segunda-feira, 29 de novembro de 2021

BALANÇO FINAL

 

 

Caro(a) amigo(a),

No dia 31 de agosto de 2015 – portanto há exatos 6 anos e três meses – iniciei esse projeto, de ler ou reler aqueles livros que considero clássicos, presentes na minha biblioteca. Não esgotei nem mesmo uma ínfima parte dos títulos, mas dou por encerrada essa etapa de compartilhamento das minhas impressões de leitura.

Foram comentados 338 livros, entre romances e coletâneas de contos, de autores e autoras das mais diversas línguas da tradição do mundo ocidental, a esmagadora maioria traduzidos diretamente do idioma original.

Abaixo, ofereço uma pequena lista dos romances que considero imprescindíveis – evidentemente o(a)  leitor(a) mais atento(a) sentirá falta de alguns títulos conhecidos e antecipo que alguns deles não estão na lista porque não os considero à altura de constar ao lado dos que se seguem, enquanto outros não estão porque não tive tempo, nesse período, de lê-los ou relê-los. Talvez valha a pena passear pelo blogue para conhecê-los ou perceber as ausências.

Além disso, ofereço alguns títulos de livros de contos e, no final, uma lista de contistas cuja obra não está contida em apenas um livro, mas espraia-se por várias coletâneas. E, por fim, ofereço uma pequena lista de romances brasileiros que vale a pena conhecer.

 

Os romances

 

Norte e Sul – Elizabeth Gaskell

A história de Mildred Peirce – James M. Cain

O Golem – Gustav Meyrink

Frankenstein – Mary Shelley

Morrer sozinho em Berlim – Hans Fallada

O regresso do soldado – Rebecca West

A Praça do Diamante – Mercè Redoreda

A paz dura pouco – Chinua Achebe

Berlin Alexanderplatz – Alfred Döblin

O jardim dos Finzi-Contini – Giorgio Bassani

A modificação – Michel Butor

O Primo Basílio – Eça de Queiroz

Os noivos – Alessandro Manzoni

Ifigênia – Teresa de la Parra

O bebedor de vinho de palmeira – Amos Tutuola

A Família Golovliov – Saltykov-Shchedrin

A ponte sobre o Drna – Ivo Andric

O Pai Goriot – Honoré de Balzac

No caminho de Swann – Marcel Proust

As viagens de Gulliver – Jonathan Swift

Gente independente – Halldór Laxness

O Leopardo – Giuseppe Tomasi, Príncipe de Lampedusa

Pequeno mundo antigo – Antonio Fogazzaro

O Conde de Monte Cristo – Alexandre Dumas

O Vermelho e o Negro – Stendhal

Marcha de Radetsky – Joseph Roth

1933 foi um ano ruim – John Fante

O coração das trevas – Joseph Conrad

O morro dos ventos uivantes – Emily Brontë

Nada de novo no front – Erich Remarque

O coração é um caçador solitário – Carson McCullers

Pedro Páramo – Juan Rulfo

Bom dia para os defuntos – Manuel Scorza

A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy – Laurence Sterne

A história maravilhosa de Peter Schlemihl – Adelbert von Chamisso

Águas de primavera – Ivan Turgueniév

Os de baixo – Mariano Azuela

Tom Jones – Henry Fieldings

 

 

 

Os livros de contos

 

Cavalo pálido, pálido cavaleiro – Katherine Ann Porter

Meias de seda – Kate Chopin

A fogueira e outros contos – Jack London

Três contos – Gustave Flaubert

Nove estórias – J.D. Salinger

Sagarana – Guimarães Rosa

Manual da faxineira – Lucy Berlin

Short cuts – Raymond Carver

28 contos – John Cheever

As filhas do fogo – Gérard de Nerval

A pane – O túnel – O cão – Friedrich Dürrenmatt

Dublinenses – James Joyce

Frenesi de verão – Erskine Caldwell

Encontros com Liz – Leonid Dobytchin

Os ventos – Eudora Welty

Contos de Tenetz – Yordan Raditchkov

Só para fumantes – Júlio Ramón Ribeyro

Contos de Belkin – Aleksander Pushkin

47 contos – Isaac Bashevis Singer

O cocheiro da morte – Selma Lagerlöf

Um episódio distante – Paul Bowles

Educação sentimental – Joyce Carol Oates

Biblioteca do século XXI – Stanilaw Lem

O planalto em chamas – Juan Rulfo

 

Os contistas

 

Luigi Pirandello

Katherine Mansfield

Bret Harte

Prosper Mérimée

Jorge Luís Borges

Guy de Maupassant

Franz Kafka

Machado de Assis

Leonid Andreiev

Anton Tchekov

Rubem Braga (não é contistas, sobrepaira sobre gêneros)

 

 

Romances brasileiros

 

Triste fim de Policarpo Quaresma – Lima Barreto

A lua vem da Ásia – Campos de Carvalho

Fogo morto – José Lins do Rego

O quinze – Raquel de Queiroz

A falência – Julia Lopes de Almeida

O risco do bordado – Autran Dourado

Os ratos – Dyonélio Machado

São Bernardo – Graciliano Ramos

Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis

Memórias sentimentais de João Miramar – Oswald de Andrade

 

 

 

 

 

 

 

