quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Os de baixo (1915) 
Mariano Azuela (1873-1952) MÉXICO  
Tradução: Beatriz Bajo    
Taubaté: Letra Selvagem, 2019, 214 páginas


Este romance, que abarca episódios da Revolução Mexicana (1910-1917), não é um épico encomiástico, mas sim uma amarga narrativa desencantada sobre política. Demetrio Macías, um camponês dono de casa, vacas e "um pedaço de terra para plantar" (p. 75),  a quem nada faltava, entra em conflito, por motivo banal, com dom Mónico, latifundiário e chefe político local. Para se vingar, este acusa-o de ser partidário de Francisco Madero, líder oposicionista ao ditador Porfírio Diaz, e coloca tropas federais para agarrá-lo. Demetrio Macias foge para os montes que cercam Zacatecas, estado ao norte do país, e lá junta-se a outros perseguidos, totalizando 26 camponeses em armas, sob sua liderança. Assim, Demetrio Macías torna-se efetivamente revolucionário, filiando-se aos interesses de Pánfilo Natera, por sua vez partidário de Pancho Villa. Pouco a pouco, Macías avança México adentro, acreditando que a revolução "beneficia o pobre, o ignorante, o que toda sua vida foi escravo, os infelizes que nem sequer sabem que se o são é porque o rico converte em ouro as lágrimas, o suor e o sangue dos pobres" (p. 60), como prega retoricamente o estudante de medicina e jornalista Luis Cervantes. O pequeno exército de Macías cresce - num determinado momento conta com mais de 500 homens - e, na medida que o tempo passa, mais e mais vai se tornando parecido com as tropas governamentais, que acossa os camponeses, roubando sua pouca comida, estuprando as mulheres, matando por matar, justificando a propaganda contra-revolucionária que os pintava como "bandidos agrupados (...) com um magnífico pretexto para saciar sua sede de ouro e de sangue" (p. 62). Como explica Alberto Solís, braço-direito de Pánfilo Natera: "há fatos e há homens que não são senão pura bílis... E essa bílis vai caindo gota a gota na alma, e a tudo amarga, a tudo envenena. Entusiasmo, esperança, ideias, alegrias..., nada! Logo não lhe sobra mais nada; ou você se converte em um bandido igual a eles, ou sai de cena, escondendo-se atrás das muralhas de um egoísmo impenetrável e feroz" (p. 95). Apesar de tudo, Demetrio Macías consegue manter-se em parte afastado da barbárie que acomete seus homens. Em parte, porque, se não lhe interessa o saque  - "aparatos de cristal e porcelana; grossos espelhos, candelabros de latão, finas estatuetas, vasilhas" (p. 98), e também "broches, anéis, brincos e outras muitas joias de valor" (p. 127) -, por outro lado, ele subjuga mulheres ao seu prazer, como seus subordinados. Imerso em um confuso cenário de divisões e subdivisões ideológico-partidárias, a luta já não faz muito sentido, como expressa Anastasio Montañes, um dos melhores amigos de Macías: ter "um fuzil nas mãos e as cartucheiras cheias de tiros, seguramente (...) [é] para pelejar. Contra quem? Em favor de quem? Isso nunca importou a ninguém" (p. 156). A decepção com os rumos da revolução é enorme: "lástima de tanta vida ceifada, de tantas viúvas e órfãos, de tanto sangue derramado (...) Para que alguns vigaristas se enriqueçam e tudo fique igual ou pior que antes" (p. 77).  Após dois anos de luta, Macías volta à sua casa, reencontra sua mulher e seu filho, mas parte novamente, porque a revolução "é o furacão, e o homem que se entrega a ela não é mais o homem, é a miserável folha seca arrebatada pelo vendaval" (p. 96). Fica a lição interessantíssima de como, em nome dos mais nobres ideais, pode-se cometer as maiores atrocidades.



Entre aspas :


"(...) deuses caídos nem são deuses nem são nada". (p. 160)



Avaliação: MUITO BOM

(Novembro, 2019)



terça-feira, 26 de novembro de 2019

Os filhos dos dias (2012) 
Eduardo Galeano (1940-2015) - URUGUAI  
Tradução: Eric Nepomuceno     
Porto Alegre: L&PM, 2012, 430 páginas





Este livro emula, ironicamente, aqueles calendários que trazem informações relativas a cada dia do ano. Só que, ao invés de dicas culinárias, noções de agricultura, panegíricos de heróis nacionais, notícias hagiográficas, relata fatos da história da Humanidade do ponto de vista dos derrotados, algo que o Autor já fizera em sua monumental "As veias abertas da América Latina" (1971). Assim, de 1º de janeiro (onde questiona o próprio calendário cristão ocidental) até 31 de dezembro (onde explica o significado da palavra hebraica abracadabra), o Autor desfila, em textos brevíssimos (de uma página apenas), vários momentos - épicos, patéticos, indignantes, hilários, etc - em que os homens e mulheres foram protagonistas de uma história alternativa. 





