terça-feira, 29 de dezembro de 2020

 História do Dr. Johann Fausto (1587)

Anônimo -  ALEMANHA  

Tradutora: Magali Moura  

São Paulo: Filocalia, 2019, 272 páginas




Primeira compilação das aventuras desse que se tornaria figura emblemática do imaginário ocidental: Fausto, o que vendeu seu corpo e sua alma ao Diabo, por meio de um pacto de sangue. Baseado em um personagem real, que teria vivido entre o final do século XV e o início do século XVI, em itinerância como mago, astrólogo e alquimista pelas regiões da Alta Saxônia e Baviera, coube ao tipógrafo Johann Spies compor esse primeiro livro, certamente recolhido das histórias que já corriam na boca do povo. Fausto, interessado em viver no luxo e na luxúria, sem precisar se esforçar para isso, aceita assinar um documento, que, por um lado, coloca à sua disposição um "servo do infernal Príncipe do Oriente", um espírito chamado Mefostófiles, responsável por tornar realidade qualquer desejo seu, por outro aceita, passados 24 anos, "dispor de mim, se apoderar, reger, conduzir todo meu corpo, alma, carne, sangue e bens e assim até a eternidade" (p. 38). A partir daí, Fausto passa a fazer cumprir seus caprichos, que vão desde fazer aparecer a seus amigos Helena de Troia, que aliás se torna sua concubina, até instalar-se para beber na adega do bispo de Salzburgo, passando por sobrevoos a cidades mundo afora e demonstrações de magia e encantamento e enganações. Quando chega o fim do contrato, ele deixa para Wagner, um seguidor a quem trata como filho, a sua casa com jardim em Wittenberg, e mais "1.600 florins em cartas de crédito, uma propriedade rural no valor de 800 florins, 600 florins em dinheiro vivo, uma corrente de ouro no valor de 300 coroas e talheres de prata que trouxera de várias cortes (...) que valiam cerca de 1.000 florins" (p. 180), além de um "espírito", na forma de um "macaco de estatura bem grande" (p. 182). Quando chega a hora de partir, Fausto lamenta e se angustia e se arrepende por morrer tão jovem e cheio de saúde, e de forma tão trágica: seus amigos encontram seu corpo "junto ao esterco, (...) a cabeça e todos os seus membros pendiam esquartejados" (p. 197). A destacar o belíssimo trabalho elucidativo de Magali Moura, nas inúmeras notas de rodapé e extenso e erudito posfácio.


 Avaliação: MUITO BOM

(Dezembro, 2020)


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

  O dia do gafanhoto e outras histórias (1939)

Nathaniel West (1903-1940) -  ESTADOS UNIDOS  

Tradutor: Alcebíades Diniz 

São Paulo: Carambaia, 2015,  341 páginas


Este romance, que busca retratar os Estados Unidos sob a Depressão, escolhe um ambiente bastante propício: Hollywood, lugar para onde convergem todos os sonhos. Tod Hackett é um pintor que vive de criar cenários e figurinos para filmes - e, embora frustrado e intimamente sabendo que nunca se tornará o artista que imaginava, mantém-se auto-iludido em suas expectativas. Homer Simpson vem de uma pequena cidade de Iowa, onde, após anos trabalhando como contador de um hotel, acumulou dinheiro suficiente para se instalar ali para se curar de uma pneumonia. E finalmente Faye Greener, jovem candidata ao estrelato, filha de um vendedor ambulante, ex-palhaço e figurante. Faye é ambiciosa e manipuladora, mas sem nenhum talento. A história gira em torno desse trio: Homer, apaixonado platonicamente por Faye, resolve adotá-la e investir em sua carreira - e para isso não mede esforços, nem financeiros, nem de autoestima. Faye, vulgar e interesseira, o despreza e flerta com todos aqueles que julga que poderão ajudá-la a brilhar no mundo do cinema. O livro se desdobra em episódios corriqueiros, nos quais os personagens se movimentam e tomam forma, até o epílogo, quando Homer, fora de si, comete um crime hediondo, no meio de uma grande confusão provocada pela estreia de um filme, na qual os atores, conhecidíssimos, irão comparecer. Aliás, essa cena magistral, apocalíptica, e duas outras, o surreal e hilário passeio de Tod por sets de filmagem, quando esbarra em figurantes saídos de diversos filmes de diferentes épocas (capítulo 18), e a briga de galos (capítulo 21), demonstram a grandeza do Autor. (O olhar interessado mas indiferente de Tod Hackett me lembrou muito Nick Carraway, o narrador de O grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, publicado em 1925).

 

Avaliação: BOM 

(Dezembro, 2020)



sábado, 12 de dezembro de 2020

 A inocência do Padre Brown (1911)

G. K. Chesterton (1874-1936) -  INGLATERRA 

Tradutor: Carlos Nougué 

Rio de Janeiro: Sociedade Chesterton Brasil;

Porto Alegre: Instituto Cultural Hugo de São Vitor, 2017,  303 páginas


Reunião de doze contos, tendo sempre como protagonista o Padre Brown, um dos mais insólitos personagens-detetives da história da literatura - e aqui cabe o rótulo de "policial", porque os enredos giram em torno do desvendamento de um crime. Padre Brown, sacerdote católico, muito baixo, "tinha a cara redonda e insípida como um pudim de Norfolk; olhos tão vazios como o Mar do Norte" (p. 40), enfim, "a essência mesmo" das pessoas simplórias. Como todo bom detetive diletante, ele encontra-se sempre acompanhado de um detetive particular de verdade, o francês Hercule Flambeau, um ex-criminoso - "rei dos ladrões e a mais famosa figura de Paris" (p. 198) - convertido pelo Padre Brown (em "As estrelas fugazes"). Padre Brown usa sua imensa capacidade de observação e dedução para descobrir os responsáveis pelos assassinatos ocorridos nos lugares por onde ambos passam - aliás, é este o ponto fraco das narrativas, que se tornam inverossímeis pelas inúmeras coincidências. Escrevo aqui o que escrevi quando resenhei O olho de Apolo (conto, aliás, também presente neste volume), em 13 de fevereiro de 2018: trata-se apenas de interessantes desafios racionais.


