domingo, 22 de abril de 2018

Contos de Tenetz
Yordan Raditchkov (1929-2004) - BULGÁRIA          
Tradução: Rumen Stoyanov e Anderson Braga Horta  
Brasília: Thesaurus, 2004, 125 páginas



Embora tenha vivido a maior parte de sua vida sob o regime comunista - que vigorou na Bulgária entre 1946 e 1990 -, o Autor em momento algum pratica o chamado "realismo socialista". Ao contrário, os 19 contos, escritos em diversas épocas, que compõem esta antologia, são marcados, todos, pela aura do suprarrealismo - que toma outras denominações, como realismo fantástico, realismo mágico etc. De qualquer maneira, são histórias cuja chave é sempre alegórica, sempre apontam para uma apreensão mágica do mundo, ultrapassando os limites do real e marcadas por uma fina ironia. Os contos "A palavra" e "Tenetz" talvez sintetizem bastante bem o restante do livro. No primeiro, os camponeses da aldeia de Tcherkáski - cenário privilegiado das histórias, apenas uma se passa em Sófia, a capital - descobrem o poder da palavra: "(...) este grande milagre - desde que saibamos botá-la a trabalhar" (p. 29). No segundo, o escritor-narrador adota um tenetz - "pessoa que depois de morta não vai para lugar algum, mas permanece conosco" (p. 123) - e "o tenetz me escreve todas as coisas, enquanto eu vivo a vida" (p. 125), explica o Autor. E o livro todo é isso: um grande prazer em narrar. A presença da oralidade é um distintivo e a apreensão do mundo sua singularidade. Há pelo menos três contos excelentes, "Frio", "Como assim?" e "Janeiro"; e cinco muito bons, "O cachorro atrás da carroça", "Cicatriz de pulga", "Ovo de janeiro", "O cupim" e "Tenetz".





(Abril, 2018)




Avaliação: MUITO BOM 

segunda-feira, 16 de abril de 2018


125 Contos 
Guy de Maupassant (1850-1893) - FRANÇA         
Tradução: Amílcar Bettega  
São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 821 páginas




Esta coletânea tem a vantagem de reunir praticamente a obra completa em narrativas curtas do Autor, de tal maneira que podemos, ao final, constituir uma opinião panorâmica e não apenas impressões pontuais. O que nos fica, desta vastíssima produção, é que, na maior parte dos contos, o Autor obedece a um modelo pré-estabelecido: o narrador empresta a um personagem a fala, em primeira pessoa, para que este explane um caso acontecido - uma "anedota", na maioria das vezes, entendendo-se anedota como uma espécie de "causo", algo que se conta em uma mesa de bar, sem complexidade e sem profundidade. O cenário alterna-se entre Paris e lugarejos da Normandia e os assuntos são miudezas recolhidas no cotidiano - aliás, os títulos dos contos revelam os temas a serem dissertados em um número de páginas também fixo, cinco, em média. Os melhores resultados acham-se justamente naqueles textos que fogem a esse padrão. E, embora a maioria absoluta de suas histórias seja ancorada no real, é quando o Autor afasta-se dele, nem que seja momentaneamente, que consegue produzir algumas pequenas obras-primas, como os magníficos "Sobre a água", "A noite" , "Quem sabe?" ou ainda "O Horla". Mas das experiências realistas também florescem ótimos contos, como os inspirados em episódios da guerra franco-prussiana (1870-1871): "A louca", "Dois amigos" ou "Bola de sebo", no qual certamente Chico Buarque bebeu para compor "Geni e o zepelim". Também das questões ligadas ao amor nascem bons momentos, como "A empalhadora", "Madame Baptiste", "Arrependimento" ou "A volta", com seus trágicos desenlaces, ou "Uma aventura parisiense", que em tudo se assemelha ao maravilhoso romance Madame Bovary (1857), de seu mestre, Gustave Flaubert (1821-1880). A destacar ainda as cenas de desentendimentos ocasionados pelo mais puro egoísmo: "Pierrô", "No campo", "O abandonado", "A confissão", "O órfão". São pérolas "Meu tio Jules", "O colar", "O porto", "Um covarde", "O vagabundo" (a única história de cunho claramente social de todo o livro),  e "Condecorado!", um conto que tem como mote o mesmo enredo do conto "Numa e a ninfa", de Lima Barreto (1881-1922), publicado em 1911.



