terça-feira, 31 de julho de 2018

Contos de amor, de loucura e de morte (1917)
Horácio Quiroga (1879-1937) - URUGUAI                
Tradução: Eric Nepomuceno     
Rio de Janeiro: Record, 2001, 174 páginas







O livro reúne 15 contos do Autor, divididos pelos temas que o título antecipa, alguns deles, pelo menos a metade, sempre presentes em antologias das melhores narrativas curtas latino-americanas. Na verdade, para mim, há aqui uma obra-prima indiscutível, "A insolação", que, curiosamente, engloba amor (de um norte-americano, perdido na selva que margeia o rio Paraná, pelos seus cães), loucura (a visão personificada da Morte) e morte, e que, de certa maneira, prenuncia o que depois viria a ser chamado de 'realismo fantástico'. Também me agradam "Uma estação de amor", "Nosso primeiro cigarro", e, apesar do péssimo título, "A meningite e sua sombra". Mas outros contos conhecidíssimos, como "A galinha degolada", "À deriva" e "O travesseiro de plumas", perdem a força, a meu ver, pelo prazer naturalista de simplesmente chocar o leitor. 



(Julho, 2018)



Avaliação: BOM 

domingo, 22 de julho de 2018

Crónica familiar (1947)
Vasco Pratolini (1913-1991) - ITÁLIA                
Tradução: José Manuel Calafate    
Lisboa: Unibolso, s/d, 190 páginas





Logo após nascer, em 1918, Ferruccio é deixado aos cuidados do mordomo de uma mansão, nos arredores de Florença. Sua mãe morreu vinte e cinco dias após dar à luz, de complicações provocadas pela gripe espanhola, e seu pai convalescia num hospital dos ferimentos recebidos na guerra. Mas, o que era para ser apenas uma ação piedosa, torna-se uma espécie de doação, quando o pai, já recuperado, toma 300 liras de empréstimo do mordomo e some da vida do menino. Será o irmão, cinco anos mais velho, que contará a breve trajetória de Ferruccio, desde os primeiros anos, quando a avó lhe levava para rápidos encontros formais na cozinha da mansão, até a reaproximação, já em Roma, em um hospital, durante uma nova guerra, quando, desenganado, Ferruccio - abandonado pela mulher e longe da filha - luta contra uma doença que ninguém consegue diagnosticar. Reconstrução de uma época (o entreguerras, na Itália), quando impera a pobreza e a falta de perspectivas, o romance evoca a amizade, o afeto, a passagem inexorável do tempo. Embora o livro termine em 1945, não busque o leitor o tenso ambiente de radicalização política, cenas de combate ao fascismo ou relatos sobre batalhas - somente mencionados, de maneira distante -, pois o narrador quer apenas e tão somente - e não é pouco - fixar a memória do irmão morto ainda jovem, antes dos 30 anos...



(Julho, 2018)




Avaliação: BOM 


sexta-feira, 20 de julho de 2018


Berlin Alexanderplatz (1929)
Alfred Döblin (1878-1957) - ALEMANHA               
Tradução: Irene Aron   
São Paulo: Martins Fontes, 2009, 534 páginas