 

Entre aspas:


"(...) há na vida um elemento de conto de fadas que as pessoas, contando só com o prosaico, nunca percebem" (pág. 41)

"A alegria sem senso de humor é algo muito desagradável" (pág. 292)

 

Curiosidade:

O Brasil aparece à página 45, estranhamente como produtor de nozes: "Sobre o monte das nozes havia um pedaço de papelão em que estava escrito com claro giz azul: (...) "'As mais finas nozes do Brasil, quatro por uma libra'"...

E o conto "O sinal da espada partida" tem o Brasil como essencial para o desdobramento da história - onde aparece até mesmo um herói, presidente do país, chamado Oliveira...


Avaliação: BOM 

(Dezembro, 2020)



sábado, 5 de dezembro de 2020

 A história de Mildred Pierce  (1941)

James M. CAIN (1892-1977) - ESTADOS UNIDOS 

Tradutor: Celso Nogueira 

São Paulo: Companhia das Letras, 2008, 320 páginas



A Literatura - com ele maiúsculo - definitivamente não só prescinde de adjetivos, mas, e talvez principalmente, prejudica-se quando o mercado, ou a moda, ou as circunstâncias, o atrelam a eles. Este livro, publicado numa coleção de literatura policial, é exemplo gritante disso. Porque o Autor, em algum momento, carimbaram-no como "policial", alguém resolveu mantê-lo circunscrito a esse nicho. Agora, quando acabamos de ler este romance, sabemos que o público foi duplamente logrado: aqueles que buscam na narrativa os elementos clássicos do gênero - assassinato, detetive, solução do crime - não os encontrarão e sairão frustrados; aqueles que buscam literatura de qualidade e que torcem o nariz para esse tipo de enredo, em geral, mas nem sempre, superficial e ligeiro, perderão a oportunidade de desfrutar de uma obra-prima da história da literatura ocidental. Poucas vezes o leitor mais exigente vai se deparar com personagens tão fascinantes como a que dá título à obra e sua filha, Veda. Estamos em pleno período da Depressão, ou seja, os conturbados anos 1930, e o cenário é a pequena Glendale, um subúrbio na região de Los Angeles. Mildred, casada com Bert Pierce, é uma pacata dona de casa que usufruiu dos bons tempos, quando o mundo parecia renascer depois dos tenebrosos anos que se seguiram à I Guerra Mundial. Mas, com o crash da Bolsa de Nova York, Bert perde tudo que havia conquistado com os empreendimentos imobiliários que mantinha sob o nome de Pierce Inc. À derrocada financeira segue-se a pessoal: sua mulher, Mildred, o expulsa de casa, ao descobrir que ele tem uma amante, Maggie Biederhof. Bert deixa a confortável casa e o carro para a mulher, que sozinha terá que cuidar das duas filhas, Veda e Ray. Para ganhar algum dinheiro, Mildred tenta se empregar como empregada doméstica e governanta, mas acaba rejeitando a ideia, por orgulho e receio de causar humilhação nas filhas. Afinal, aconselhada pela amiga e vizinha, Sra. Gessler, aceita emprego de garçonete num restaurante em Hollywood. Ali, descobre que poderia faturar mais dinheiro vendendo tortas que fazia em casa. Inicialmente, fornece-as para o restaurante onde trabalha e para moradores de Glendale, mas depois, acatando sugestão de um ex-amigo de Bert, Wally Burgan, ela resolve abrir seu próprio negócio. Poucos dias antes da inauguração, ela conhece Monty Beragon, descendente dos primeiros colonizadores da Califórnia, que vive da renda proporcionada pelas ações de uma empresa de exportação de frutas - e também perde sua filha mais nova, Ray (os capítulos 7 e 8, que narram a agonia e a morte de Ray conformam algumas das páginas mais tristes que já li). Abalada, entretanto Mildred tem que tocar a vida e agarra-se à filha mais velha, Veda, que, desde criança, mostrava-se egocêntrica, petulante e cruel. Enfim, os negócios de Mildred engrenam: ela abre filiais de seus restaurantes e aposta no pretenso talento de Veda para o piano. Enquanto a mãe se esgota de manhã à noite, Veda frequenta as altas rodas da burguesia de Pasadena acompanhando Monty. Após a morte de seu tutor musical, Veda procura outro, o famoso Sr. Treviso, que revela a ela - e a Mildred - que não possui nenhum talento para o piano. Veda entra em crise, rompe com a mãe - a relação entre as duas é tensa, a mãe eivada de culpas, a filha, cheia de acusações -, muda-se para Hollywood e descobre-se cantora - uma grande cantora, uma "coloratura", como a denomina Sr. Treviso, que revela seu real talento. Enquanto os negócios de Mildred avançam, os de Monty naufragam - ele passa a viver em um quarto minúsculo numa mansão em decadência - e eles se separam. Mildred procura reaproximar-se de Veda, sem sucesso, até que lhe vem uma ideia: casar-se com Monty, comprar sua mansão, e oferecer a Veda a vida de glamour, luxo e ostentação que ela tanto almeja. Para realizar seu projeto, endivida-se. E aí começa a sua própria derrocada: ela não consegue cumprir suas obrigações e os credores passam a pressioná-la. Ela perde tudo, inclusive Veda, que, descobre, tem um caso com Monty e com ele foge para Nova York para dedicar-se à sua carreira musical. Falida, Mildred casa-se novamente com Bert, que manteve-se sempre ao seu lado, e recomeça tudo de novo, vendendo tortas para a vizinhança. O livro pode ser assim resumido: Mildred "sentia medo de Veda, de seu esnobismo, de seu desprezo, de seu espírito inquebrantável. E temia algo que ocultava sempre sob a falsa sofisticação de Veda: um desejo frio, cruel e vulgar de torturar a mãe, de  humilhá-la e, acima de tudo, de magoá-la. Mildred ansiava desesperadamente pelo carinho da filha (...) mas só recebia dela uma contrafação afetada, teatral. Tinha que aceitar esse prêmio de consolação, tentando não vê-la como realmente era" (p. 97). Uma história magnífica!


