segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Para sempre Uruguai

Organização e Tradução: Aldyr Garcia Schlee e Sergio Faraco

Porto Alegre: IEL, 1991, 239 páginas



Essa coletânea reúne 22 contos e forma um excelente panorama histórico da literatura de ficção uruguaia, já que oferece autores desde E. Acevedo Díaz (1851-1921), vindo do século XIX, até contemporâneos, como Elbio Rodríguez Barilari, nascido em 1953. Muito próxima da literatura do Rio Grande do Sul, com quem compartilha não só os pampas, mas ainda uma certa visão de mundo, a literatura uruguaia também se divide entre rural e urbana. Para mim, pelo menos neste volume, a literatura rural se sobrepõe amplamente à urbana. Marcada por uma violência extremada, provocada por gente acostumada à solidão e aos silêncio dos grandes espaços vazios, destaco as narrativas do já citado Acevedo Díaz, "O combate da tapera"; "Eram como chanchos", de Javier de Viana; "María del Carmen", de Francisco Espínola; "Os alambradores", de Victor Dotti; "Lua de outubro", de Mario Arregui; "A terra velha e fraca", de Julio C. da Rosa - e ainda três contos que não são especificamente passados nos pampas, como "À deriva", de Horácio Quiroga, que tem como cenário as margens do rio Paraná; "A longa viagem de prazer", de Juan José Morosoli, que é um road movie caipira; e "A volta de Narciso Martínez", de Juan Capagorry. Dos contos urbanos, bastante diversos entre si, destacaria o realismo fantástico de "O balcão", de Felisberto Hernández, e "O passarinho dos domingos", de María de Montserrat; o realismo quase lírico de "O inferno tão temido", de Juan Carlos Onetti; "Sábado de glória", de Mario Benedetti; e "Infância de um craque", de Mario Cesar Fernández; e o realismo político de "O desejo e o mundo", de Eduardo Galeano, Cá entre nós, um país que h0je possui pouco mais de três milhões de habitantes poder contar com uma lista de nomes de autores como Espínola, Arregui, Quiroga, Hernández, Onetti, Benedetti e Galeano... É impressionante e invejável... 



AVALIAÇÃO: MUITO BOM

(Outubro, 2020)

terça-feira, 20 de outubro de 2020

 A pirâmide de fogo (1895)

Arthur Machen (1863-1947) - PAÍS DE GALES 

Tradução: Filipe Guerra   

Barcarena: Editorial Presença, 2007, 167 páginas




Este livro, que faz parte da célebre coleção Biblioteca de Babel, dirigida por Jorge Luis Borges (1899-1986), reúne três contos longos, que possuem em comum o fascínio pelas lendas e mistérios envolvendo duendes e outras entidades das florestas galesas. Embora classificadas como histórias de horror - e há, digamos, um clima de estranhamento perpassando todas as narrativas -, elas são contadas como histórias de detetive: o leitor é apresentado ao caso, geralmente um assassinato ou um desaparecimento sem explicação, há uma  investigação "científica" e um desfecho de fundo "sobrenatural". Os casos são sempre expostos na primeira pessoa, mas, engenhosamente, de forma indireta, o que permite ao narrador intervir para esclarecer pontos obscuros. "A pirâmide de fogo" busca explicação para o sumiço de Anne Trevor, que, ao fim, descobrimos ter sido imolada pelo 'povo pequeno', que, após o ritual, que se repete de tempos em tempos, volta para "o mundo subterrâneo, para suas moradas sob a colina" (p. 62). "A história do sinete negro" mais ou menos repete o enredo de "A pirâmide de fogo" - o professor William Gregg desaparece, após publicar um importante tratado de etnologia, e dele são encontrados apenas vestígios ("o seu relógio e a respectiva corrente, o porta-moedas com três soberanos de ouro e algumas moedas de prata, e o anel que costumava usar" - p. 67). Aqui, acompanhamos o relato de sua secretária, Miss Lally, sobre o que ela acredita que realmente aconteceu - e que não exclui a possibilidade de o professor ter sido levado pelo 'povo pequeno' e não a de ter caído nas águas do rio... Finalmente, "A história do pó branco" conta o caso de Francis Leicester, narrado por sua irmã, Helen, um sujeito voltado para os livros, que, doente, é tratado pelo doutor Haberden. O remédio que ele receita é manipulado pelo farmacêutico do lugar, e Francis demonstra uma melhora extraordinária. Só que, com o passar do tempo, ocorre uma série de mudanças incompatíveis com sua personalidade. O doutor Haberden é convocado e estranha a poção que ele toma, o tal pó branco, envia uma amostra para um amigo analisar. O resultado é que a poção, por ter sido guardada por muito tempo, sofreu uma série de mutações químicas, se transformando em Vinum Sabbati, um líquido que, tomado, "a casa da vida humana desintegrava-se, e a trindade do homem se dissolvia, e o verme que não morre, aquele que dorme dentro de todos nós, era tornado coisa material e externa, revestida com o adorno da carne" (p. 165). Curiosamente, duas das três histórias são narradas por mulheres, o que não era muito comum na literatura dessa época...