Em fins de 1927, Franz Biberkopf, "homem de trinta e poucos anos", (p. 27), "rude, grandalhão, de aparência repulsiva" (p. 47), "antigo operário de construção e de transportes" (p. 9) que esteve "com os prussianos na trincheira" (p. 37), deixa a penitenciária após cumprir quatro anos de prisão por ter assassinado a mulher, Ida, "bonita moça de uma família de serralheiros" (p. 47). Disposto a se reintegrar na sociedade, tenta arrumar algum emprego honesto como vendedor ambulante, primeiro de jornais, depois de gravatas, mas afinal acaba se aproximando de obscuros personagens que transitam à margem da Alexanderplatz, centro nevrálgico de Berlim, naquele momento uma cidade em profunda mudança urbanística. Já no começo do ano seguinte, Franz envolve-se com Lina, uma prostituta polaca que o sustenta financeiramente, mete-se com política (vende jornais nazistas, frequenta círculos operários comunistas), e, pelas mãos de um tal Reinhold, entra quase sem querer para um bando de ladrões. Após uma malsucedida tentativa de roubo, Reinhold empurra Franz do carro em que se encontravam, ele é atropelado e perde um braço. Durante a restabelecimento, Franz reencontra o casal Eva e Herbert, antigos companheiros que o apresentam a Mieze, com quem passa a viver, explorando-a como cafetão. Franz perdoa Reinhold, volta ao bando, mas Reinhold, desejando se apropriar de Mieze, e diante da reação negativa dela, termina por assassiná-la. Após algumas peripécias, Franz é preso, suspeito - por causa de seu passado - de ter participado da morte de Mieze. Profundamente deprimido, é internado em uma manicômio e, quando de lá sai, vai trabalhar como auxiliar de porteiro em uma fabrica. Contado dessa matéria, permanece à tona apenas a matéria romanesca - mas o livro é muito, muito mais que isso. Usando técnicas de colagem, utilizando métodos psicanalíticos para abordar a essência dos personagens, e formulando moderníssimas técnicas narrativas*, o Autor constrói um universo magnífico, que compreende sim a história de Franz Biberkopf, mas ao mesmo antecipa, com incrível clarividência, o clima do entreguerras, uma Alemanha ressentida, caótica, que exibe nas ruas as cicatrizes da I Guerra Mundial, povoada por homens e mulheres totalmente amorais, que vivem suas vidas como protagonistas de histórias alheias. Essa apatia que iria redundar no horror da II Guerra Mundial...



* O Autor foi acusado de imitar o irlandês James Joyce (1882-1941), em particular seu romance, Ulysses, de 1922, fato que repudiou veementemente. Na verdade, embora haja pontos em comum, os dois livros diferem radicalmente no trato com as questões de espaço e tempo, primordiais em ambas as narrativas. "Uma mesma época pode dar ensejo a coisas parecidas e até mesmo iguais em lugares diferentes, independentemente umas das outras", anotou, com total razão (pág. 525).


(Julho, 2018)




Avaliação: OBRA-PRIMA


Entre aspas: 

"(...) estar vivo exige mais do que um simples pãozinho com manteiga". (pág. 10)
"(...) a coisa principal no ser humano são seus olhos e seus pés. É preciso ver o mundo e caminhar até ele". (pág. 25)
"Sucede com o homem o mesmo que com o fogo: quando arde, ele tem que devorar, e se não consegue devorar, ele apaga, tem que se extinguir". (pág. 342)




Curiosidades:

& Há uma passagem que em tudo lembra o tema principal de um romance de Luigi Pirandello (1867-1936), O falecido Mattia Pascal, publicado em 1904, portanto 25 anos antes: "Em Pottsdam (...) havia um sujeito que depois foi chamado de cadáver ambulante. (...) o sujeito, um certo Bornemann, saindo a passeio de Neugard, encontra um morto boiando na água, no rio Spree (...) e diz: 'Na verdade, já estou morto', vai até lá, rouba-lhe os documentos, agora está morto. E a senhora Bornemann: 'E eu o que faço? Não há mais o que fazer, ele está morto, será que é meu marido, ora, graças a Deus é ele, não se perde nada com um homem desses, o que se lucra com um cara desses, a metade da vida na cadeia, lixo imprestável'. (...) Ele vai para Anklam (...), torna-se peixeiro (...) e se chama Finke. Bornemann, então, não existe mais". (pág. 371-2).

& Valeria a pena um estudo relacionando Berlin Alexanderplatz com o romance O agressor (1943), do brasileiro Rosário Fusco (1910-1977)

Sobre o Brasil:

Na pág. 93, aparecem referências ao café do Brasil. "Café puro em grãos 2,29, Santos garante mistura pura e excelente para uso doméstico, forte e econômico no preparo, Van Campinas, mistura forte, de paladar puro (...)".
Na pág. 186, a referência é ao tabaco : "(...) qualidades de primeira para todos os gostos: Brasil, Havana, México (...)".