 Entre aspas:

"(...) os cínicos são cínicos demais para sonhar" (pág. 183)

 

Avaliação: OBRA-PRIMA 

(Dezembro, 2020)


segunda-feira, 30 de novembro de 2020

 Crônicas da guerra na Itália (1945-1985)

Rubem BRAGA (1913-1990) - BRASIL

Rio de Janeiro: Record, 2014, 405 páginas




Já tive ocasião de escrever aqui, numa postagem de 19 de fevereiro de 2019, que "Rubem Braga é um Autor inclassificável", por ter criado um gênero singular, "que não é crônica, que não é conto, que não é poema em prosa": "um texto único, profundo, lírico, atemporal, que nos arrebata e comove, sem nunca ser piegas". Para mim, Rubem Braga é um dos maiores nomes da literatura brasileira e esta reunião de crônicas, publicada originalmente em 1945, e acrescida de outros textos de temas afins, prova isso. São relatos de um correspondente de guerra, que acompanha o dia a dia de avanços e recuos da tropa brasileira, cerca de 26 mil soldados vivendo a fase final do confronto na região dos Montes Apeninos, na Itália. Coletando pequenos episódios, descrevendo a natureza às vezes rude, mas sempre bela, e listando encontros e desencontros, o Autor compõe uma narrativa vivaz e comovente, realista e lírica ao mesmo tempo, do que foi aquele momento na vida dos pracinhas brasileiros. São textos escritos para o extinto Diário Carioca - como são extintos hoje quase todos os nossos jornais - mas que mantêm um calor que consegue nos presentificar o passado, como se estivéssemos acompanhando in loco os acontecimentos... 


Curiosidade:

Como não poderia deixar de ser, Cataguases está presente também nesse livro. Na página 162, encontramos uma lista de soldados que receberam elogios formais de seus superiores: "O soldado Antero Batista (de Cataguases, Minas) também foi elogiado e promovido a cabo. Em sua terra natal, trabalhava como enrolador (eletricista)".


 Entre aspas:

"O fascismo é uma  praga difícil de exterminar. É o preço que os povos pagam pela própria desídia. É a defesa frenética dos privilegiados. E contra ele só há um remédio verdadeiro: conquistar e manter a todo custo a liberdade do homem, e só há liberdade entre os homens quando cada um vale pelo seu trabalho - e não pelo seu nascimento nem pelos seus privilégios"  (pág. 166).



Avaliação: MUITO BOM

(Novembro, 2020)


domingo, 22 de novembro de 2020

 Ressurreição (1899)