 


quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O amigo perdido  

Hella Haasse (1918-2011) - HOLANDA  

Tradução: Daniel Dago          

São Paulo: Rua do Sabão, 2021, 129 páginas 



Neste romance curto, a Autora assume uma voz masculina, de um engenheiro holandês sem nome, que rememora sua infância e adolescência passada nas então chamadas Índias Holandesas, hoje Indonésia, onde seu pai administrava uma propriedade. A narrativa, muito bem urdida, vai nos apresentando aos poucos o cenário e os personagens que nele circulam. Inicialmente, em Kebon Jati, ele mora com o pai e a mãe numa casa afastada dos "nativos", onde convive com Urug, um menino nascido exatamente na mesma época, filho de Deppoh, capataz da propriedade. Ali, o narrador vive um idílio - soltos, e inseparáveis, ele e Urug se misturam à paisagem, transformando os dias em intensas brincadeiras. Tão irmanados encontram-se, que o narrador fala muito melhor o sundanês - língua local - que o holandês, para desespero dos pais. Até que um dia ocorre uma tragédia: o barco em que pescavam, a família e amigos, afunda e Deppoh, tentando salvar o narrador, acaba morrendo afogado. O pai do narrador então toma à sua responsabilidade a educação de Urug. Neste intervalo, a mãe do narrador foge para a França e o pai resolve passar uma temporada em viagem - volta casado, a nova mulher grávida. Começa então uma segunda fase na vida dos pequenos amigos: eles vão estudar em Sukabumi, cidade próxima, mas em escolas separadas: o narrador numa escola para crianças holandesas, Urug numa escola para crianças nativas e "mestiças". Aqui, na verdade, começa, sem que eles saibam, uma cisão que mostrará, ao longo do tempo, as profundas cicatrizes provocadas pela colonização, ou, em outras palavras, os malefícios da ocupação e exploração de uma civilização por outra. O narrador mora numa pensão para crianças holandesas, Urug numa pensão administrada por Lida, uma holandesa que aos poucos envolve-se com ele, tratando-o como o filho que não teve. Em Sukabumi, o narrador e Urug começam a se afastar, ainda que mantenham laços afetivos. Urug, pouco a pouco, adota hábitos ocidentais, querendo a todo custo enterrar seu passado de "nativo", do qual se envergonha. No entanto, Lida consegue colocar Urug na mesma pensão que o narrador e, então, pela primeira vez, Urug - e o narrador - percebem que vivem em mundos distantes, que um é o colonizador e o outro o colonizado. Urug conhece Abdalla e dá outra guinada em sua vida: renuncia aos hábitos ocidentais e assume roupas e costumes indonésios. Mais à frente, o narrador vai estudar engenharia na Holanda, enquanto Urug e Abdalla mudam-se para Surabaia, para fazer medicina numa escola separada. Urug torna-se militante da causa indonésia - isso antes de explodir a II Guerra Mundial. Em 1945, a Indonésia declara independência, unilateralmente, e a Holanda tenta ainda manter a ex-colônia. É nesse momento que, formado, o narrador volta àquela terra, que julga também sua, e vai se defrontar com a realidade de ser um forasteiro. O livro é um retrato vivo dos efeitos da política colonialista europeia - tanto no nível coletivo, quanto no individual. 


Avaliação:  MUITO BOM

(Novembro, 2021)


domingo, 21 de novembro de 2021

A fera na selva 

Henry James (1843- 1916) - EUA/INGLATERRA  

Tradução: Fernando Sabino           

Rio de Janeiro: Rocco, 1985, 94 páginas 



Neste conto longo, o Autor nos apresenta a John Marcher e May Barthram, que reencontram-se por acaso em Londres depois de quase dez anos. Antes, eles haviam estado juntos num passeio perto de Nápoles e voltaram com amigos comuns para Roma. Naquela ocasião, John confessara a May que tinha uma sensação "de estar sendo poupado para algo raro e estranho, talvez prodigioso e terrível, que mais cedo ou mais tarde acabaria acontecendo" (p. 24). Durante o reencontro, May lembra a John essa confissão - que ele não lembrava de ter compartilhado com ela - e pergunta se "aquilo" já havia ocorrido. John responde que não e a partir disso, dessa tão aguardada espera por algo que nem ele nem ela conseguiam identificar, os dois se aproximam e se tornam grande amigos - numa relação que é ao mesmo tempo de desejo e de repulsa. Os anos se passam e ambos sempre a aguardar - como a fera na selva - por esse momento grandioso que, ao fim e ao cabo, nunca se concretiza... 


Avaliação:  BOM

(Novembro, 2021)


