sábado, 29 de fevereiro de 2020

Auto de fé (1935) 
Elias Canetti (1905-1994) - BULGÁRIA      
Tradução: Herbert Caro          
São Paulo: Cosac Naify, 2004, 665 páginas





Escrito em alemão, este romance, de certa forma, consegue apreender o clima de violência, mediocridade e horror que iria se instalar no mundo durante a Segunda Guerra Mundial, o que pode ser resumido na frase do professor Kien, protagonista do livro: "O presente é responsável por todas as dores. (...) O passado é bom. Não faz mal a ninguém" (p. 222). Quarentão, Peter Kien é um pesquisador especialista na China antiga, sujeito pedante, ingênuo e autocentrado, que possui uma biblioteca de milhares de exemplares. Referência em sua área, vive uma vida solitária e confortável - é herdeiro de uma pequena fortuna, sobrevivendo dos "juros de uma herança paterna" (p. 73) -, desenvolvendo hábitos regulares de uma rotina tediosa. Após oito anos de convivência, sem a notar, o professor fantasia que sua empregada, Therese Krumbholz, poderia ser sua mulher, já que cuida tão bem de seus livros quanto dele próprio. Casa-se e pouco a pouco sua vida transforma-se completamente. Ela passa a fazer exigências cada vez mais estapafúrdias, até conseguir colocá-lo para fora do apartamento (primeira parte). Vivendo na rua, Kien conhece, no Paraíso Ideal, um lugar frequentando por malandros e prostitutas, o anão judeu Fischerle, Sigfried Fischer, um atrapalhado golpista que se imagina mestre enxadrista. Fischerle elabora várias maneiras de tomar dinheiro do professor, sempre sem sucesso. Até que Therese ressurge, na companhia do zelador Benedikt Pfaff, e, após uma pantomima digna de comédia pastelão, executada na frente da casa de penhores da cidade (Viena?), vão todos presos (segunda parte). Na terceira parte, ficamos conhecendo um pouco melhor o zelador, um policial aposentado que tem como único argumento seus punhos - que fizeram como vítima até mesmo sua mulher e sua filha. Descobrimos também que Kien agora está reduzido a pesquisador das calças dos transeuntes, cujos hábitos ele observa a partir do quarto minúsculo antes ocupado pelo zelador, agora amasiado de Therese. Enfim, na quarta e última parte, tudo se resolve: o irmão de Peter Kien, o famoso psiquiatra Georges Kien,  diretor de um hospício para 800 loucos em Paris, recebe um telegrama do irmão que não via há 12 anos e viaja em seu encalço. Encontra-o vivendo miseravelmente no quartinho, explorado por Therese e pelo zelador. Com o jeito aprendido na sua profissão - misto de sedução e ameaça-, expulsa Therese e o zelador em devolve o apartamento ao irmão, junto com os livros. Regressa a Paris, enquanto Kien, num acesso de loucura, coloca fogo na biblioteca. As personagens deste livro não suscitam empatia - nenhuma delas, pois são todas estranhas, vivendo em ambientes fantásticos e desempenhando papéis ridículos, como num teatro de província. Os homens todos, sem exceção, são misóginos - impressionante, a misoginia é uma marca da narrativa, o que poderia ser resumido neste pensamento de Kien: "Quais são as contribuições das mulheres para a História? Filhos e intrigas" (p. 532). Um livro desesperançado, onde não há qualquer sinal de remição para o ser humano: todos são grotescos, interesseiros, desagradáveis, mesquinhos e vulgares. A linguagem do romance é monotonamente rebarbativa, cheia de lugares comuns e repetição de ideias, o que torna a leitura arrastada e muitas vezes enfadonha. Ainda que o narrador, a certa altura, tente se auto-justificar, afirmando: "Livros de mais de quinhentas páginas inspiravam-lhe respeito, visto que certamente tinham algum valor " (p. 376-377)... 