Liev TOLSTÓI (1818-1910) - RÚSSIA

Tradutor: Rubens Figueiredo

São Paulo: Companhia das Letras, 2020, 444 páginas



Eu rechaço as narrativas de tese - não acho que o espaço do romance seja o lugar adequado para a defesa de ideias pré-concebidas, mais apropriadas a tratados de sociologia, política, antropologia, etc. E este é um romance de tese: o relato dos três meses em que o príncipe Dmítri Ivánovitch Nekhliúdov, herdeiro de grandes extensões de terra, passa por uma radical transformação, de aristocrata alienado a crítico contundente da situação sócio-econômico-política da Rússia,  um país em ebulição no final do século XIX. Mas trata-se de um Autor tão grandioso que, mesmo defendendo teses, consegue arrebatar o leitor e conduzi-lo até à última página, com a maestria que só os gênios possuem. O príncipe Nekhliúdov mora em Moscou e é convocado para participar de um júri. Quando lá chega descobre, surpreso, que a ré, Ekatierina Mikháilova Máslova, prostituta e alcoólatra, acusada de, em conluio com duas outras pessoas, ter seduzido, envenenado e roubado um comerciante, é a mesma Katiucha da sua juventude, agregada na casa de suas tias ricas, a quem molestou, engravidou e abandonou - desencadeando sua derrocada. O júri conclui que Katiucha é inocente, mas, por um erro de redação da sentença, ela é condenada a trabalhos forçados na Sibéria. Sentindo-se responsável pelo descaminho de Katiucha, Nekhliúdov tem uma crise de consciência e resolve fazer de tudo para tentar corrigir aquele erro do passado, não só lutando para reverter a sentença, como se propondo até mesmo a casar com ela. Quando ele comunica suas pretensões, ela o repele, argumentando, com nojo: "Você me usou para se regalar à vontade neste mundo, agora quer me usar para se salvar no outro mundo" (p. 172). Mas o príncipe, determinado a ajudá-la, usa sua posição social e política para persuadir as autoridades a anular a condenação, enquanto frequenta a prisão para tentar convencer Katiucha da justeza das suas intenções. É então que conhece os horrores dos sistemas jurídico e prisional da Rússia, em franco contraste com a vida de luxo, vulgaridade e hipocrisia que grassa no meio aristocrático. Torna-se, então, ardoroso defensor de outros apenados, vítimas de detenções arbitrárias, condenações absurdas, violações de direitos, e vítimas também das próprias condições das cadeias superlotadas, imundas, promíscuas, guardadas por policiais corruptos e assediadas pelas doenças - o mais impressionante é a presença de mulheres e crianças que voluntariamente são encarcerados para acompanhar os familiares. Nekhliúdov conclui que "(...) o tribunal não só inútil, mas imoral" (p. 134), sendo "(...) apenas um instrumento administrativo para a manutenção do estado de coisas vigentes, vantajoso para a nossa classe" (p. 322). Pouco a pouco, o príncipe resolve tomar decisões radicais, como dispor de suas terras, que, de acordo com suas ideias, não podem pertencer a ninguém, e sim devem ser exploradas coletivamente e a riqueza produzida usufruída pelos que nela trabalham. Por meio de suborno, Nekhliúdov consegue tornar a vida de Katiucha menos ruim na cadeia, obtendo a transferência dela, na longa jornada de Moscou até a Sibéria, do grupo de presos comuns para o de presos políticos, que, embora não recebam melhor tratamento, mantêm-se mais organizados. O príncipe acompanha o cortejo para garantir um bom tratamento a Katiucha e também para provar que são sérias suas intenções matrimoniais. Só que ela, convivendo com os presos políticos, vai tomando consciência de seu destino - e, mesmo recebendo a notícia da anulação de sua sentença, ela resolve permanecer com o grupo na Sibéria, aceitando a proposta de casamento feita por um dos presos políticos, Símonson. Ao final, Nekhliúdov chega à conclusão de que não basta reformar as prisões, ou dividir as terras, ou mudar o governo: a única saída possível para a Rússia - para o ser humano - é a transformação pessoal, baseada no estrito cumprimento da lei mosaica, emulando as ideias do Autor, fundador do socialismo cristão. 

Entre aspas:

"As pessoas são como rios: a água é a mesma para todos e é igual em toda parte, mas cada rio é ora estreito, ora rápido, ora largo, ora calmo, ora limpo, ora frio, ora turvo, ora morno" (pág. 199)

"As massas idolatram apenas o poder" (pág. 393)


Avaliação: MUITO BOM

(Novembro, 2020)


domingo, 1 de novembro de 2020

 A Neve do Almirante (1986)

Álvaro Mutis (1923-2013) - COLÔMBIA 

Tradução: Josely Vianna Baptista   

São Paulo: Companhias das Letras, 1990, 132 páginas




Romance breve, composto por seis textos, independentes, mas complementares, sendo que, o primeiro e mais longo, intitulado "O Diário do Gaveiro", narra as aventuras do marinheiro Maqroll subindo o curso do rio Xurandó em busca de umas serrarias, localizadas num ponto indeterminado no meio da selva amazônica, aos pés da Cordilheira dos Andes ("selva amazônica" e "Cordilheira dos Andes", aqui, são inferências do leitor, porque em momento algum há qualquer indicação concreta do espaço geográfico, apenas sugestões vagas). Esse diário, escrito "(...) em folhas da mais variada qualidade e origem, um diário onde registro tudo, dos meus sonhos aos percalços da viagem, do caráter e cara dos que viajam comigo até a paisagem que desfila diante de nós enquanto subimos" (p. 93), teria sido encontrado pelo narrador num sebo no Bairro Gótico de Barcelona, dentro do livro Enquête du Prêvôt de Paris sur l'assssinat de Louis Duc D'Orléans, publicado em 1865. O objetivo de Maqroll é comprar um lote de madeiras, que faria descer rio abaixo, mas desde o princípio da viagem, numa "barcaça de quilha plana movida por um motor diesel que luta com uma asmática teimosia contra a corrente" (p. 15), a existência das serrarias é posta em dúvida. Durante a trajetória, que deveria ser um percurso simbólico e metafísico, os ocupantes do barco vão acolhendo novos passageiros, que preenchem, com suas histórias, o tédio dos dias. Inicialmente, além de Maqroll, do capitão sempre bêbado, de um mecânico e de um prático, segue um estoniano chamado Ivar. Os primeiros passageiros recolhidos são uma família de índios, com quem Maqroll se relaciona sexualmente com a mulher, e Ivar com o homem. Da mesma maneira que eles sobem à embarcação, descem mais à frente, calados e misteriosos. Depois, o barco é interceptado por um hidro-avião militar, cujo major leva presos Ivar e o prático, que depois, ficamos sabendo, são despejados do alto no meio da selva, para não ter que ser julgados, já que o oficial temia que pudessem subornar os seus soldados, os juízes, etc. Eles param numa base militar, conseguem um novo prático, mas Maqroll adoece, segundo o mecânico de algo chamado "febre do poço", por ter se relacionado com a índia, e quase morre. Após se restabelecer, eles prosseguem e, vencida uma corredeira, Paso de los Angeles, última etapa para o destino final, o Capitão se mata, enforcado. Enfim, eles encontram as serrarias - e aqui decorre minha decepção como leitor. A narrativa, que até aqui mantém-se no plano simbólico, cai para o mais chão dos realismos, as serrarias mostram-se inacessíveis por serem joguetes nas mãos de políticos corruptos... Uma solução bastante frustrante... O major volta, resgata Maqroll, e ele vai tentar reencontrar Flor Estévez,  sua amante, financiadora e proprietária do bar ou algo assim que se chama A Neve do Almirante - descobrimos num dos outros relatos (de título homônimo ao livro) que o lugar nem a sua dona existem mais