segunda-feira, 15 de novembro de 2021

           Os quatro encontros 

Henry James (1843-1916) - EUA/INGLATERRA  

Tradução: Aristides Barbosa          

São Paulo: Clube do Livro, 1986, 144 páginas 



Este livro reúne três contos do Autor. A narrativa que dá título ao livro, uma obra-prima digna de figurar em qualquer antologia das melhores histórias curtas de todos os tempos, é o relato de quatro encontros havidos entre o narrador e a modesta e sonhadora professora Caroline Spencer, moradora nos arredores de Boston. No primeiro encontro, o narrador ouve de Caroline seu desejo de visitar a Europa; três anos depois, ele a encontra, por acaso, em Havre, desembarcando do mesmo navio de conhecidos seus, a quem fora recepcionar. Ele conversa com Caroline e descobre que um primo dela, jovem estudante de arte em Paris, fora buscá-la. À tarde, ele tem o terceiro encontro com a professora, quando ela confessa que iria voltar imediatamente para os Estados Unidos, porque seu primo metera-se em uma enrascada e ela lhe emprestou todo o dinheiro que trazia. A enrascada do primo envolve uma confusa história de dívidas e amores com uma condessa. O narrador percebe que trata-se evidentemente de uma farsa, mas ao tentar alertá-la, não obtém sucesso. O último encontro ocorre quatro anos depois, nos arredores de Boston, quando o narrador, curioso, vai visitá-la e encontra a tal condessa morando com ela, após a morte do primo, e tratando-a como se fosse sua empregada. O segundo conto, o mais fraco, intitula-se "O Discípulo" e mostra a relação entre um jovem preceptor americano com a família de seu pupilo, também americana, vivendo na França. A família é constituída por pessoas completamente envolvidas em aparências: irresponsáveis, gastam dinheiro que não têm. O último conto, "O mentiroso", é uma ótima história. O bem-sucedido pintor Oliver Lyon reencontra uma paixão antiga, Everina Brant, e descobre que ela está casada com o simpático coronel Capadose. Aos poucos, Lyon percebe que o coronel é um impenitente mentiroso, dono de uma fértil mas doentia imaginação. Inicialmente, Lyon acredita que Everina não sabe deste lado obscuro do marido, mas, para sua decepção, ao final, compreende que ela havia sido "contaminada" pela doença do marido. As histórias todas basicamente colocam personagens frente a dilemas morais. 


 Avaliação: MUITO BOM

(Novembro, 2021)


sábado, 13 de novembro de 2021

O mundo se despedaça (1958)

Chinua Achebe (1930-2013) - NIGÉRIA  

Tradução: Vera Queiroz da Costa e Silva          

São Paulo: Companhia das Letras, 2021, 236 páginas 


Okwonko, membro da etnia Ibo, mora em Umuófia, uma das nove aldeias que formam o clã ao qual pertence. Bem-sucedido, respeitado por seus valores guerreiros e por sua riqueza - tem três esposas e fartura de inhame e vinho de palma -, ele almeja alcançar os mais altos títulos dignitários de seu povo. Tudo corre bem, até que, por uma infelicidade, ele mata, sem querer, um dos habitantes de sua aldeia, e, como pena, é exilado para a aldeia de sua mãe, Mbanta, por sete anos. No quarto ano vivendo em Mbanta, chegam missionários ingleses interessados em obter conversões para o cristianismo. Um dos convertidos, para frustração de Okwonko, é seu filho, Nwoye. Quando, terminado o período de exílio, Okwonko regressa a Umuófia, pensando em retomar sua antiga vida, descobre que tudo está mudado. Também lá se instalaram os missionários e a relação entre os moradores e os convertidos é tensa. Okwonko reassume seu papel de uma doas lideranças locais e participa de refregas contra os cristãos. Ao final, compreendendo que seu mundo tradicional se despedaçou, se mata. O Autor já foi resenhado aqui, com a obra-prima A paz dura pouco, publicada em 23 de novembro de 2018, cujo protagonista, curiosamente, também se chama Okwonko, Obi Okwonko.


 Avaliação: MUITO BOM

(Novembro, 2021)

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

 O passageiro secreto (1909)

Joseph Conrad (1857-1924) - INGLATERRA  

Tradução: Sérgio Flaksman         

São Paulo: CosacNaify, 2015, sem numeração de páginas


Texto menor de um autor maior (que já teve resenhado neste espaço a obra-prima O coração das trevas, no dia 10 de fevereiro de 2016), é uma narrativa que mantém certo suspense, que acaba revelando-se um anticlímax. O narrador, em primeira pessoa, é um jovem comandante, que está estreando sua atividade naquele navio - portanto, sente-se inseguro frente aos seus subordinados, ao mesmo tempo que ansioso para mostrar a eles suas capacidades. Por acaso, antes ainda de partirem, enquanto estão ancorados nas costas do Golfo de Sião (atual Tailândia), ele vê um sujeito tentando alcançar o convés do navio, por meio de uma corda esquecida. Ele diz para o desconhecido subir e este lhe conta que está fugindo de um outro navio, o Sephora, porque assassinara um colega. Imediatamente, o narrador se solidariza com o desconhecido, por ver nele as suas próprias qualidades e inquietações - quase um seu outro eu -, e resolve escondê-lo em seus aposentos. O desconhecido passa então a ser o "passageiro secreto". Por conta das artimanhas para proteger o passageiro secreto, o narrador começa a agir de forma estranha, o que provoca suspeitas nos marinheiros. Até que consegue, por meio de uma perigosa manobra, deixar o desconhecido perto de uma ilha, sem que ninguém perceba sua fuga. A manobra, por extremamente arriscada, e por ter demonstrado sua perícia, conquista afinal a credibilidade dos subordinados. 



 Avaliação: BOM

(Novembro, 2021)


terça-feira, 26 de outubro de 2021

 Norte e Sul (1855)

