domingo, 25 de fevereiro de 2018

Os comediantes (1966)
Graham Greene (1904-1991) - INGLATERRA     
Tradução: Jaime Correia    
 Lisboa: Livros do Brasil, 1997, 307 páginas





Eis um grande romance político. O Autor consegue situar de forma clara o espaço e o tempo da narrativa - o Haiti sob o jugo do cruel ditador Papa Doc e sua polícia privada, os tonton macoutes, na década de 1960 - e ainda assim alcançar a universalidade. Qual o segredo? Criar personagens complexos, cujos destinos estão condicionados à forma de atuação naquele momento específico. E, no caso, a palavra "atuação" aqui carrega enorme eficácia. Não é à toa que o Autor usa o termo "comediante" para intitular o romance: todos agem como atores representando papéis nos quais não acreditam - são farsantes* tentando sobreviver num mundo que já não compreendem. Brown, um inglês que na verdade nasceu em Mônaco (ou seja, em lugar algum), tem sessenta anos e dirige um hotel em Porto Príncipe, herdado da mãe, que reviu moribunda, após muitos anos. Ele acaba de voltar de uma viagem a Nova York, onde tentou, sem sucesso, vender o empreendimento, que já não recebe mais hóspedes, por conta do terror implantado por Papa Doc. No barco acabou conhecendo Mr. e Mrs. Smith, casal norte-americano, que pretende organizar um centro vegetariano no país, e o enigmático major Jones, que se diz ex-militar que combateu os japoneses na Birmânia, na Segunda Guerra Mundial. Brown regressa para um lugar cuja energia elétrica é intermitente, a violência perene - as pessoas somem sem maiores explicações - e o cerco aos dissidentes se expande. Além disso, Brown vive uma relação belicosa com Martha, uma alemã quase trinta anos mais jovem, mulher do embaixador de um país sul-americano, de quem tem ciúmes doentios. Pouco a pouco, tudo se desmorona. Os raros opositores de Papa Doc, conhecidos de Brown, são assassinados. Seu braço-direito no hotel, Joseph, entra na clandestinidade e se junta um grupo guerrilheiro nas montanhas, liderado pelo falso militar Jones - nas primeiras escaramuças contra as tropas de Papa Doc, eles morrem. Mr. e Mrs. Smith conhecem o poder da burocracia - ou seja, da corrupção - dos órgãos governamentais e desistem de implantar o vegetarianismo no Haiti. O sentido de autodestruição afetiva de Brown - "É um escuro mundo em que vives", segundo Martha (p. 245) - afasta-o da mulher que o amava. Brown, por seu envolvimento com os opositores, foge para a República Dominicana, onde continuará a viver sua vida de comediante...


* Talvez, neste caso, o título da edição brasileira seja mais feliz (Os farsantes, tradução de Ana Maria Capovilla, Biblioteca Azul). Embora "Os comediantes" seja tradução literal e correta, o termo "comediante" no Brasil está muito ligado ao sentido de humor, e até ao de humor escrachado. Farsante alcança uma definição mais condizente com o romance.


(Fevereiro, 2018)




Avaliação: MUITO BOM  

Curiosidades: 


O Brasil aparece numa visita a Duvalierville, "nossa bela cidade nova": "É a nossa réplica de Brasília", comenta o guia (p. 167). "Para além do anfiteatro havia quatro casas de asas inclinadas, como borboletas feridas. Assemelhavam-se a certas edificações de Brasília, vistas por um telescópio  ao contrário", anota o narrador (p. 177). "Não fiquei muito impressionado com aquele projeto, confesso, mas sabe até mesmo Brasília..." , afirma Mr. Smith (p. 181).
E, mais tarde, numa reunião de diplomatas: "O ministro do Brasil tinha calçado as luvas amarelas de Dom Celes!" (p. 205) e, na página seguinte: "O ministro do Brasil, silhueta redonda azevichada, expressão asiática entre mandarim e bonzo, tomou a palavra etc"


Entre aspas: 


"A Igreja [Católica] condena a violência, mas condena mais duramente a indiferença. A violência pode ser a expressão do amor, mas a indiferença nunca o é. Uma é a imperfeição da caridade, a outra é a perfeição do egoísmo." (pág. 303).
  