ENTRE ASPAS:

"(...) o sentido que se embota primeiro, à medida que a vida vai nos levando, é o da piedade". (pág. 42)

"É muito ruim quando se vive parte da vida fazendo o papel errado, e pior ainda é descobrir isso quando já não se tem forças para remediar o passado nem recuperar o perdido". (pág. 77)



AVALIAÇÃO: BOM

(Novembro, 2020)


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Para sempre Uruguai

Organização e Tradução: Aldyr Garcia Schlee e Sergio Faraco

Porto Alegre: IEL, 1991, 239 páginas



Essa coletânea reúne 22 contos e forma um excelente panorama histórico da literatura de ficção uruguaia, já que oferece autores desde E. Acevedo Díaz (1851-1921), vindo do século XIX, até contemporâneos, como Elbio Rodríguez Barilari, nascido em 1953. Muito próxima da literatura do Rio Grande do Sul, com quem compartilha não só os pampas, mas ainda uma certa visão de mundo, a literatura uruguaia também se divide entre rural e urbana. Para mim, pelo menos neste volume, a literatura rural se sobrepõe amplamente à urbana. Marcada por uma violência extremada, provocada por gente acostumada à solidão e aos silêncio dos grandes espaços vazios, destaco as narrativas do já citado Acevedo Díaz, "O combate da tapera"; "Eram como chanchos", de Javier de Viana; "María del Carmen", de Francisco Espínola; "Os alambradores", de Victor Dotti; "Lua de outubro", de Mario Arregui; "A terra velha e fraca", de Julio C. da Rosa - e ainda três contos que não são especificamente passados nos pampas, como "À deriva", de Horácio Quiroga, que tem como cenário as margens do rio Paraná; "A longa viagem de prazer", de Juan José Morosoli, que é um road movie caipira; e "A volta de Narciso Martínez", de Juan Capagorry. Dos contos urbanos, bastante diversos entre si, destacaria o realismo fantástico de "O balcão", de Felisberto Hernández, e "O passarinho dos domingos", de María de Montserrat; o realismo quase lírico de "O inferno tão temido", de Juan Carlos Onetti; "Sábado de glória", de Mario Benedetti; e "Infância de um craque", de Mario Cesar Fernández; e o realismo político de "O desejo e o mundo", de Eduardo Galeano, Cá entre nós, um país que h0je possui pouco mais de três milhões de habitantes poder contar com uma lista de nomes de autores como Espínola, Arregui, Quiroga, Hernández, Onetti, Benedetti e Galeano... É impressionante e invejável... 



AVALIAÇÃO: MUITO BOM

(Outubro, 2020)

terça-feira, 20 de outubro de 2020

 A pirâmide de fogo (1895)

Arthur Machen (1863-1947) - PAÍS DE GALES 

Tradução: Filipe Guerra   

Barcarena: Editorial Presença, 2007, 167 páginas




Este livro, que faz parte da célebre coleção Biblioteca de Babel, dirigida por Jorge Luis Borges (1899-1986), reúne três contos longos, que possuem em comum o fascínio pelas lendas e mistérios envolvendo duendes e outras entidades das florestas galesas. Embora classificadas como histórias de horror - e há, digamos, um clima de estranhamento perpassando todas as narrativas -, elas são contadas como histórias de detetive: o leitor é apresentado ao caso, geralmente um assassinato ou um desaparecimento sem explicação, há uma  investigação "científica" e um desfecho de fundo "sobrenatural". Os casos são sempre expostos na primeira pessoa, mas, engenhosamente, de forma indireta, o que permite ao narrador intervir para esclarecer pontos obscuros. "A pirâmide de fogo" busca explicação para o sumiço de Anne Trevor, que, ao fim, descobrimos ter sido imolada pelo 'povo pequeno', que, após o ritual, que se repete de tempos em tempos, volta para "o mundo subterrâneo, para suas moradas sob a colina" (p. 62). "A história do sinete negro" mais ou menos repete o enredo de "A pirâmide de fogo" - o professor William Gregg desaparece, após publicar um importante tratado de etnologia, e dele são encontrados apenas vestígios ("o seu relógio e a respectiva corrente, o porta-moedas com três soberanos de ouro e algumas moedas de prata, e o anel que costumava usar" - p. 67). Aqui, acompanhamos o relato de sua secretária, Miss Lally, sobre o que ela acredita que realmente aconteceu - e que não exclui a possibilidade de o professor ter sido levado pelo 'povo pequeno' e não a de ter caído nas águas do rio... Finalmente, "A história do pó branco" conta o caso de Francis Leicester, narrado por sua irmã, Helen, um sujeito voltado para os livros, que, doente, é tratado pelo doutor Haberden. O remédio que ele receita é manipulado pelo farmacêutico do lugar, e Francis demonstra uma melhora extraordinária. Só que, com o passar do tempo, ocorre uma série de mudanças incompatíveis com sua personalidade. O doutor Haberden é convocado e estranha a poção que ele toma, o tal pó branco, envia uma amostra para um amigo analisar. O resultado é que a poção, por ter sido guardada por muito tempo, sofreu uma série de mutações químicas, se transformando em Vinum Sabbati, um líquido que, tomado, "a casa da vida humana desintegrava-se, e a trindade do homem se dissolvia, e o verme que não morre, aquele que dorme dentro de todos nós, era tornado coisa material e externa, revestida com o adorno da carne" (p. 165). Curiosamente, duas das três histórias são narradas por mulheres, o que não era muito comum na literatura dessa época...