Avaliação: MUITO BOM

(Novembro, 2019)

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

A meia-noite (1917) 
Ramón del Valle-Inclán (1866-1936) ESPANHA  
Tradução: Pedro Ventura    
Porto: Assírio & Alvim, 2018, 108 páginas




Relato lítero-jornalístico sobre a I Guerra Mundial, que impressiona pela descrição de alguns episódios traumáticos, como, por exemplo, a cena em que uma jovem francesa, violada por soldados alemães, encontra-se grávida e diz para o médico: "Doutor, eu não quero ter um filho dos bárbaros!... (...) Se não me liberta desta cadeia, mato-me!" (p. 61). Aliás, é este médico que traduz, com precisão, o que é a guerra: "É a barbárie atávica que se impõe" (p. 59). O Autor não esconde sua simpatia pelos aliados: "Para os soldados franceses, o sentimento da dignidade humana enraíza-se com o ódio às hierarquias", e, portanto, eles não compreendem "aqueles soldados chatos e brutais que cantam como selvagens, que suportam o chicote dos oficiais, que são escravos numa terra onde ainda existem castas e reis" (p. 75). É curioso que, apesar de se mostrar sensível aos absurdos da guerra - "Esse momento frio e cinzento, em que o soldado, ao cair das trevas da noite, vê à sua volta os companheiros mortos, as metralhadoras despedaçadas, a trincheira desmoronada, é o mais deprimente da guerra" (p. 80-81) -, o Autor ao mesmo tempo demonstra certo fascínio por ela: "A guerra possui uma arquitetura ideal, que apenas os olhos do iniciado podem alcançar, e assim está cheia de mistério telúrico e de luz" (p. 89). 



Avaliação: BOM

(Novembro, 2019)

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Os vendedores de cigarros 
da Praça Três Cruzes (1962) 
Joseph Ziemian (1922-1971) POLÔNIA  
Tradução: Jacob Lebensztayn   
São Paulo: Três Estrelas, 2019, 210 páginas





Este livro - espécie de reportagem-documentário-memória - é a prova cabal daquele axioma do escritor italiano Luigi Pirandello (1867-1936), que, no posfácio de seu romance mais conhecido, O falecido Mattia Pascal (1904), anotou: "Os absurdos da vida não precisam parecer verossímeis porque são verdadeiros. Ao contrário dos da arte que, para parecerem verdadeiros, precisam ser verossímeis". Tivesse o Autor querido transformar em romance a "epopéia" das "vinte e poucas crianças" (p. 203) judias que, passando-se por  arianas, vendiam cigarros na Praça Três Cruzes, em Varsóvia, durante a ocupação da Polônia pelos nazistas alemães, simplesmente teria fracassado, pois a história que conta nesse livro é absolutamente inverossímil. No entanto, o Autor limitou-se a expor, como documento, a história de um grupo de meninos e meninas que encontrou vagando pelas ruas de Varsóvia, sobreviventes da deportação para o campo de extermínio de Treblinka, em julho de 1942, e do levante do Gueto no início de 1943. No outono de 1943, o Autor, munido de um "documento de identidade concedido pelas autoridades alemãs, e um Ausweis, comprovante de trabalho", ambos falsos (p. 16), militava, clandestinamente, no Movimento de Resistência Judaico. que, além de funcionar como uma rede de combate armado contra os alemães, atuava para auxiliar os que estavam na clandestinidade, com roupas, dinheiro, alimentos e moradia. Sabendo que "sobreviver na selva da ocupação exigia energia e sagacidade" (p. 17), o Autor aproxima-se das crianças e pouco a pouco ganha a confiança delas, tornando-se uma espécie de protetor. Encontra-se tão fascinado com o que descobre, que passa a anotar o dia a dia desse incrível grupo que, burlando a odiosa milícia nazista e os entreguistas poloneses, consegue se manter vivo até o término da guerra - não todos, mas a grande maioria -, chegando mesmo a, heroicamente, engajar-se, apesar da pouca idade, no movimento de resistência conhecido como Levante de Varsóvia, em 1944.  O livro mostra, de maneira impressionante, a capacidade de resistência dos seres humanos, mesmo colocados em situações-limite - no caso, a ignominiosa barbárie nazista. No fundo, eles precisavam se salvar "para levar o nome da família adiante" (p. 100), como ensina o pai de um dos meninos. Livro imprescindível para os tempos hodiernos, onde grassa a estupidez, o cinismo, a hipocrisia, alimento dos novos extremismos que têm na absoluta falta de empatia o seu motor. 



