domingo, 8 de setembro de 2019


Short cuts - Cenas da vida 
Raymond Carver (1938-1988) - ESTADOS UNIDOS  
Rio de Janeiro: Rocco, 1994, 179 páginas




Este volume, que reúne 10 contos, escolhidos pelo cineasta Robert Altman, retrata excelentemente bem o universo típico do Autor e sua visão de mundo. As histórias contemplam, na maioria das vezes, famílias de classe média, preocupadas com questões bastante concretas, ligadas à sobrevivência mais comezinha. As narrativas flagram momentos singulares de suas vidas cinzentas, ou seja, situações em que a precária estabilidade - financeira, emocional - parece desmoronar. O curioso é que, para o Autor, esses instantes - que James Joyce (1882-1941) chamava de epifanias, termo tomado do vocabulário religioso - não são iluminações que transformam o sujeito, como compreendido pelo Autor irlandês, mas, ao contrário, apenas evidenciam a terrível armadilha ontológica na qual o ser humano está preso. Ou, como afirma Claire, protagonista de "Tanta água tão perto de casa": "(...) certas coisas à nossa volta vão modificar-se, ficar mais fáceis ou mais difíceis (...), mas nada vai ser realmente diferente, nunca mais. (...) Tomamos nossas decisões, pusemos nossas vidas em movimento, e elas vão seguir e seguir adiante até parar. (...) até que um dia acontece uma coisa que deveria modificar alguma coisa, mas aí a gente vê que no final nada vai mudar" (p. 88). Essa verdade, talvez, seja ainda mais terrível, porque, vista desta maneira - e todos os contos projetam esse ponto de vista - é como se estivéssemos vivendo uma vida inautêntica, como se fôssemos meros atores  representando papéis previamente escritos por outro - Deus? O Destino? Assim, o que resta de felicidade é a idealização de um passado, como no conto "Jerry, Molly e Sam": "Al gostaria de poder ir em frente, dirigindo o carro sem parar, a noite inteira, até que fosse sair nos paralelepípedos da velha rua principal de Toppenish, virar à esquerda no primeiro sinal, depois virar à esquerda de novo, parar quando chegasse ao lugar onde sua mãe vivia, e nunca, nunca mais, por nenhuma razão no mundo, sair de lá outra vez" (p. 144). As soluções dadas para essas vidas apagadas podem parecer, numa primeira visada, positivas, pois à exceção de um conto - "Diga às mulheres que a gente já vai" - ocorre, após a crise, uma rearrumação das coisas, portanto, não há rupturas. Mas trata-se de uma falsa premissa - é como numa tempestade: depois que passa, constatamos que a paisagem permanece a mesma, mas no fundo sabemos que não é verdade. Houve mudanças substantivas na essência, embora a aparência continue a mesma. E, neste caso, nem mesmo a morte é solução, já que, como afirma Howard Sears, de "Limonada": "(...) morrer é para os puros (...)" (p. 177). 





Avaliação: OBRA-PRIMA

(Setembro, 2019)

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

A aranha negra (1842) 
Jeremias Gotthelf (1797-1854) SUÍÇA    
São Paulo: Editora 34, 2017, 167 páginas





Durante as festividades de um batizado, um homem relembra, para os convidados, um episódio ocorrido há mais de 400 anos na aldeia em que vivem, Sumiswald, nos Alpes suíços. Hans von Stoffeln, da Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, senhor daquelas terras, age de forma tirânica com relação a seus súditos. Um dia, ele resolve construir num novo castelo, em local ermo, e exige, por capricho, que os camponeses transplantem, em um mês, cem faias (um tipo de árvore) de uma montanha próxima, para sombrear o caminho que levava à aldeia. Trata-se de um trabalho impossível, mas von Stoffeln não admite perder a aposta que fizera com os outros cavaleiros que dividem com ele  a sua morada, sob a ameça de, se não cumprida a tarefa, "açoitá-los até que não se veja mais um centímetro de suas peles, e aos cachorros jogo as mulheres e crianças" (p. 43). Então, durante as discussões sobre como levariam a efeito aquela missão insana, surge diante dos camponeses um "caçador vestido de verde", "sobre a boina atrevida balançava uma pena vermelha, no rosto escuro flamejava uma barbicha também rubra e entre o nariz recurvado e o queixo proeminente, quase invisível como uma caverna sob rochas amontoadas, (...) uma boca" (p. 44), ou seja, o próprio Diabo, que se propõe a realizar, por eles, o serviço, em troca de um bebê não batizado. Os camponeses refutam a ideia e tentam realizar o encargo sozinhos, sem sucesso. Cristina, uma "estrangeira" (era alemã, da Bavária), vai ao encontro do Diabo e, em nome dos aldeãos, aceita a oferta, pensando, ao fim, poder ludibriá-lo. E assim ocorre. O Diabo transplanta as cem faias para o castelo e vem exigir a contrapartida. mas os camponeses conseguem enganá-lo, batizando os bebês assim que as mães dão à luz. Então, Cristina é amaldiçoada e se transforma numa enorme aranha negra que com seu veneno dizima a população, desde os camponeses até os cavalheiros do castelo. Ao fim, quando restam poucos moradores na aldeia, a aranha dirige-se à casa onde havia um recém-nascido, ainda pagão. Disposta a tudo para proteger o bebê, a jovem mãe prepara uma armadilha - "Ela abriu um orifício na ombreira da janela (...) providenciou um botoque [uma espécie de rolha] que vedava bem o orifício, consagrou-o com água benta, colocou um martelo ao lado (...)'' (p. 97), e, com essa artimanha, consegue capturar a aranha, e então "a morte negra chegou ao fim" (p. 99). Os habitantes daquela região, camponeses e cavaleiros, mudam seu comportamento, "apegavam-se a Deus e fugiam do Diabo" (p. 103). Mas o tempo passa e pouco a pouco, quase duzentos anos depois, eles entregam-se de novo à devassidão. Numa festa orgíaca, um servo, "num acesso de desvario" (p. 114), liberta a aranha negra e tudo recomeça, agora com muito mais mortandade. Até que Cristiano, um descendente daquela jovem mulher que havia capturado antes a aranha, consegue aprisioná-la outra vez. Impressionante alegoria sobre a peste negra, que devastou aquela região nos séculos XIII e XV, traz ainda uma mensagem muitíssimo adequada aos dias que correm, particularmente no Brasil: quando fazemos um pacto com o Diabo, não adiantar tentar fugir à nossa responsabilidade, ele virá cobrar a sua parte, e todos sabemos que o Diabo cobra caríssimo...