AVALIAÇÃO: BOM

(Outubro, 2020)

 

domingo, 18 de outubro de 2020

   Contos reunidos  

Felisberto Hernández (1902-1964) - URUGUAI 

Tradução: Jorge Fallorca  

Lisboa: Oficina do Livro, 2011, 302 páginas



Certa vez, fui convidado para almoçar na casa de uma pessoa, em Berlim. Para minha surpresa, o prato servido foi... feijoada! Acompanhada de caipirinha! Claro, tratava-se de uma gentileza imensa, uma forma extremamente generosa de ser agradável. Acontece que, embora a feijoada contasse com os ingredientes necessários e típicos e a caipirinha contivesse limão e cachaça, nada ali funcionava. Mesmo o feijão tendo sido importado do Brasil, as partes do porco, alemão, eram cortadas e salgadas à moda local. E se para a caipirinha a cachaça obviamente fosse brasileira, não o eram o limão e muito menos o açúcar, produzido a partir da beterraba. Para piorar, lá fora fazia frio e chovia... Essa é a sensação que me provocou a leitura dos nove contos reunidos neste livro: a de que está tudo lá, mas as partes juntas não funcionam... Não consegui alcançar o entusiasmo com o qual o Autor é  incensado. Os relatos são um pouco aquilo que disse no início: eu reconheço e gosto dos ingredientes, mas eles, juntos, não me fascinam, em definitivo. O ponto alto das narrativas, e isso sim é um mérito inegável, e invejável, é a capacidade de o Autor construir imagens poéticas vertiginosas, das quais dou apenas quatro exemplos, mas o livro está repleto delas: "Como estávamos no Inverno, anoitecia rapidamente. Mas as janelas não a tinham visto entrar: tinham ficado distraídas a contemplar a claridade do céu até ao último momento" (p. 91); "Pouco tempo depois comecei a diminuir as corridas pelo teatro e a adoecer de silêncio. Afundava-me em mim mesmo como num pântano" (p. 210); "Eu olhei para a cadeira e não sei porquê pensei que a doença do meu amigo estava sentada nela" (p. 228); "Eu sabia isolar as horas de felicidade e encerrar-me nelas; primeiro, roubava com os olhos qualquer coisa distraída da rua ou do interior das casas e depois levava-as à minha solidão. Gozava tanto a revê-las que se alguém soubesse ter-me-ia odiado" (p. 283).


AVALIAÇÃO: BOM

(Outubro, 2020)

 


sábado, 3 de outubro de 2020

    Biblioteca do Século XXI (1986)

Stanislaw Lem (1921-2006) - POLÔNIA 

Tradução: Teresa Brito 

Lisboa: Estampa, s/d, 156 páginas



Trata-se de pseudo-resenhas sobre três livros inexistentes: "Um minuto da Humanidade", "Sistemas de armamentos do Século XXI, ou A evolução de pernas para o ar" e "O princípio do cataclismo criador, ou O mundo como holocausto". De novo: esqueça o subtítulo "Novelas fantásticas" que acompanha a capa, pois os textos não são novelas e muito menos novelas fantásticas. O Autor, aliás, explica, melhor que ninguém, de forma brilhantemente irônica, o seu propósito: "A maneira mais segura de manter secreta uma ideia insólita mas perfeitamente autêntica é expô-la tal como ela é, e publicar este resumo sob a máscara de uma obra de ficção científica. Da mesma forma que um diamante atirado para um monte de vidro partido se torna invisível, uma autêntica revelação metida entre tolices de literatura fantástica passa despercebida; acaba por se lhe assemelhar, deixando de ser perigosa" (p. 64-65). E o livro é exatamente isso: sob a capa de um narrador que está simplesmente resenhando livros publicados no Século XXI, o Autor desenvolve uma série de reflexões, instigantes por sinal, a respeito da banalidade que se transformou a trágica vida humana na Terra, sobre a estupidez da corrida armamentista, sobre a importância do acaso na origem da vida na Terra. São formulação geniais e profundas, em que sua impressionante erudição não se manifesta em pedantismo, mas em simplicidade. Como, por exemplo, a respeito do arsenal nuclear: "(...) ninguém pode obter uma supremacia militar absoluta. Se é permitido exprimir-mo-nos assim, torna-se impossível distinguir o sucesso do desastre. Numa palavra: a corrida aos armamentos só pode levar a uma vitória à Pirro" (p. 75). Ou esta, trágica e arguta, de que, no Universo, a criação se dá pela destruição - tese que desenvolve na última "resenha": "(...) o mundo é uma série de catástrofes fortuitas regidas por leis rigorosas" (p. 137) ou que "as leis da natureza não agem apesar do acaso, mas através dele" (´p. 154). Um livro necessário e absolutamente contemporâneo numa época em que a "lei de Lem" reina: "ninguém lê o que quer que seja; aquele que apesar de tudo lê não percebe nada; e se percebe depressa trata de esquecer" (p. 10).