Elizabeth Gaskell (1810-1865) - INGLATERRA  

Tradução: Frederico Pedreira        

Lisboa: Relógio D'Água, 2016, 450 páginas



Às vezes me pego pensando como alguns autores clássicos são absolutamente desconhecidos no Brasil, inclusive mesmo naqueles nichos de excelência universitária. A Autora em questão é uma delas. Neste mesmo espaço tratei de outro excelente romance seu, Mary Barton, publicado sete anos antes deste - e resenhado aqui no dia 15 de dezembro de 2018. Dificilmente o leitor encontrará escritor à sua altura no século XIX - haverá os que ombrearão com ela, mas não quem a ultrapasse. É surpreendente sua capacidade de percepção do fenômeno da Revolução Industrial e das várias implicações que ela trazia para a sociedade em geral e para os indivíduos em particular. Com sua escrita irônica, seu humor em dose certa, ela discute uma das mudanças mais importantes no rumo da história da Humanidade com um conhecimento inacreditável da vida, tanto no âmbito da aristocracia que, com sua futilidade, ia, sem perceber, cedendo lugar à burguesia, classe que ainda não compreendia seu papel, quanto nas casas miseráveis dos operários, até ontem trabalhadores rurais (neste caso, muda a função, mas não a falta de perspectiva de melhoria de vida).  A Autora, além disso, prova, mais uma vez, aquela máxima de que autores medianos se encaixam nos pressupostos de escola literária, mas autores excepcionais simplesmente ignoram regras ou limites. A visão de mundo da narradora, extremamente realista, não teme criticar as condições terríveis que viviam a classe operária, enquanto a aristocracia chafurdava na banalidade. Margaret Hale, embora filha de um pároco de aldeia, no sul da Inglaterra, vive há anos com a tia e a prima em Londres. Mas, quando a prima, Edith, se casa com o capitão Lennox, e vai morar em Corfu (Grécia), Margaret retorna à casa paterna. Lá, ela volta a ter contato com os aldeões e a vida simples de um lugar pequeno e afastado. Mas, logo seu pai é acometido de uma crise espiritual, que o faz abandonar o cargo religioso e o obriga a levar a família a morar em Milton, uma próspera cidade industrial no norte da Inglaterra. Lá, ele torna-se professor particular e o nível de vida sofre uma queda. Margaret se interessa pelos vizinhos e acaba se aproximando de uma moça tuberculosa, Bessy Higgins, e conhece então a condições miserável em que vivem os operários das fábricas de tecido. Margaret tem 18 anos e é assediada por Henry Lennox, cunhado de Edith, mas o rejeita. E também é assediada pelo jovem industrial, John Thornton, de modesta origem, mas também o rejeita. Margaret é uma mulher inteligente, culta e independente, e paga, com a solidão e a incompreensão, por isso. Não vou me deter nas várias subtramas, muitíssimo bem engendradas, mas apenas me referir ao plot central. Por um mal entendido, Thornton crê que Margaret o rejeitou por estar apaixonado por outro homem. E, embora mantenha contato com sua família, aos poucos esfria sua relação com Margaret. Enquanto isso, ele enfrenta uma greve dos trabalhadores e, convivendo com o pai de Bessy, um dos cabeças do movimento paredista, tenta empreender mudanças na gestão de sua fábrica. Em um curto intervalo morando em Milton, Margaret perde a mãe, o pai e o Sr. Bell, um grande amigo de seu pai, morador em Oxford. E também morre Bessy. Margaret então volta a viver em Londres, recebe de herança uma fortuna do Sr. Bell (e mesmo esse expediente, que poderia parecer fortuito e forçado, não o é nas mãos talentosas da Autora) e é novamente assediada por Henry Lennox, agora com a complacência de Edith e de sua tia, interessadas em ter a nova rica mais perto delas. Mas Margaret termina por se entender com John Thornton. As duas frase finais só poderiam ser perpetradas por uma Autora acima de seus pares... Os personagens são todos - sem exceção - ricamente desenhados - cada um tem suas características bem determinadas, não se confundindo uns com os outros, com destaque para a própria Margaret e o sarcástico Sr. Bell.

Aqui, um exemplo da visão de mundo certeira da Autora. No início, John Thornton pensa que "o semblante das gentes de Milton [ele está se referindo especificamente aos operários] nada mais é que o castigo natural para vontades satisfeitas de um modo desonesto num qualquer período da vida. Não considero que as pessoas libidinosas e autoindulgentes sejam merecedoras do meu ódio; simplesmente olho para elas com desprezo, perante a pobreza de caráter que mostram" (p. 92). Mais tarde, tendo tomado contato com as condições miseráveis de seus empregados, diz o mesmo Thornton: "Daí tinha nascido aquela relação que, embora não pudesse prevenir todos os futuros confrontos entre opiniões e forma de atuar, iria permitir que, chegado o momento, patrão e operário se pudessem olhar mutuamente com maior empatia e compreensão e ser mais pacientes e amáveis um com o outro" (p, 434). Alguém pergunta a Thornton se "isso evitaria a recorrência de greves" e ele responde: "De maneira nenhuma. A minha esperança mais otimista resume-se a isto: que as greves deixem de ser as fontes amargas e venenosas de ódio que até hoje têm sido. Um homem mais esperançoso pode imaginar que um contacto mais direto e cordial entre as classes irá acabar com as greves. Em todo o caso, eu não sou esse homem" (pág.  446)*...


* Mesmo esse sentimento filantropo e altruísta de John Thornton, que poderia parecer um exagero da Autora, é factual. Eu mesmo conheci um empreendimento progressista, na verdade, um laboratório social interessantíssimo, a Villa Crespi d'Adda, uma vila operária construída pela familia Crespi em torno do complexo fabril, em Capriace San Gervasio, perto de Bérgamo, na Itália, muito próximo das ideias de melhorias da vida dos operários manifestada por Thornton.