Avaliação:
Não faz sentido avaliar esse livro, pois não se trata de uma questão estética, e sim de um documento humano, um documento sobre o período mais vergonhoso da história da Humanidade.  


(Novembro, 2019)

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Época de migração para Norte (1966) 
Tayeb Salih (1929-2009) - SUDÃO  
Tradução: Raquel Carapinha   
Amadora: Cavalo de Ferro, 2019, 159 páginas





Este é um romance sobre os impactos da colonização. Após sete anos na Inglaterra, estudando "a vida de um poeta inglês pouco conhecido" (p. 61), o jovem protagonista volta ao Sudão. Em sua aldeia natal, um lugarejo perdido às margens do rio Nilo, ele reencontra parentes e amigos, e se depara com um novo morador, o enigmático Mustafá Said, que, vindo da capital, Cartum, cinco anos antes, comprara "um campo para cultivo, construiu uma casa e casou com a filha de Mahomoud" (p. 14), Husna Bint Mahmoud. Mais tarde, confessará  que a escolha daquela aldeia deu-se por absoluto acaso: "Subi a bordo de um barco, desconhecendo a direção que tomava e, quando desembarcamos nesta terra, o lugar agradou-me" (p. 21). O protagonista acaba se aproximando de Mustafá e, pouco a pouco, vai desvendando a singularíssima história deste homem brilhante - "estranha mescla de força e de fraqueza" (p. 18) -, que, ao tentar estender uma ponte entre duas culturas totalmente diferentes, perde-se ele mesmo no vazio de sua existência, uma pessoa  que, supunha-se, viria a se tornar "alguém à medida dos comissários e dos inspetores e, no entanto, não encontrou sequer um túmulo onde o seu corpo repousasse, em toda a extensão deste país" (p. 58). Filho único de um vendedor de camelos, que ao morrer deixou-o numa situação confortável, Mustafá Said vivia em Cartum, completamente livre: "saía e entrava, brincava fora de casa, vagueava pelas ruas e não havia ninguém que me desse ordens ou impusesse interdições" (p. 29). No entanto, ele se sentia diferente: "Nada me perturbava. Não chorava, quando me batiam; não sentia alegria. quando um professor me elogiava, na sala de aula; não sofria com o que causava sofrimento aos outros" (p. 30). Logo, entendeu que padecia da "doença da errância" (p. 70). Inteligente, agarrou-se aos estudos: após cinco anos em Cartum, é encaminhado para o Cairo, no Egito, onde chega com 12 anos e onde conhece talvez as duas únicas pessoas que tenha amado verdadeiramente, Mr. e Mrs. Robinson. Aos 15 anos, "uma pessoa destituída de alegria" (p. 34), segue para Londres, onde cursará Economia, tornando-se professor na universidade, com apenas 24 anos. Lá, para além de engajar-se na política - torna-se presidente da  Associação da Luta pela Libertação de África e escreve livros em que denuncia "o sofrimento em que viviam os filhos [do Sudão], sob a jurisdição dos ingleses" (p. 141), envolve-se com mulheres, de uma forma absolutamente destrutiva. Usa de seus atributos intelectuais e físicos para atrai-las e massacrá-las - "Pelo simples fato de ter nascido junto a linha do Equador, era considerado um servo por uns, e tomado por um deus, por outros" (p. 105). Três de suas mulheres se matam (Ann Hammond, Sheila Greenwood e Isabella Seymour) e uma, Jean Morris, com quem viria a se casar - primeiro sudanês a casar-se com uma mulher européia (p. 59) -, ele assassina, após um relacionamento conturbadíssimo. "Tudo o que fiz, depois de a ter matado, foi um pedido de desculpas, não por a ter matado, mas pela farsa que era a minha vida" (p. 37), confessa. Cumpre sete anos de prisão, após o que perambula "de Paris a Copenhaga, de Deli a Banguecoque" até ir parar na pequena aldeia na curva do Nilo, onde desaparece durante uma cheia - afogamento provocado por acidente ou suicídio? O protagonista percorre, por espelhamento, um caminho muito parecido. Após voltar para o Sudão, passa a ensinar literatura pré-islâmica numa escola secundária até ser promovido a inspetor do ensino primário, lotado no ministério da Educação, em Cartum. Depois do desaparecimento de Said, sua viúva, pressionada a se casar com um comerciante mais de vinte anos mais velho que ela, acaba matando-o e se matando em seguida. Abalado pela tragédia e dividido entre "muito foi o que aprendi e muito foi o que perdi" (p. 13), o protagonista quase toma a mesma decisão de Mustatá Said. Entra no rio Nilo para morrer, mas no final decide pedir socorro. pois no fundo "sentia que não era uma pluma exposta ao curso dos ventos, mas que, tal como [uma] palmeira, eu tinha uma origem, raízes e um fim" (p. 14). 


Avaliação: MUITO BOM

(Novembro, 2019)