Curiosidade:


Há uma interessante ligação entre um dos personagens do romance, o psiquiatra e ex-obstetra Georges Kien, com o doutor Simão Bacamarte, do conto O Alienista, de Machado de Assis (1836-1908) - V. capítulo "Um manicômio" (p. 547 e seguintes). Vou destacar dois trechos, em particular:
Como Georges Kien se vê:
"Alicerçando-se nos loucos, evoluía, a ponto de tornar-se um dos espíritos  mais completos da época. Aprendia deles mais do que lhes dava. Eles o enriqueciam com suas experiências excepcionais, ao passo que ele apenas os simplificava, devolvendo-lhes a saúde. Quanto engenho, quanta sagacidade encontrava em alguns deles! Eram as únicas personalidades autênticas, da mais perfeita unilateralidade, caracteres genuínos, e de uma retilineidade e de uma força de vontade que Napoleão teria invejado" (P. 551)
Como seus assistentes o vêem:
"'Por que admira ele de tal forma esses idiotas?', perguntavam entre si. 'Ora, porque ele próprio anda louco, mas apenas pela metade. Por que os cura? Porque não pode suportar que eles sejam melhores idiotas do que ele. Tem inveja deles. Sua presença não lhe permite viver em paz. Os loucos são considerados como algo singular. Nele vibra a inclinação doentia de concentrar sobre sua pessoa a mesma atenção que dirige a eles" (p. 570).



Avaliação: BOM

(Fevereiro, 2020)

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Crônica na pedra (1971) 
Ismail Kadaré (1936) ALBÂNIA     
Tradução: Bernardo Joffily         
São Paulo: Cia das Letras, 2008, 275 páginas






Um menino, de cerca de sete anos, assiste, maravilhado, os transtornos provocados pela II Guerra Mundial em sua pequena cidade-natal. Primeiro, a ocupação pelos italianos, que, com eles, trazem um aeroporto, instalam um prostíbulo e impõem sua língua e moeda. Depois, os combates se acirram e a cidade troca de mãos várias vezes: os italianos são expulsos pelo bombardeio aliado, que mata várias cidadãos; chegam os gregos, que impõem sua língua e moeda, promovem algumas escaramuças e são expulsos; voltam os italianos, que, por sua vez, são acossados pelos guerrilheiros comunistas albaneses; por fim, chega o temido exército nazista alemão. "(...) a cidade, que já fora assinalada nos mapas do Império Romano, dos domínios normandos, de Bizâncio, do Império Turco, do Reino da Grécia e do da Itália, anoiteceu desta vez sob o Reich Alemão" (p. 261), lembra o menino. Narrado na primeira pessoa, acompanhamos essas mudanças pelos olhos do garoto, que, como todos na cidade, tenta levar uma vida normal, sob as piores condições. Com ele, conhecemos sua casa enorme, cujo porão torna-se por um período abrigo contra os bombardeios aéreos; sua família materna (principalmente as mulheres que vivem em torno de sua avó); sua família paterna, que mora um pouco distante, com um avô que passa todo o tempo lendo livros em turco e a tia que acaba aderindo à guerrilha; os habitantes notórios: a tia Pino, que, mesmo em condições adversas, mantém-se pronta para auxiliar na arrumação das noivas; o amigo Ilir; os amigos Issa e Javer, um pouco mais velhos, que aderem à guerrilha, sendo que Issa  termina enforcado; o cronista da cidade, a velha rica e reacionária, o delator, o homem que troca de nome a cada nova ocupação; e ainda o aeroporto, os aviões, o castelo... O menino enamora-se, descobre a literatura e com ela o  poder das palavras, indaga-se sobre os mistérios do mundo. A partir de um ponto de vista ao mesmo tempo ingênuo e mágico vivenciamos aqueles "tempos turbulentos", quando "(...) reinava a insegurança" (p. 89).


Avaliação: MUITO BOM

(Fevereiro, 2020)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

O mestre e Margarida (1967) 
Mikhail Bulgákov (1891-1940) RÚSSIA     
Tradução: Zoia Prestes        
Rio de Janeiro: Alfaguara, 2010,  453 páginas