Entre aspas:


"Uma criatura pode estar embebida em mel e não conseguir levantar voo" (pág. 88)

"A lealdade e a obediência à sabedoria e à justiça são valiosas; ainda assim, mais valioso é desafiar o poder arbitrário que é usado de um modo injusto e cruel - não o fazendo por nós, mas pelos outros que estão mais indefesos" (pág. 117)



 Avaliação: OBRA-PRIMA

(Outubro, 2021)


domingo, 3 de outubro de 2021

 Memórias de Mama Blanca (1929)

Teresa de la Parra (1889-1936) - VENEZUELA 

Tradução: Lizandra Magon Almeida       

Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021, 168 páginas



A narradora utiliza um recurso técnico que, quando bem usado, é uma ferramenta excepcional para provocar verossimilhança: a de emprestar a voz a outrem. No caso, a narradora, na Advertência, explica que conviveu, menina ainda, com Mama Blanca, que lhe legou um "manuscrito misterioso", cujo volume que temos em mãos equivale às suas "primeiras cem páginas" (p. 24), correspondente à infância de Mama Blanca vivida numa fazenda de cana-de-açúcar e café nas imediações de Caracas, no século XIX. Filha de uma família aristocrática, cujo "casamento luxuoso" foi oficiado por um arcebispo e teve como um dos padrinhos um Presidente da República (p. 90), Blanca Nieves era uma das seis filhas em escadinha do fazendeiro Juan Manuel e da romântica Misia Carmen Maria, que formavam "um rebanho de açucareiros ou de compoteiras invertidas" (p. 39), criadas soltas na Pedra Azul, seguindo à risca os preceitos do pai: "As meninas (...) devem estar sempre ao ar livre, não importa que tomem sol; sob nenhum pretexto devem ir à Caracas, nem a qualquer outro lugar povoado, onde possam pegar sarampo, coqueluche, difteria ou catapora; devem tomar banho de água fria e corrente; não devem usar muita roupa; devem se levantar o mais cedo possível e ir o quanto antes tomar um copo de leite ao pé da vaca" (p. 137). Assim, com seu "dom precioso de evocar o passado contando histórias", com "sua alma desordenada e panteísta" (p. 18),  Mama Blanca vai anotando suas lembranças daqueles tempos remotos, aquela época "perdida para sempre, na qual era tão doce viver" (p. 159). Além da mãe, uma personagem saída das páginas dos romances românticos, mas traçada com tal precisão, que surge em carne e osso à nossa frente, e o pai, homem que padece em sua humana contradição, Mama Blanca traça três perfis que se agigantam e tomam conta do romance: o pobre, eloquente e inadaptado Primo Juancho, o sábio e desprezado Pedro Cochocho e o encantador de vacas Daniel. A Autora - já tratada aqui em resenha publicada no dia 2 de agosto de 2017 - possui um poder de evocação de mundos mortos raras vezes encontrado na literatura - e vale mesmo um paralelo com Fogo morto, a obra-prima de José Lins do Rego (já tratado aqui na resenha publicada no dia 22 de janeiro de 2018). Em um e outro romances, ambos sobre fazendas de cana-de-açúcar, mais ou menos da mesma época, há uma melancolia comedida, um lamento pela coisa perdida - aliás, é impressionante como o Primo Juancho se parece com o coronel Lula de Holanda, ambos personagens tragicamente pícaros. Aqui, a Autora, num rasgo genial, pinta, por meio de uma narrativa aparentemente ingênua, um grande painel onde são expostas as grandes fissuras das sociedades latino-americanas - no caso, mais especificamente, venezuelana -, com suas imensas desigualdades sociais, a mulher relegada a papel subalterno, o humano submetido ao econômico. Enfim,,um livro excepcional.


Entre aspas:


"(...) não ser esnobe me desprestigiou muitíssimo na consideração das pessoas, as quais só buscam  e exaltam quem saiba esmagá-las sob o peso de uma vaidade espetacular e estéril" - (pág. 95-96)



 Avaliação: MUITO BOM

(Outubro, 2021)


sexta-feira, 17 de setembro de 2021

 O livro do xadrez (1942)

Stefan Zweig (1881-1942) - ÁUSTRIA 

Tradução: Silvia Bittencourt      

São Paulo: Fósforo, 2021, 82 páginas



Este conto longo (ou pequena novela, como queiram) contraria aqueles que acreditam em volume e não em qualidade. Em suas pouco mais de sessenta páginas, somos apresentados a um personagem intrigante, o campeão de xadrez Mirko Czentovic, órfão, "filho de um barqueiro eslavo da região setentrional do Danúbio, extremamente pobre" (p. 8), criado por um padre, entusiasta amador do jogo. Apesar de considerado um gênio do xadrez, Czentovic era pouco inteligente, tímido, intratável, pois, acima de tudo, faltava-lhe imaginação, o que não impedia, entretanto, que ele conseguisse brilhar neste jogo que "não está em permanente evolução, ao mesmo tempo que segue estéril, pensamento que não leva a nada, matemática que nada calcula, arte sem obras, arquitetura sem substância, e mesmo assim a mais constante em sua existência do que os livros e obras" (p. 14). Mas, após essa apresentação de um brilhante jogador e medíocre personalidade, que julgaríamos protagonista da história, somos apresentados a outro personagem, esse sim fascinante, o advogado doutor B. Mas, vamos ao cenário. O narrador encontra-se num vapor de passageiros que faz a viagem de Nova York a Buenos Aires, com uma escala no Rio de Janeiro - onde desembarcará -, e descobre que irá desfrutar da companhia de Czentovic, uma verdadeira celebridade, que, após ganhar todos os torneios nos Estados Unidos, parte para Buenos Aires, para desafiar os enxadristas locais. O narrador, um enxadrista amador, tenta se aproximar de Czentovic, para conhecer melhor sua personalidade, mas esbarra em sua total insociabilidade. Até que, por dinheiro, Czentovic aceita o convite-desafio de um engenheiro civil escocês, McConnor, que fizera fortuna com poços de petróleo na Califórnia, e enfrenta um grupo, capitaneado por McConnor, que joga coletivamente. Ele ganha fácil, mas MConnor pede revanche. Na segunda partida, já praticamente decidida em favor de Czentovic, um anônimo se aproxima e orienta a movimentação das peças no tabuleiro, conduzindo a partida para o empate. Entusiasmado, McConnor desafia Czentovic para uma nova partida, no dia seguinte, em nome do anônimo, que já havia desaparecido nos corredores do navio. O narrador procura o anônimo e comunica o desafio aceito por Czentovic, o que, num primeiro momento, o deixa em pânico, mas em seguida o arrebata. Então, em poucas páginas, ficamos conhecendo a história do doutor B., advogado de mosteiros e da família real austríaca, encarregado de contrabandear suas fortunas para fora do país, antes que sejam confiscadas pelo regime nazista. Doutor B. é de família nobre da Áustria e, quando preso pelos nazistas, ao invés de ser levado para um campo de concentração, é encarcerado num quarto de hotel, onde por quase um ano, sem livros, sem papel, sem caneta,  não tem contato com ninguém, a não ser com seus interrogadores: "Não havia nada para fazer, para ouvir, para ver, por todo o lado estava o nada, ininterruptamente, um completo vazio de espaço e tempo" (p. 34). E, então, num rasgo de ousadia, um dia ele consegue roubar um livro de xadrez, que decora, página a página, até à loucura. Ao final, não importa quem vence aquela partida, pois o que fica é a certeza de como a barbárie corrói os fundamentos da cultura. 