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Tirano Banderas (1926)
Ramón del Valle-Inclán (1866-1936) - ESPANHA    
Tradução: Newton Freitas   
 Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, 244 páginas






Este livro é considerado a matriz de todos os romances sobre ditadores latino-americanos que viriam a ser escritos posteriormente - e que dariam clássicos como "O Senhor Presidente" (1946) do guatemalteco Miguel Ángel Astúrias (1899-1974), "
O recurso do método" (1974) do cubano Alejo Carpentier (1904-1980), "Eu, o supremo" (1974) do paraguaio Augusto Roa Bastos (1917-2005) e "O outono do patriarca" (1975) do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), entre muitos outros. Embora, na verdade, o primeiro livro sobre o tema tenha sido o extraordinário "Nostromo" (1904) do polonês que escrevia em inglês Joseph Conrad (1857-1924). Tirano Banderas, dom Santos Banderas, "indígena pelos quatro costados" (p. 217), é o presidente-ditador de uma republiqueta hispano-americana, a qual conduz com mão de ferro. A cadeia de Santa Mônica está lotada de rebeldes, executados e jogados ao mar com tanta frequência que os "safados tubarões já se fartaram de tanta carne revolucionária" (p. 159). Enquanto isso, cercado de áulicos, Tirano Banderas toma decisões, divertindo-se com o ingênuo "jogo da rãzinha". Cruel, dissimulado, traiçoeiro, dom Santos Bandera oprime o povo e amedronta seus aliados. No entanto, um dia, por motivo fútil, desencadeia uma insurreição bem sucedida, que o depõe. Ele cai morto a tiros e sua cabeça, "maldita por sentença, esteve três dias exposta num cadafalso com tiras amarelas na Praça de Armas" antes de o tronco, esquartejado, ser repartido "de fronteira a fronteira" (p. 241). Provavelmente - isso não está nas páginas do romance, mas nos anais da trágica história da América Latina - os vencedores daquela revolução se perpetuaram no poder, ditatorialmente, até serem derrubados por outros grupos, e assim sucessivamente... O grande problema do livro é que todos os personagens, sem uma única exceção, são meras caricaturas - e aqui encontra-se meu principal senão ao gênero sátira. Elas provocam o riso, pelo exagero das tintas, mas não a transformação, que a tragédia consegue ao humanizar - ou seja, ao trazer para perto de nós - os personagens, por mais horríveis e deploráveis que eles sejam, Outra questão: para não localizar a sua ação em nenhum país específico e para universalizar o patético caudilhismo latino-americano, o Autor mistura paisagens, sotaques, culturas e povos - mas, ao invés de conseguir fabular um novo e genérico país, apenas torna o espaço irreconhecível, e portanto pouco permeável ao leitor.



(Fevereiro, 2018)



Avaliação: NÃO GOSTEI  

Curiosidades: 


1) O Brasil aparece à página 205, numa reunião de diplomatas. "O ministro do Brasil tinha calçado as luvas amarelas de Dom Celes!" e ainda à página seguinte: "O ministro do Brasil, silhueta redonda azevichada, expressão asiática entre mandarim e bonzo, tomou a palavra etc"

2) É estranho que o Autor denomine um diplomata japonês como Tu-Lag-Thi...


quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O gabinete negro (1928
Max Jacob (1876-1944) - França             
Tradução: Luiz Dantas      
São Paulo: Carambaia, 2018, 245 páginas




Eis um livro que não se permite ser enquadrado em gênero algum. Trata-se de um conjunto de 31 cartas, sem qualquer relação umas com as outras, seguidas, não todas, de comentários. Apesar de não  constituírem nem mesmo uma sequência no tempo (a maioria, embora não datada, traz referências indiretas a um período situado logo após a primeira guerra mundial e aos anos iniciais da década de 1920) e nem estarem condicionadas a um espaço delimitado (dizem respeito à França, de maneira geral), apesar de tudo isso, ainda assim... constituem uma unidade! E aqui está a genialidade do Autor. As cartas funcionam como uma espécie de síntese "atualizada" da Comédia Humana de seu conterrâneo, Honoré de Balzac (1799-1850). São narrativas que fornecem retratos primorosos de todas as classes sociais da França, das mais variadas profissões, dos mais diversos tipos. O leitor se depara com as preocupações de uma dama da alta sociedade com as indecisões do filho, com a ascensão e queda de um burguês, com as razões de uma empregada doméstica para se demitir do trabalho, com os conselhos de um médico a um colega que acaba de ingressar na profissão, com uma princesa russa que se estabelece como manequim em Paris, etc etc etc... E, como no caso de Balzac, a máquina que move a todos é o dinheiro. Os comentários às cartas, o mais das vezes irônicos ou sarcásticos, ora esclarecem , ora estabelecem diálogos com o que vai escrito. 