AVALIAÇÃO: MUITO BOM

(Outubro, 2020)

 

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

                                                  O Golem (1915)

Gustav Meyrink (1868-1932) - ÁUSTRIA

 Tradução: E. Leão Maia 

Lisboa: Vega, s/d, 278 páginas

 


Esse livro demonstra a estupidez de adjetivar e compartimentar o texto literário,  que sempre se traduz numa atitude reducionista. Se se procura referência a este Autor (já resenhado aqui em 16 de janeiro de 2017), o leitor se depara com conceitos como "literatura fantástica" ou "literatura de horror" - que servem apenas para atrair incautos... Este romance, muito mais que literatura fantástica ou de terror, é Literatura de alta qualidade, que, aliás, trafega muito longe de qualquer tentativa de enquadramento. Trata-se da história de Athanasius Pernath - contada por seu duplo, um narrador anônimo -, um lapidador de pedras preciosas de cerca de 40 anos, morador no gueto de Praga (República Tcheca), que aparentemente esteve internado num manicômio, e que, após submeter-se a uma terapia por hipnose, tem dificuldade de lembrar de seu passado. Em determinado momento ele passa a desconfiar que pode ser o próprio Golem - entidade mítica criada para proteger os judeus de seus algozes*. Mas, embora essa seja uma ideia que perpassa toda a história, em momento algum ela se concretiza - no final, volta a ideia do "duplo", já que o narrador teria sonhado com a história de Pernath, após uma troca involuntária  de chapéus...  Para mim, muito mais que discutir a questão do Golem, o que pretende o Autor é explorar os recônditos da mente do protagonista, um homem comum, que não compreende muito bem o que se passa à sua volta. Ele mora num apartamento, também seu local de trabalho, tendo por vizinho um local de encontro entre o enigmático médico, dr. Savioli, e a condessa Angelina. Esse dr. Savioli teria sido o responsável pelo suicídio de um colega de profissão, o oftalmologista charlatão dr. Wassory, filho de Aaron Wassertrum, dono de um ferro-velho, sovina, mesquinho e milionário. Wassertrum persegue a condessa Angelina com o propósito de denunciá-la para o marido, provocando sua ruína e vingando-se do dr. Savioli. Mas para contrariar seus propósitos interpõe-se o estudante de medicina, tuberculoso, Innocence Charousek, que, descobre-se, é filho bastardo de Wassertrum, e tem por ele um ódio insuperável. Além desses personagens, transitam pelo romance, entre outros, o arquivista do tribunal rabínico, Schemajah Hillel, e sua filha, Mirjam, que vivem em profunda pobreza mística. É impressionante como cada um desses personagens, e outros ainda aqui não mencionados, embora vagos e etéreos, vivem intensamente em nossa imaginação. A grandeza desse romance está exatamente nisso: ele é estranho, impalpável, enigmático, onírico, mas ou por isso mesmo arrebatador. 



* Essa é a descrição do Golem, pelo Autor:
"(...) ser artificial que um rabino kabalista criou, em tempos, a partir do elemento (...) chamando-o a uma existência maquinal, sem pensamento, por meio de uma palavra mágica que lhe tinha colocado atrás dos dentes". (pág. 35) 
"Um rabino dessa época teria criado um homem, a partir das fórmulas hoje perdidas da Kabala, para lhe servir de criado, tocar os sinos da sinagoga e fazer os trabalhos pesados. Mas não era um homem verdadeiro, e só uma vida vegetativa, semi-inconsciente, o animava. Tinha mesmo que ser renovada todos os dias, por intermédio de um pergaminho mágico que o rabino lhe colocava por detrás dos dentes e que atraía as forças siderais livres do Universo" (pág. 50)


ENTRE ASPAS:

"Aquele que pergunta recebe a resposta de que necessita: caso contrário, a criatura não seguiria o caminho das suas aspirações. Pensa que os textos judaicos são escritos com consoantes apenas por mero capricho? Não. Cada um terá de encontrar, pelos seus próprios meios, as vogais ocultas que lhe revelarão o sentido que, desde a eternidade, para si próprio determinou: a palavra viva não deve transformar-se num dogma morto". (pág. 118)



AVALIAÇÃO: OBRA-PRIMA

(Setembro, 2020)

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

                                  Histórias de vampiros 

Vários autores 

 Vários tradutores  

Lisboa: Estampa, 1988, 226 páginas


Este livro reúne nove contos, uma menção (interessantíssima, aliás) e um depoimento, que considero de extremo mau gosto... Vamos lá. O livro se inicia com uma menção à superstição da existência de vampiros, numa pretensa carta do papa Bento XIV (1675-1758) a um arcebispo, talvez uma das referências inaugurais ao mito. E segue com aquele que é considerado o primeiro conto escrito, tendo como protagonista um vampiro: a narrativa de John William Polidori (1795-1821), médico de Lord Byron (1788-1824). Ele acompanhou o grupo liderado por Byron, que incluía ainda o casal Percy Bysshe (1792-1822) e Mary Shelley (1797-1851), que, presos pelo mau tempo num castelo na Suíça, pensaram em inventar histórias de terror para passar o tempo. Só Mary Shelley e Polidori cumpriram o compromisso: ela, escreveu Frankestein (1818), resenhado aqui no dia 18-09-2020, e ele escreveu esse conto, O vampiro, publicado em 1819, história de um aristocrata que tem como elixir da vida eterna o consumo de sangue humano... A coletânea traz ainda contos do alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822), dos franceses Charles Nodier (1780-1844), Prosper Merimée (1803-1870) e Conde de Lautréamont (1846-1870), dos estadunidenses Edgar Allan Poe (1809-1849) e Ray Bradbury (1920-2012), do inglês Conan Doyle (1859-1930), e do romeno Gherasim Luca (1913-1994). Sempre achei - e cada vez mais me convenço disso - que as narrativas de Poe e de Hoffmann são histórias para adolescentes, perdem completamente o interesse para o leitor adulto. Eu destacaria os contos de Conan Doyle, porque seu detetive Sherlock Holmes e seu eterno companheiro, o médico John Watson, na maior parte das vezes proporciona inteligentes deduções, e de Bradbury, mestre da ficção especulativa, que aqui comparece com um conto, hum, digamos, mais "realista"... Mas o destaque mesmo vai para a pequena obra-prima de Merimée, "Lokis",  divertida e sofisticada incursão pelo fantasioso mundo da... literatura... Agora, para terminar, os organizadores incluíram o depoimento de John Haig, o chamado "vampiro de Londres", serial killer condenado à morte por enforcamento em 1949, um relato de embrulhar o estômago e que nada acrescenta, literariamente falando...
 