Entre aspas:


"(...) antes de armarem suas tropas contra o mundo, os nazistas começaram a organizar outro exército, também perigoso e treinado, em todos os países vizinhos: a legião dos desfavorecidos, dos preteridos, dos ressentidos" (pág. 30)



 Avaliação: OBRA-PRIMA

(Setembro, 2021)


domingo, 5 de setembro de 2021

 Tempestades de aço (1920)

Ernst Jünger (1895-1998) - ALEMANHA

Tradução: Marcelo Backes     

São Paulo: CosacNaify, 2013, 347 páginas


Trata-se de um relato da participação do Autor no front da I Guerra Mundial, como oficial do exército alemão, no qual se alistou como voluntário e permaneceu entre janeiro de 1915 e agosto de 1918, e, "não contadas insignificâncias como tiros de ricochete e feridas abertas", "fora atingido pelo menos catorze vezes" (p. 345-346) - recebendo por isso, a Ordre pour le méritre, ao final do conflito. O livro é uma narrativa bastante objetiva do confronto - o Autor se encontrava na frente ocidental, entre terras francesas e belgas, combatendo as forças aliadas (ora ingleses, ora indianos, ora neozelandeses). O que mais impressiona, de fato, não é nem mesmo a forma quase científica com que são descritos os horrores da guerra - uma objetividade que se faz por vezes desumana -, mas o orgulho e o fascínio demonstrados pela guerra. São inúmeras frases como essa: "Durante a tarde, a aldeia permanecia sob o fogo dos mais diferentes calibres. Apesar do perigo, eu só conseguia me separar da lucarna no sótão de minha casa com muita dificuldade, pois eram empolgante o espetáculo das guarnições isoladas e dos mensageiros correndo afoitos; muitas vezes eles se jogavam no chão, no terreno bombardeado, enquanto à direita e à esquerda deles a terra se levantava em redemoinho" (p. 162). Ou essa: "Ao avançar, uma fúria ancestral tomou conta de nós. Um desejo supremo de matar deu asas a nossos passos. A raiva me arrancou lágrimas amargas" (p. 279). Estranhamente, o Autor, ao contrário de outras narrativas da mesma época, em momento algum questiona os superiores que enviam os subordinados para a carnificina ou coloca em xeque a ideia da guerra em si - que, ao fim e ao cabo, serve apenas para estabelecer marcos políticos à custa de vidas humanas, empolgadas com abstrações sem sentido como nacionalismo, patriotismo, etc. Ele simplesmente marcha para a frente, empolgado com a guerra-ela-mesma, que tanto arrebatou os movimento protofascistas do começo do século XX. Apesar de tudo - e isso demonstra que o que no campo literário a intenção do autor é o que menos importa -, o livro começa com uma ilusão e termina com a imposição do real. "Havíamos deixado as salas de aula, bancos de escolas e mesas de trabalho e, em curtas semanas de treinamento, estávamos fundidos em um grande e entusiasmado corpo. Criados em uma época de segurança, todos sentíamos a nostalgia do incomum, do grande perigo. E então a guerra tomou conta de nossas vidas como um desvario. Em uma chuva de flores, saímos de casa, inebriados com a atmosfera de rosas e sangue. A guerra, por certo, nos proporcionaria o imenso, o forte, o solene. Ela nos parecia uma ação máscula, uma divertida peleja de atiradores em prados floridos e orvalhados de sangue" (p. 7). E esse entusiasmo termina assim: "Tínhamos um número cada vez menor de homens para lhes opor resistência [aos inimigos], muitas vezes quase crianças, e também faltavam equipamentos e treinamentos" (p. 329). 