 (Fevereiro, 2018)



Avaliação: MUITO BOM  




terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O olho de Apolo (1910-1936
G. K. Chesterton (1874-1936) - Inglaterra            
Tradução: José Remelhe      
Lisboa: Presença, 2008, 165 páginas


Seleção de cinco contos do Autor, pelo escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), quatro dos quais protagonizados pelo modesto Padre Brown, uma espécie de Sherlock Holmes de batina. Em um deles, inclusive, "Os pés estranhos", surge aquele que viria a ser seu companheiro involuntário de aventuras, o francês Monsieur Flambeau, que adquire assim o papel destinado a Watson. Flambeau, nesta história, aparece como um sagaz ladrão arrependido, e que se torna mais tarde detetive amador, e que estará ao lado do Padre Brown na resolução dos enigmas propostos em "O olho de Apolo" (um assassinato sem assassino), em "A honra de Israel Gow" (um não crime cometido por um zeloso mordomo) e em "O duelo do dr. Hirsch" (um confronto em que os adversários eram a mesma pessoa). Apenas não surgem, o baixo Padre Brown e o alto Monsieur Flambeau (invertendo os papéis de Dom Quixote e Sancho Pança, fisicamente), na última história, "Os três cavaleiros do Apocalipse", na qual a vida de um homem é salva pela estrita obediência de um soldado encarregado de levar sua sentença de morte. O Autor trabalha com paradoxos e charadas. Com personagens rasos, os contos são desafios racionais, apenas. Interessante como entretenimento, 

 (Fevereiro, 2018)



Avaliação: BOM  




quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

A dama do cachorrinho 
e outros contos (1886-1899
Anton Tchekhov (1860-1904) - Rússia           
Tradução: Boris Schnaiderman       
São Paulo: Editora 34, 1999, 386 páginas




Seleção de 36 entre as quase três centenas de contos escritos pelo Autor, aqui encontramos alguns exemplares do que de melhor ele produziu. Sua galeria de personagens infantis demonstra a profunda sensibilidade por aqueles pequenos seres que, por ainda não estarem de todo contaminados pelo universo egoísta e predador dos adultos, consegue estabelecer com o mundo à volta uma relação de amor puro e altruístico. Exemplos disso são "Casa-se a cozinheira", "Um dia no campo", "Criançada" e as obras-primas "Vanka" e "O acontecimento" -  a que poderíamos acrescentar "Olhos mortos de sono" e "Volódia", trágicos destinos de adolescentes mal entrados naquele universo a que nos referíamos. Mestre da narrativa curta, o Autor consegue, em rápidas pinceladas, retratar o real - russo e finissecular, mas universal e atemporal - com uma sofisticação poucas vezes igualada. A questão moral em "Crime premeditado", o clima de opressão política presente em "Subtenente Prichibiéiev", a crítica certeira e corrosiva ao capitalismo em "Um caso clínico", a mais profunda solidão em "Angústia", e o amor infeliz que compõe as obras-primas que são "Tifo", "Ventoinha" e "A dama do cachorrinho". A ironia cruel que perpassa estas histórias - assim como em "A corista", "Bilhete premiado" e "Inimigos" - é a mesma que encontramos no brasileiro Machado de Assis, que viveu exatamente na mesma época (1836-1908), e, de uma maneira espantosa, compartilha com ele a mesma visão de mundo desencantada e às vezes até os mesmos procedimentos narrativos. Uma curiosidade: o conto "Aflição" tem como tema a luta perdida do homem contra a natureza, no caso, o frio extremo, e lembra muito "A fogueira", do livro homônimo, do norte-americano Jack London (1876-1916), publicado aqui em 31-12-2016, e "O patrão e o empregado", de Liev Tolstói (1828-1910), em Contos 3, publicado em 15-11-2017. 


 (Fevereiro, 2018)



Avaliação: MUITO BOM  



Entre aspas:

"A frase, geralmente, por mais bela e profunda, atua unicamente sobre os indiferentes, mas nem sempre pode satisfazer àqueles que são felizes, pois o silêncio constitui, com maior frequência, a mais elevada expressão da felicidade ou do infortúnio. Os que amam compreendem-se melhor quando calados, e um discurso ardente, apaixonado, proferido sobre o túmulo de alguém, comove unicamente as pessoas estranhas ao defunto, parecendo frio e distante a sua viúva e filhos" (pág. 191-192)

"Os infelizes são egoístas, maus, injustos, cruéis e menos capazes de se entender entre si que os imbecis. A infelicidade não une, mas separa os homens e, mesmo nos ambientes em que, parece, eles deveriam ficar unidos pela paridade do infortúnio, cometem-se muito mais injustiças e crueldades que num meio de gente relativamente satisfeita" (pág. 200)