José J. Veiga     
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, 206 páginas



Primeiro dos três volumes que reúnem a obra contística completa do Autor, este livro compila 28 narrativas curtas publicadas na primeira década de sua trajetória literária. Coletânea desigual, no entanto já demonstra, em toda sua expressividade, as características determinantes do estilo hemingwayniano, que iria ser adotado por escritores de várias gerações posteriores, chegando em um determinado momento a se tornar até mesmo cacoete. Frases curtas e diretas quase sem adjetivos, histórias construídas em media res com final em aberto, tramas simples ou mesmo inexistentes, às vezes recortadas como flagrantes fotográficos, às vezes como crônicas jornalísticas - mas sempre permeadas pela profunda compreensão da alma humana*. Doze dos 28 contos têm Nick Adams (alterego do Autor) como personagem - ora protagonista, ora coadjuvante - e pelo menos outros oito apresentam similitudes com ele, aqueles que apresentam jovens casais em desarmonia (como "Mudança de ares" ou "Vinho de Wyoming"). Assim, as histórias de Nick Adams podem ser lidas em paralelo, conformando uma espécie de romance breve ou biografia resumida: sua infância em Wyoming ("Acampamento índio"), os amores da adolescência ("O fim de alguma coisa", "Dez índios"), a juventude no meio da guerra ("Você nunca será assim", "Um dia esperando"), a maturidade ("Pais e filhos"). Lidas algumas histórias, o livro pode nos parecer cansativo pela repetição da estrutura ficcional, mas não há como ignorar que poucos autores conseguem resultados de excelência como "Lá no Michigan", "Acampamento índio", "O médico a mulher do médico", "O fim de alguma coisa", "O lutador", "Dez índios", "Você nunca será assim", "Um dia esperando", "Pais e filhos"...






* Neste aspecto, por mais díspares que possam parecer, o Autor se aproxima sobremaneira do russo Anton Tchekov (1860-1904).





Avaliação: MUITO BOM  

(Novembro, 2016)


Entre aspas


"Todos os sentimentais estão sempre sendo traídos" (p. 195)

sábado, 5 de novembro de 2016


O espelho que foge (1906-1907) 
Giovanni Papini (1881-1956) - Itália        
Seleção: Jorge Luis Borges
Tradução: Maria Jorge Vilar de Figueiredo      
Barcarena: Presença, 2007, 129 páginas



Eis um livro que prova, de maneira cabal, a tese do critico inglês Harold Bloom (1930), da "angústia da influência"*. Os contos de Papini são "borgianos" - no entanto, não é ele discípulo do argentino Jorge Luis Borges (1899-1996), mas sim este, que confessa, na apresentação: "(...) ao reler essas páginas tão remotas, descubro nelas, atônito e reconhecido, histórias que julguei inventar e que reelaborei à minha maneira (...)" (p. 10). Nas dez narrativas que formam a coletânea, nos deparamos com todos os temas caros a Borges, como a questão metafísica do tempo ("O espelho que foge", "O dia não restituído"), o duplo / o espelho ("Duas imagens num tanque", "História totalmente absurda", "Não quero ser mais aquilo que sou", "Quem és tu?", "O suicida substituto"), a vida como sonho ("A última visita do Cavalheiro Doente"), o real como banalidade  ("Uma morte mental", "O mendigo de almas"). Claro, Papini não tem a estatura de Borges: seu narrador é sempre o mesmo - (...) já me narrei tantas vezes a mim mesmo  nos meus contos (...)" (p. 99) -, o que torna a sucessão de tramas enfadonha e quase previsível. Ainda assim, cabe destacar a sua poderosa imaginação e a reflexão que oferece a respeito da tensão entre realidade e fantasia, tema recorrente nos dias de hoje na ficção.



* Muito se falou sobre a presença de Franz Kafka (1883-1924) na obra do brasileiro Murilo Rubião (1916-1991), que sempre a negou, alegando inclusive que só veio a ler o autor tcheco de expressão alemã após publicar seu primeiro livro, "O ex-mágico", em 1947. No entanto, é inegável a influência de Papini, que Rubião certamente conhecia, publicado por aqui a partir da década de 1930.



Avaliação: BOM  

(Novembro, 2016)


Entre aspas


"Toda a sua vida é feita de sonhos, ideais, projetos, expectativas; todo o seu presente é feito de pensamentos em torno de seu futuro. Tudo aquilo que existe, que é presente, nos parece obscuro, mesquinho, insuficiente, inferior, e só nos consolamos pensando que todo presente não passa de um prefácio, um longo e fastidioso prefácio para o belo romance do futuro. É graças a essa fé que vivem todos os homens, quer o saibam, quer não." (p. 20)

"E descobrirão esta coisa tremenda; que o futuro não existe como futuro, que o futuro é apenas uma criação e uma parte do presente, e que suportar uma vida inquieta, uma vida triste, uma vida dolente, por causa desse futuro que dia a dia nos foge e se afasta de nós, é a estupidez mais dolorosa desta vida tão estúpida." (p. 21)

"Lembrava-me muitas vezes dessa querida cidade, tão só no meio da planura, como uma exilada - sempre pensei que também existem cidades desterradas de sua verdadeira pátria (...)" (p. 23-24)  

"(...) só o impossível se torna às vezes real (...) " (p. 26)

"(...) os homens sorriem sempre, quando não compreendem nada." (p. 44)