 Avaliação: BOM

(Setembro, 2021)


domingo, 8 de agosto de 2021

 Moby Dick (1851)

Herman Melville (1819-1891) - ESTADOS UNIDOS

Tradução: Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza     

São Paulo: CosacNaify, 2008, 656 páginas




Este é um romance que emula o conceito de épico, em toda sua plenitude, além de provar, também em sua plenitude, que na Literatura, na verdadeira Literatura, o que importa não é a história que vai contada, o enredo, mas sim como se conta esta história, a forma. No caso, desde o início sabemos qual será o desfecho deste romance. Não só porque trata-se de uma história que já passou a fazer parte da memória coletiva - tantas adaptações para outras linguagens ganhou, desde o cinema ao desenho animado -, como também porque o narrador, Ishmael, desde as primeiras linhas antecipa que o que vamos seguir é a consumação de uma tragédia, a tragédia do capitão Ahab e da tripulação do navio baleeiro Pequod. Em cada linha do romance há sinais e avisos de que as coisas não correrão bem - são os inúmeros "presságios" que pontuam a narrativa,  desde o nome da estalagem na qual Ishmael se instala em Nantucket, Coffin (Caixão), até a profecia de Fedallah, o Parse, que determina a morte de Ahab a partir de um sonho, em que o capitão avistaria dois carros fúnebres em pleno mar, um jamais concebido por mãos humanas e outro com madeira vindo da América.  No início, disse que se trata de um épico - e aqui, podemos pensar que o Autor fez assentar sua concepção na narrativa grega clássica. O romance tenta ser uma espécie de "enciclopédia prática" da caça à baleia - boa parte do livro consiste em interpolações didáticas sobre os vários aspectos biológicos da baleia (em particular de uma espécie específica, o cachalote), de suas representações no tempo, de sua importância econômica no fornecimento de óleo, carne e espermacete; e sobre o os navios que as perseguem e sobre o tipo de homens que os tripulam. Isso porque, como "a baleia não tem nenhum escritor famoso e a pesca da baleias nenhum cronista famoso" (p. 128), o narrador se incumbe dessa tarefa, fixando no livro, portanto em palavras, a memória desse embate que ocorre tão longe dos olhos humanos para que não sejam esquecidas e, mais que isso, para que sejam enaltecidas pelos tempos afora - como Homero fez com a Ilíada e com a Odisseia. É interessante observar que o narrador, em primeira pessoa, algumas vezes percebe que não dá conta de relatar a história, pela multiplicidade de focos, e lança mão então do expediente das Musas (há capítulos inteiros de invocação poética) ou ainda dos coros (em que lança mão de expedientes teatrais). Isso tudo para conseguir atualizar a memória e torná-la conhecimento. A tragédia que persegue o capitão Ahab, que acaba levando à morte todos os seus companheiros, menos Ishmael, é a tragédia de quem se coloca contra forças muito superiores à força humana - Deus?, O Mal? -, alguém que é condenado por querer superar as forças da Natureza (a Baleia Branca, Moby Dick), porque a Natureza, criação de Deus (dos deuses?) sempre estará para além da compreensão e do jugo humano. Curioso que o narrador antecipe, para rechaçar, uma possível leitura metafórica do livro: "Tão ignorante é a maioria dos homens de terra firme no que diz respeito a algumas das mais simples e palpáveis maravilhas do mundo que, sem a menção de alguns fatos simples, históricos ou não, sobre a pescaria, poderiam desprezar Moby Dick como uma fábula monstruosa, ou ainda pior e mais detestável, como hedionda e insuportável alegoria" (p. 228)...  



 Avaliação: MUITO BOM

(Agosto, 2021)



segunda-feira, 19 de julho de 2021

  Um ano sobre o altiplano (1938)

Emilio Lussu (1890-1975) - ITÁLIA

Tradução: Ugo Giorgetti     

São Paulo: Mundaréu, 2014, 206 páginas



Trata-se de uma narrativa de não-ficção, relato de um ano (1916-1917) no front dos Alpes, na fronteira entre a Itália e o Império Austro-Húngaro, durante a I Guerra Mundial. O Autor, oficial do exército, conta, de forma bastante sugestiva, o que foi combater nas montanhas, entrincheirado, com raras oportunidades de descanso. O livro nos enovela naquela triste vida sem expectativa, nem de ganhar a guerra - por conta de questões logísticas, afinal lutava-se mais para manter território do que para avançar sobre o inimigo -, nem de voltar à normalidade, algo que parecia, naqueles tempos, totalmente fora de propósito. Com um olhar atento e prenhe de humanidade, o Autor mostra, sem julgar, os despropósitos dos comandantes, enlouquecidos pela ideia de heroísmo, e o ceticismo dos soldados, agarrados à sobrevivência a todo custo. Há personagens memoráveis, como o ensandecido general Leone, o comunista tenente Ottolenghi, o homicida major Malchiorri, morto por seu próprio pelotão, o apaixonado tenente Avellini... E também situações impressionantes, como a deserção do soldado Marassi, o motim dos soldados pedindo o fim da guerra, a perda da razão do coronel Abbati, a despedida dos pais do Autor, durante uma rápida folga... Um livro magnífico sobre um tema terrível...