Curiosidades: 


1) O conto "O albergue" tem como tema a luta perdida do homem contra a natureza, no caso, o frio extremo, e lembra muito "A fogueira", do livro homônimo, do norte-americano Jack London (1876-1916), publicado aqui em 31-12-2016; "O patrão e o empregado", de Liev Tolstói (1828-1910), em Contos 3, publicado em 15-11-2017; e "Aflição", de Anton Tchekov (1860-1904), publicado aqui em 07-02-2018. 
2) O Autor demonstra, em pelo menos dois contos, interesse bastante amplo pela possibilidade de vida extraterrestre. Em "O Horla", escreve: "As estrelas tinham cintilações vibrantes no fundo negro do céu. Quem habita esses mundos? Que formas, que seres vivos, que animais, que plantas existem lá? O que eles sabem a mais do que nós, os que pensam nesses universos longínquos? O que podem a mais do que nós? O que veem que não conhecemos? E um deles, um dia ou outro, não atravessará o espaço e aparecerá sobre a nossa Terra para conquistá-la, como os normandos antigamente atravessaram o mar para dominar povos mais fracos?" (p. 706). E em "O homem de Marte" chega mesmo a descrever um acidente com um objeto voador não identificado: "De súbito percebi acima de mim, muito perto, um globo luminoso, transparente, rodeado de asas imensas e palpitantes, ou pelo menos pensei ver asas na semi-escuridão da noite. Ele fazia voltas como um pássaro ferido, girava em torno de si mesmo com um grande e misterioso ruído, parecia ofegante, moribundo, perdido. Passou à minha frente. Algo como um monstruoso balão de cristal, cheio de seres enlouquecidos, mal-e-mal visíveis mas agitados como a tripulação de um navio em perigo, que não se governa mais e que rola de onda em onda. E descrevendo uma curva imensa, o estranho globo foi desabar ao longe, no mar, onde ouvi sua queda profunda, como o barulho de um tiro de canhão" (pág. 805-806).
3) O Brasil surge três vezes. No conto "O Horla" desencadeia o que o narrador chama de epidemia de loucura. Na pág. 690, ele avista "após duas escunas inglesas (...) uma soberba embarcação de três mastros brasileira (...)", e, na pág. 707, cita um pretenso artigo da Revue du Monde Scientifique: "Uma notícia bastante curiosa chega-nos do Rio de Janeiro. Uma loucura, uma epidemia de loucura, comparável às demências contagiosas que atingiram os povos da Europa na Idade Média, atualmente causa danos na província de São Paulo" etc. E, depois, no conto "O porto": "Uma vez desembarcada a primeira carga no porto chinês para onde se dirigia, logo surgira um novo frete para Buenos Aires, e, dali, carregara mercadorias para o Brasil" (pág. 756).
 


(Abril, 2018)



Avaliação: BOM 

terça-feira, 10 de abril de 2018

O Norte e outros contos (1912-1929)
Evgueni Zamiatine (1884-1937) - RÚSSIA         
Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra 
Lisboa: Antígona, 2017, 297 páginas



A coletânea reúne 10 contos, bastante irregulares entre si. Contém três narrativas realmente muito boas: a ascensão de um sujeito sem escrúpulos, em "Uma história provinciana", de 1912; o discurso honesto, e por isso, sem querer, carregado de ingênua ironia, do novo homem soviético, em "Tem a palavra o camarada Tchuríguin", de 1926; e a história de um crime e castigo, em "Inundação", de 1929. No entanto, outros textos, como "O dragão" e "O amparo dos pecadores", ambos de 1918, "A caverna", de 1920, e "A história da mais importante coisa", de 1923, são fracos, e só ganham musculatura por uma questão extraliterária, a crítica ao obscurantismo comunista, no momento mesmo em que está sendo implantado. Há mesmo um conto, "Sobre a cura milagrosa do noviço Erasmo", de 1920, que não passa de uma óbvia anedota sem graça. Completam o livro o idílio extremamente poético de "O norte", o amor de seres abandonados e embrutecidos na inóspita Sibéria, de 1918; e a  áspera crítica à estupidez humana em "O xis", de 1926.



(Abril, 2018)



Avaliação: BOM