domingo, 16 de junho de 2019

Garman & Worse (1880)
Alexander Kielland (1849-1906) NORUEGA
Tradução de João Reis
Lisboa: Cavalo de Ferro, 2017, 230 páginas


Uma grata surpresa, esse romance. O Autor consegue instilar vida a cada um dos personagens - e são muitos! -, e, ao mesmo tempo, traçar um painel bastante complexo de uma pequena vila - Sandsgaard - situada no litoral da Noruega, dominada por uma família, os Garman. E, fazendo isso com absoluta competência, descreve a sociedade ocidental no momento mesmo em que o capitalismo vai se transformando e ampliando seus interesses - e modificando os costumes.  O título, aliás, é um achado, já que, ao invés de Os Garman (que seria o mais correto, já que retrata um período da existência apenas deste núcleo familiar), o Autor preferiu nomeá-lo como uma firma - mantido apenas por tradição, pois os Worse originais não possuíam mais nenhuma ação da empresa. Aliás, tradição e modernidade talvez seja o  verdadeiro pano de fundo desta história. Christian Fredrick, filho de Morten W. Garman, fundador da Garman & Worse, toca os negócios pesqueiros do pai com uma devoção quase religiosa. Seu filho, que também se chama Morten, entra em choque com o pai, tentando introduzir novas ideias, sem grandes sucessos - ele é casado com Fanny, uma belíssima e fútil mulher, que o trai com George Delphin, assessor do governador da comuna e pai de Fanny. Christian tem outros dois filhos, Gabriel, que convence, afinal, o pai a ir estudar em Dresden (Alemanha) para assumir os negócios junto com o irmão Morten, e a rebelde Rachel, símbolo da luta das mulheres pela emancipação feminina. Ainda no núcleo familiar, há o outro filho do fundador da empresa, Richard, que gastou sua parte da fortuna em Paris, e sua filha, Madeleine, fruto de uma relação casual com uma francesa. Este núcleo funciona quase como representando faces da mesma moeda, de um lado tradição, de outro, modernidade (Christian Fredrick x Morten, Rachel x Madeleine), mas também de vida sem razão e vida com algum objetivo (Richard x Christian Fredrick, Morten x Gabriel, Fanny x Rachel). Abaixo da superfície da história, vamos descobrindo, sutilmente, outros fios, que mostram ligações escusas entre Christian Fredrick e a governanta, Jomfru Cordsen; entre Morten e Marianne, uma moça pobre, filha do velho Anders Bergmand, cujo filho Martin vai precipitar o fecho da história, pondo fogo no depósito da firma Garman & Worse e provocando a morte de Morten, de um ataque cardíaco. Assim, Delphin vai embora e Fanny tenta reatar o casamento de fachada com o marido indo passar uma temporada em Carlsbad (Alemanha). Rachel, após seis anos em Paris, onde, além de trabalhar, torna-se sócia de uma empresa inglesa, volta e propõe (ousadamente para a época) casamento com Jacob Worse, neto do Worse fundador da empresa, que, sem dinheiro, vive com a mãe dos negócios de um armazém. Madeleine, a personagem mais interessante do romance, única que percebe que, para além da superfície daquela tranquila vida burguesa, havia corrupção, traição e mentira, acaba casando-se com o pastor Martens, que a submete e a torna uma infeliz esposa, mãe de três filhos. O resumo do livro poderia ser esta fala do pastor Martens: "Quanta esperança vã parte com a bandeira desfraldada, para ser miseravelmente despedaçada nas tempestades da vida! Mas reparem! Aquilo que foi destruído pela tempestade foi transformado por mãos humildes num novo local de habitação. Assim surge a vida da morte, o conforto da desolação e a felicidade das esperanças desfeitas, e assim toda a nossa vida pode não passar de um aproveitamento de meros destroços!" (p. 230). Terrível constatação!


Entre aspas: 


"O vento a favor é, ainda que numa tempestade, preferível a uma acalmia". (pág. 129)


Avaliação: MUITO BOM


(Junho, 2019)

domingo, 9 de junho de 2019

Uma vida à sua frente (1975)
Romain Gary (1914-1980- FRANÇA
Tradução de  Joana Cabral  
Porto: Sextante 2011, 181 páginas