Avaliação: MUITO BOM

(Julho, 2021)

 

terça-feira, 13 de julho de 2021

Os quatro cavaleiros 

do Apocalipse (1916)

Vicente Blasco-Ibáñez (1867-1928) - ESPANHA

Tradução: Arsénio Mota     

São Paulo: Abril Cultural, 1985, 371 páginas



Muito mais que o enredo - uma família, os Desnoyers, envolvida nos primórdios da Primeira Guerra Mundial -, o que impressiona neste livro são as observações quase proféticas sobre o conflito em si e seus desdobramentos. Escrito no calor da luta, literalmente, e publicado com a conflagração ainda pela metade, o narrador anota, contrariando os prognósticos de que aquela seria a guerra para acabar com todas as guerras: "A Besta nunca morre. É a eterna companheira dos homens. Esconde-se, jorrando sangue, durante quarenta anos... sessenta... um século; mas reaparece" (p. 320). Pacifista, Marcel Desnoyers fugira da França em 1870, às primeiras notícias da guerra franco-prussiana, indo parar na Argentina. Lá, levou vida aventureira, imaginando enriquecer, sem o conseguir, até cair nas graças do latifundiário Julio Madariaga, que se tornara milionário apossando-se de terras indígenas para transformar em pasto para o gado, e, por sua fabulosa fortuna, era conhecido até mesmo em Buenos Aires. Madariaga tinha duas filhas, Luisa e Elena. Marcel Desnoyers, com o tempo, ganha a confiança de don Madariaga, a ponto de se casar com Luisa. A outra filha, Elena, foge com o alemão Karl Hartrott, que auxiliava na contabilidade, sendo mais tarde aceita de volta, mas nunca o casal conquista o coração do pai. Após a morte de don Madariaga, Karl e Elena vendem a parte deles dos negócios e mudam-se com os filhos para a Alemanha. Marcel prefere manter-se na fazenda, mas acaba mudando para Buenos Aires, cedendo aos pedidos de Chichí, a filha, e também aos desejos da mãe de estar mais perto do filho, também Julio, como o avô, que fora estudar na capital e levava vida devassa e perdulária. Em seguida, acaba manifestando vontade de regressar ao seu país natal e compra uma mansão na avenida Victor Hugo, em Paris, e um castelo na Champagne, às margens do rio Marne. Em Paris, Luisa visita igrejas, Marcel se enturma com a burguesia local, Chichí vive uma vida de futilidade com suas amigas adolescentes e Julio, num estúdio, finge ser pintor, na companhia de um parasita espanhol, Argensola. Então, explode a guerra. A família, inicialmente, se coloca numa posição de indiferença, afinal, não se considerava diretamente envolvida com o conflito, por se sentirem mais argentinos que franceses (mesmo Marcel). Mas, à medida em que os combates se tornam mais acirrados, todos, de alguma forma, sentem necessidade de participar - à exceção de Argensola, que passará todo o tempo usufruindo dos prazeres que a cidade ainda oferecerá, mesmo em tempos de exceção. Luisa se dilacera com a situação da irmã, cujo marido, filhos e parentes combatem pelo lado dos alemães, e também com sua própria situação, quando Julio se conscientiza da importância de entrar em combate, e quando Chichí se apaixona por René Lacour, que também parte para o front. No final, René regressa sem uma mão, sem um olho e manquejando de uma perna, mas vivo; enquanto, Julio morre em combate, assim como a maioria dos filhos e parentes de Elena... A guerra não tem ganhadores, só perdedores, parece assinalar o Autor... 



Entre aspas:


"A Humanidade habitua-se facilmente à infelicidade (...) desde que a infelicidade se prolongue" (pág. 314)

  


Avaliação: MUITO BOM

(Julho, 2021)


segunda-feira, 5 de julho de 2021

  50 contos e 3 novelas 

Sérgio Sant'Anna (1941-2020) BRASIL  

São Paulo: Companhia das Letras, 2007, 618 páginas


Esta coletânea reúne seis livros do Autor, compreendendo parte de sua produção publicada de 1973 a 2003, entre contos e novelas (que, na minha opinião, são apenas contos longos...). O que mais impressiona no Autor não é a diversidade de assuntos - porque, na verdade, ele é quase monotemático -, mas a originalidade com que os trata. Na verdade, o Autor inventa um quase gênero  - "sempre gostei de escrever minhas histórias como se elas se passassem num palco. Ou mesmo um teatro de marionetes" (p. 229) - que mistura, com maestria, ficção e ensaio - um ensaio ficcional ou uma ficção ensaística -, não à maneira do argentino Jorge Luís Borges (1899-1986), que se alimenta da própria ficção, mas à sua própria maneira, "que poderia fazer de uma reles aula uma obra de arte" (p. 308). Outra coisa que chama a atenção é a a excepcional qualidade de seus textos - que se mantêm em altíssimo nível, desde os primeiros trabalhos até os últimos -, algo raro na carreira de qualquer escritor, composta em geral por altos e baixos. O leitor percebe que o Autor - essa entidade abstrata, que se realiza ou se define como voz identificável - já está maduro nos contos de Notas de Manfredo Rangel, repórter, de 1973. O que ele faz, ao longo dos outros livros, é se depurar, não como alguns que transformam estilo em maneira ou fórmula, e passam a vida plagiando a si mesmos, mas como alguém que consegue ampliar, a cada livro, as suas descobertas. Por isso, não vou destacar um conto ou outro, pois fazer isso seria contraditar o que acabo de dizer - mas vou apenas chamar a atenção para um detalhe, que ilustra à perfeição o que quero iluminar. O Autor toma um tema pouco explorado na literatura brasileira, o futebol, e com ele constrói duas obras-primas da narrativa curta: "No último minuto", do primeiro livro, já referido, e "Na boca do túnel", de O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de 1982. Apaixonado por futebol, o Autor compreendeu as possibilidades dramáticas do esporte, e ainda perpetrou dois outros contos maravilhosos, "Páginas sem glória", do livro homônimo, publicado em 2012, e "O torcedor e a bailarina", de O homem-mulher, de 2014 - que não estão, claro, nesta coletânea. O Autor é um desses clássicos que permanecerão como leitura prazerosa e instigante ao longo da História.



Avaliação: MUITO BOM

(Julho, 2021)