AVALIAÇÃO: BOM

(Outubro, 2020)

 

domingo, 18 de outubro de 2020

   Contos reunidos  

Felisberto Hernández (1902-1964) - URUGUAI 

Tradução: Jorge Fallorca  

Lisboa: Oficina do Livro, 2011, 302 páginas



Certa vez, fui convidado para almoçar na casa de uma pessoa, em Berlim. Para minha surpresa, o prato servido foi... feijoada! Acompanhada de caipirinha! Claro, tratava-se de uma gentileza imensa, uma forma extremamente generosa de ser agradável. Acontece que, embora a feijoada contasse com os ingredientes necessários e típicos e a caipirinha contivesse limão e cachaça, nada ali funcionava. Mesmo o feijão tendo sido importado do Brasil, as partes do porco, alemão, eram cortadas e salgadas à moda local. E se para a caipirinha a cachaça obviamente fosse brasileira, não o eram o limão e muito menos o açúcar, produzido a partir da beterraba. Para piorar, lá fora fazia frio e chovia... Essa é a sensação que me provocou a leitura dos nove contos reunidos neste livro: a de que está tudo lá, mas as partes juntas não funcionam... Não consegui alcançar o entusiasmo com o qual o Autor é  incensado. Os relatos são um pouco aquilo que disse no início: eu reconheço e gosto dos ingredientes, mas eles, juntos, não me fascinam, em definitivo. O ponto alto das narrativas, e isso sim é um mérito inegável, e invejável, é a capacidade de o Autor construir imagens poéticas vertiginosas, das quais dou apenas quatro exemplos, mas o livro está repleto delas: "Como estávamos no Inverno, anoitecia rapidamente. Mas as janelas não a tinham visto entrar: tinham ficado distraídas a contemplar a claridade do céu até ao último momento" (p. 91); "Pouco tempo depois comecei a diminuir as corridas pelo teatro e a adoecer de silêncio. Afundava-me em mim mesmo como num pântano" (p. 210); "Eu olhei para a cadeira e não sei porquê pensei que a doença do meu amigo estava sentada nela" (p. 228); "Eu sabia isolar as horas de felicidade e encerrar-me nelas; primeiro, roubava com os olhos qualquer coisa distraída da rua ou do interior das casas e depois levava-as à minha solidão. Gozava tanto a revê-las que se alguém soubesse ter-me-ia odiado" (p. 283).


AVALIAÇÃO: BOM

(Outubro, 2020)

 


sábado, 3 de outubro de 2020

    Biblioteca do Século XXI (1986)

Stanislaw Lem (1921-2006) - POLÔNIA 

Tradução: Teresa Brito 

Lisboa: Estampa, s/d, 156 páginas



Trata-se de pseudo-resenhas sobre três livros inexistentes: "Um minuto da Humanidade", "Sistemas de armamentos do Século XXI, ou A evolução de pernas para o ar" e "O princípio do cataclismo criador, ou O mundo como holocausto". De novo: esqueça o subtítulo "Novelas fantásticas" que acompanha a capa, pois os textos não são novelas e muito menos novelas fantásticas. O Autor, aliás, explica, melhor que ninguém, de forma brilhantemente irônica, o seu propósito: "A maneira mais segura de manter secreta uma ideia insólita mas perfeitamente autêntica é expô-la tal como ela é, e publicar este resumo sob a máscara de uma obra de ficção científica. Da mesma forma que um diamante atirado para um monte de vidro partido se torna invisível, uma autêntica revelação metida entre tolices de literatura fantástica passa despercebida; acaba por se lhe assemelhar, deixando de ser perigosa" (p. 64-65). E o livro é exatamente isso: sob a capa de um narrador que está simplesmente resenhando livros publicados no Século XXI, o Autor desenvolve uma série de reflexões, instigantes por sinal, a respeito da banalidade que se transformou a trágica vida humana na Terra, sobre a estupidez da corrida armamentista, sobre a importância do acaso na origem da vida na Terra. São formulação geniais e profundas, em que sua impressionante erudição não se manifesta em pedantismo, mas em simplicidade. Como, por exemplo, a respeito do arsenal nuclear: "(...) ninguém pode obter uma supremacia militar absoluta. Se é permitido exprimir-mo-nos assim, torna-se impossível distinguir o sucesso do desastre. Numa palavra: a corrida aos armamentos só pode levar a uma vitória à Pirro" (p. 75). Ou esta, trágica e arguta, de que, no Universo, a criação se dá pela destruição - tese que desenvolve na última "resenha": "(...) o mundo é uma série de catástrofes fortuitas regidas por leis rigorosas" (p. 137) ou que "as leis da natureza não agem apesar do acaso, mas através dele" (´p. 154). Um livro necessário e absolutamente contemporâneo numa época em que a "lei de Lem" reina: "ninguém lê o que quer que seja; aquele que apesar de tudo lê não percebe nada; e se percebe depressa trata de esquecer" (p. 10).


AVALIAÇÃO: MUITO BOM

(Outubro, 2020)