Estamos em 1970, em Paris. Mohammed Kadir tem catorze anos e desde os três mora com madame Rosa, uma prostituta aposentada, sobrevivente do campo de extermínio de Auschwitz, num prédio da rue Bisson, no bairro pobre de Belleville. Este livro é isso: a comovente história de amor que une o adolescente árabe, abandonado pelos parentes, após o pai, um proxeneta, matar a mãe, Aïcha, uma prostituta, e a velha judia, de sessenta e cinco anos, obesa, e que pouco a pouco vai perdendo a memória para o Alzheimer. O livro, narrado em primeira pessoa por Momo, apelido de Mohammed, emula a linguagem cheia de gírias dos deserdados da sociedade (negros africanos, árabes e judeus, que povoam aquela parte da cidade), construindo personagens inesquecíveis em sua autenticidade. Além de madame Rosa, que, nascida na Polônia, "defendeu-se em Marrocos e na Argélia durante anos" (p. 9) e por isso sabia falar árabe, e que sobrevive cuidando dos filhos das prostitutas, usando documentos falsos para eles não serem deportados ou enviados para a Assistência Social, desfilam pelas páginas do romance outros seres arrebatadores. O senhor Hamil, um vendedor de tapetes que ama a poesia de Victor Hugo, e que percorre trajetória paralela à de Madame Rosa em seu processo de envelhecimento; Madame Lola, uma travesti, ex-campeão de pesos pesados de boxe no Senegal, que "defende-se" no Bois de Boulogne; os irmãos Zaoum; o senhor Waloumba e seus irmãos camaroneses; o compreensivo médico judeu doutor Katz; o jovem casal francês, doutor Ramon e madame Nadime, que acaba por se interessar pela história de Momo e torna-se uma espécie de fiador de suas memórias. Há cenas impressionantes, como a da conversa entre madame Rosa e o pai de Momo, na qual a velha mente para o muçulmano que criou o filho deixado por ele como judeu, o que acaba matando-o de desgosto (numa vingança por ele ter assassinado a mãe de Momo) (p. 125-139); a disputa do padre André e do rabino pela alma de madame Rosa (p. 156); ou a vigília de Momo no esconderijo para o qual leva madame Rosa, em agonia, para preservá-la de ser mantida viva por aparelhos, o que ela, em definitivo não queria (p. 173 até o final). Uma grande história, que mostra uma Paris não turística que raramente aparece na ficção francesa.



Entre aspas: 


"É sempre nos olhos que as pessoas estão mais tristes" (pág. 28)
"(...) somos todos iguais quando estamos na merda (...)" (pág. 35)
"(...) os pesadelos são o que acontece com os sonhos quando envelhecem" (pág. 45)"



Curiosidades:

O Brasil é citado duas vezes neste romance. Quando o pai de Momo, Youssef Kadir, explica para madame Rosa que não a procurara antes por não saber o endereço, ele afirma: "O tio de Aïcha ficou com o recibo no Brasil" (p. 129). Depois, num discurso confuso para madame Rosa, Momo diz: "Madame Rosa, na América, têm todos os recordes do mundo, são grandes desportistas. Em França, no Olímpico de Marselha, são só estrangeiros. Até têm brasileiros e não sei que mais". (p. 153). 





Avaliação: MUITO BOM



(Junho, 2019)

quarta-feira, 5 de junho de 2019

O Leviatã (1940)
Joseph Roth (1894-1939UCRÂNIA 
Tradução de  Álvaro Gonçalves 
Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, 75 páginas




Novela publicada postumamente, nela o Autor constrói uma fábula, que tem como, digamos assim, uma espécie de moral. Nissen Piczenik é um negociante de corais, numa desimportante cidade dos confins do Império Austro-Húngaro, Progrody. Conhecido de seus clientes, camponeses pobres e burgueses ricos dos arredores, vive sua vida, casado com uma mulher a quem é indiferente, e cumprindo seus deveres religiosos, sem maiores aspirações. Até que um dia chega à cidade, de férias, o jovem marinheiro Komrower. Nissen Piczenik, então, transforma-se, encantado com a ideia de que os corais que comercializa, muito mais que simples objetos destinados a satisfazer a vaidade das pessoas, são animais com vida própria. Então, acompanha Komrower até Odessa, ele, que nunca havia posto os pés fora da aldeia. Lá, passa três semanas de fascínio, observando o mar, que imaginava mas nunca tinha visto, e especulando sobre lugares desconhecidos. Quando volta a Progrody, descobre que em uma cidade próxima, Sutschky, um comerciante vindo de Budapeste, Janö Lakatos, está vendendo corais a preços absurdamente baixos, roubando sua clientela. Ele vai ao encontro de Lakatos e entende que os corais são falsos, feitos de plástico, e, obcecado com a possibilidade de ampliar seus lucros, aceita a proposta do concorrente, torna-se sócio deste, misturando corais verdadeiros e falsos. Só que uma epidemia de cólera assola a região e as pessoas culpam os corais de Nissen Piczernik de não protegê-las e ele arruína-se. A mulher morre, ele compra uma passagem para imigrar, clandestinamente, para o Canadá, mas no trajeto o navio afunda e ele sucumbe. A moral da fábula: "É assim que acontece às pessoas que são seduzidas pelo diabo: com tudo o que têm de diabólico, excedem até o próprio diabo" (p. 66).



Avaliação: BOM 



(Junho, 2019)


terça-feira, 4 de junho de 2019

A flagelação das bolsinhas de camurça /
Um outro Kratki-Baschik (1959)
Heimito von Doderer (1896-1966- ÁUSTRIA 
Tradução de José A. Palma Caetano
Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, 61 páginas



Reunião de dois contos, "A flagelação das bolsinhas de camurça" e "Um outro Kratki-Baschik", trata-se de narrativas episódicas ou anedóticas, algo que quase sempre não me agrada. São histórias cujo objetivo único é explicitar algo, estranho, insólito ou incomum, que cause no leitor uma surpresa passageira. O primeiro, o caso de um homem que, pensando estar enganando um amigo, rico e avaro, está sendo por ele enganado; o segundo, o caso de um mágico que surge na noite, apresenta um número singular, e desencadeia um resultado inesperado. 




Avaliação: NÃO GOSTEI

Entre aspas: 


"As grandes artes não se aprendem para qualquer finalidade especial. (...) A finalidade mata a arte". (pág. 57)


(Junho, 2019)