Trata-se de uma narrativa publicada postumamente, devido à sempre estúpida e absurda censura, no caso, do governo soviético. Como sempre afirmo, não gosto de sátiras. Os narradores de sátiras - e portanto, os Autores - são seres que se colocam acima de seus semelhantes, e ao invés de olhá-los com a empatia de quem sabe que somos todos, sem exceção, patéticos, pensa que é superior a eles. Por isso, também neste caso, embora condene veementemente a censura - que, repito, é sempre estúpida e absurda -, não consigo gostar desse romance. Aliás, desconfio mesmo que boa parte de sua fama deva-se a isso... O Autor usa de estratégias do realismo fantástico para criar situações hilárias - que não me fizeram rir - e de críticas à intelligentzia soviética, um bando de artistas medíocres, interesseiros e deletérios, mas que, a rigor, existem em qualquer lugar e em qualquer tempo... Tivesse, talvez, alargado suas observações ao conjunto da sociedade, quem sabe resultasse em um romance mais interessante. O diabo, encarnado na figura do mago Woland, desembarca em Moscou, junto com seus assistentes, Korôiev (ou Fagot),  Azazzelo e o gato Behemoth, e começa a promover uma série de situações que expõe o ridículo da casta de escritores soviéticos: seus empregos burocráticos, suas obras inexpressivas, seus apartamentos conseguidos por submissão aos interesses do Partido, etc... No final, o diabo, condoído com o destino malogrado do tal "mestre", um romancista censurado por escrever um livro sobre os tempos de Cristo, aceita o pedido de sua amante, a tal Margarida Nikoláievna, a Margarida do título, e dá a eles um final de certa forma glorioso. É interessante perceber a alta conta que o Autor tinha de si mesmo, que transparece, claro, de maneira alegórica. Perguntado pelo diabo porque Margarida o chama de "mestre", o escritor responde, modestamente: "Ela tem um conceito muito elevado sobre o romance que escrevi" (p. 325). Algumas páginas adiante, o diabo "profetiza": "(...) o seu romance ainda lhe trará surpresas" (p. 332)...





Curiosidade:


No entanto, tenho que admitir, o Autor conseguiu uma proeza sem igual. O livro, escrito entre 1929 e 1940, antecipa, de maneira impressionante, os recursos dos mapas virtuais, no caso on line, que só conheceríamos, em parte, na segunda década do século XXI... Senão, vejamos: "O meu globo é bem melhor [o diabo falou], ainda mais porque tenho que saber dos acontecimentos com precisão. Por exemplo, está vendo esse pedaço de terra banhado pelo oceano? Veja como se enche de fogo. Lá começou uma guerra. Aproxime-se e verá com detalhes. // Margarida inclinou-se até o globo e viu que o quadradinho de terra ampliou-se, coloriu-se e se transformou num mapa em alto-relevo. Depois, ela viu o fiozinho do rio, e um povoado ao lado. A casinha, que tinha o tamanho de uma ervilha, cresceu e tomou proporções de uma caixa de fósforos. De repente e silenciosamente, o telhado da casa subiu junto com uma nuvem de fumaça negra, e as paredes caíram de tal forma que não sobrou nada da caixinha, além de um amontoado de entulho, de onde saía uma fumaça negra. Aproximando o olhar mais ainda, Margarida percebeu uma pequena figura de mulher deitada sobre o chão e, a seu lado, numa poça de sangue, uma criança pequena, com os braços estendidos".  (pág. 295)


Avaliação: NÃO GOSTEI

(Fevereiro, 2020)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O grande rebanho (1931) 
Jean Giono (1895-1970) FRANÇA    
Tradução: Álvaro Manuel Machado       
Lisboa: Presença, 2014, 220 páginas


Joseph e Olivier são dois jovens, vizinhos, que habitam a região da Provença - e que são convocados para a frente de batalha, durante a I Guerra Mundial. Joseph deixa a mulher, Julia, morando na quinta da família, Chauranes, com o pai, Jerôme, e a irmã, Madeleine; Olivier parte, deixando o pai cuidando das terras chamadas Gardettes. O livro, narrado na terceira pessoa, acompanha Joseph e Olivier ao longo dos anos - eles vão para lugares diferentes e não mantêm nenhum contato entre eles -, mas também acompanha a vida das pessoas que ficaram para trás. E esse é o maior mérito do romance: a narrativa mostra como a loucura da guerra afeta não só os que estão no campo de batalha, mas também os que tentam, sem conseguir, levar a vida adiante, numa situação totalmente anormal. Afinal, Joseph volta para casa sem um braço - ele que é um camponês enamorado da terra... - e  o traumatizado Olivier casa-se com Madeleine. O livro termina com uma nota de esperança - o nascimento de um menino, filho de Olivier e Madeleine - que torna-se, sem intenção, tragicamente irônica. Mal sabiam eles - os personagens, e o Autor -, que em breve, muito breve, aquele menininho iria ser convocado para o outro "verdadeiro matadouro" (p. 212) que foi a II Guerra Mundial, pois, "a vida se faz com sangue, com sofrimento" (p. 217).




Avaliação: MUITO BOM

(Fevereiro, 2020)