Entre aspas

"(...) a culpa por uma única alma pesa mil vezes mais do que a salvação de milhares e milhares de vidas humanas". (pág. 57)


Avaliação: MUITO BOM


(Setembro, 2019)

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Contos da montanha (1941) 
Miguel Torga (1907-1995) - PORTUGAL   
Coimbra: Edição do Autor, 2014, 328 páginas





Este livro reúne 23 contos, que, ao fim e ao cabo, pertencem a um subgênero narrativo que não me agrada ou pelo menos não me fascina, a do conto anedótico, ou, talvez, possamos chamar de caso. À anedota, ou caso, pouco importa a complexidade dos personagens,  em geral rasos, mas sim o desfecho do que vai contado. Por isso, a história desenvolve-se em linguagem simples (por vezes, apelando a regionalismos e localismos, para conseguir maior efeito de veracidade), e com um final fechado, para que não restem dúvidas a respeito do sentido do enredo. A estrutura lembra um pouco a do soneto com chave de ouro, em que todos os versos são construídos com a única finalidade de exibir uma forte imagem derradeira. Se são bem escritos - e são - os contos no entanto são previsíveis e não oferecem ao leitor nenhum desafio, de qualquer natureza. Os personagens - na verdade, tipos das montanhas do norte de Portugal - comportam-se como uma espécie de títeres nas mãos do Autor e deles não esperamos nada mais do que cumpram o papel previamente destinado a eles.


Avaliação: BOM


(Setembro, 2019)

domingo, 1 de setembro de 2019

Memórias de um oficial da infantaria (1930) 
Siegfried Sassoon (1886-1967) - INGLATERRA  
Tradução de Luís Reyes Gil    
São Paulo: Mundaréu, 2014, 328 páginas






Romance autobiográfico, narra a história de George Sherston, um jovem aristocrata inglês que, entusiasmado, alista-se como voluntário nas forças expedicionárias britânicas logo após declarada a guerra contra a aliança Alemanha-Império Austro-Húngaro, em agosto de 1915, "'por três anos ou pela duração'" (p. 148), com o o objetivo explícito de ser "apenas uma tentativa de mostrar o efeito que ela [a guerra] teve num homem jovem, de mente um pouco solitária" (p. 29). O livro pouco retrata a vida no front - embora haja algumas cenas transcorridas durante as batalhas de Somme e de Arras, em 1916 e 1917, respectivamente -, porém o que importa ao narrador não é expor as cruezas da vida nas trincheiras, mas revelar uma outra luta, esta, interior, talvez até mais complexa, que é sua transformação, pouco a pouco, de um dedicado oficial, seguro de estar do lado certo naquela guerra, para um opositor ferrenho e um denunciador das atrocidades provocadas pelo jogo hipócrita e injusto dos detentores de poder. Sherston passa mais tempo em hospitais de recuperação que nos campos de batalha - ele é ferido na garganta na batalha de Somme, e, sete meses depois, uma bala atravessa seu omoplata, na batalha de Arras, voltando, em ambas as ocasiões, para se tratar em hospitais na Inglaterra. E é nestes momentos de convalescença que começa a refletir sobre o que representa o conflito e a quem ele interessa. Se no início ainda descreve a guerra liricamente, como "ela poderia ser vislumbrada pela mente de algum poeta épico daqui a cem anos" (p. 124), mais tarde descobre, frustrado, que ela estava "sendo desnecessariamente prolongada por aqueles que tinham o poder de decretar seu fim" (p. 299). E se pergunta: "Será que a guerra precisaria continuar para que os coronéis pudessem se tornar brigadeiros e os brigadeiros obter divisões, enquanto fornecedores enriqueciam e as pessoas em alta posições comiam e bebiam muito bem e espalhavam boatos sobre informações oficiais e organizavam entretenimento para os feridos?" (p. 306). Por fim, resolve escrever uma carta em que evidencia o engano a que todos estavam sendo submetidos: "Acredito que essa guerra, na qual ingressei como uma guerra de defesa e libertação, tornou-se agora uma guerra de agressão e conquista" (p. 11). Por conta dessa sua posição, considerada antipatriótica e traidora, é internado num hospital psiquiátrico - alternativa encontrada ao risco de enfrentar a prisão ou até mesmo a corte marcial. Romance humanista, e, por consequência, pacifista, o livro tem como ponto alto a absoluta sinceridade do protagonista, que não tem pejo de mostrar-se inseguro e contraditório e também de ressaltar que, por ser membro da elite britânica, tinha privilégios vetados aos soldados de famílias pobres, que simplesmente eram transportados para o front para serem massacrados. 




Entre aspas :

"(...) a vida, para a maior parte da população, é uma luta antipática contra ocorrências injustas, culminando em um funeral barato". (pág. 211)

"Em tempos de guerra, a palavra 'patriotismo' é apenas sinônimo de supressão da verdade". (pág. 273)



Avaliação: MUITO BOM


(Setembro, 2019)