AVALIAÇÃO: BOM

(Setembro, 2020)


sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Frankenstein (1818)

Mary Shelley (1797-1851) - INGLATERRA

 Tradução: Santiago Nazarian 

Rio de Janeiro: Zahar, 2017, 246 páginas




A grande literatura é aquela permeável às mais variadas interpretações, por ser uma apropriação subjetiva da realidade, e não uma submissão objetiva aos fatos que a constituem. Esse romance é um exemplo bastante eloquente dessa assertiva. Um leitor ingênuo pode compreendê-lo como a história de um monstro construído por um jovem cientista ambicioso, que, após dar vida à sua criatura, perde o controle sobre suas ações  - uma vertente, digamos assim, gótica da história literária... Mas, claro, essa é apenas uma, e a primeira, camada da narrativa, que, ao fim e ao cabo, possui outras, inúmeras outras. A cada releitura desta obra, o leitor se depara com uma nova possível interpretação. O jovem cientista, Victor Frankenstein, vive uma vida burguesa e saudável em Genebra, tendo como único trauma a morte da mãe, no parto de seu irmão caçula, William. Mas, por conta da situação financeira e também pelo amor que os cerca, a família Frankenstein supera os problemas - além do pai, de Victor e de William e mais um irmão, chamado Ernest, com eles ainda vive Elizabeth Lavenza, adotada como uma espécie de prima não consanguínea, e Justine Moritz, agregada. Ao chegar a época de entrar para a universidade, Victor transfere-se para Ingolstad, na Alemanha, e apaixona-se pela filosofia natural - campo do conhecimento precursor das ciências naturais. No decorrer de seus estudos, Victor torna-se obcecado por uma ideia: dar vida a um ser inanimado, ou seja, descobrir o "elixir da vida", com o objetivo de "alcançar a glória", banindo "a doença da constituição humana" e tornando o homem "invulnerável a qualquer morte que não a violenta" (p. 48). Mas, no momento mesmo em que consegue esse feito, assusta-se com sua abominável criação,  "um ser de estatura gigantesca: de cerca de dois metros e quarenta de altura e proporcionalmente largo" (p. 61); "a pele amarela mal encobria a atividade dos músculos e das artérias; o cabelo era comprido e de um preto lustroso; os dentes, de um branco perolado; mas esses luxos só formavam um contraste mais horrendo com os olhos aguados, que pareciam quase da mesma cor dos buracos acinzentados  nos quais estavam cravados, e com a compleição enrugada e lábios pretos retos" (p. 65). Desprezada, a criatura desaparece. Seis anos depois, de volta a Genebra, após concluir suas experiências, Victor é recebido com a notícia do assassinato de William, pelo qual a agregada Justine é acusada. Mas, o que no início era desconfiança, passa a ser certeza: Victor sabe que o responsável pelo crime é o ser por ele criado... E, no entanto, não pode denunciá-lo, porque ninguém acreditaria numa história tão inverossímil, e porque denunciá-lo, caso acreditassem, seria denunciar-se também... Justine é julgada e condenada à morte - e começa então para o protagonista uma época de culpa e autopunição. Um dia, passeando pelas escarpas das montanhas suíças, Victor se depara com o monstro e fica sabendo de seus infortúnios: inicialmente aberto ao amor e à compaixão, é por todos afugentado pro causa de suas deformidades. E, pouco a pouco, o seu desejo de enlaçar-se com os outros seres humanos torna-se "rancor e amargura" (p. 148) e transforma-se em ódio pela maldição eterna a que está condenado e desejo de vingança contra seu criador. Por isso, ele mata o irmão caçula de Victor e incrimina uma pessoa inocente. O monstro faz uma proposta a Victor: caso ele crie uma fêmea para lhe servir de companhia, promete renunciar para sempre ao convívio humano. Victor aceita a proposta e parte, primeiro para Londres, junto com o amigo Henry Clerval, depois sozinho para um canto perdido da Escócia. Numa cabana nas Ilhas Órcades, ele se prepara para criar a fêmea, mas percebe o risco que a Humanidade corre, caso o monstro não cumpra sua palavra. E então desafia a criatura, recusando-se a a continuar sua ação. O monstro promete vingar-se e mata seu amigo Clerval. Após um longo período doente, Victor volta para Genebra e se casa com Elizabeth. Mas, claro, o monstro mata a sua amada no dia das núpcias. Tomado de horror e de cólera, Victor, após acompanhar a agonia do pai, que sucumbe ao desgosto, toma a sia a tarefa de exterminar a sua criação. O monstro foge para o Oceano Ártico, sempre com Victor em seu encalço - a vida de um encontra-se para sempre atrelada à vida do outro... Victor acaba falecendo e o monstro desaparece na imensidão gelada... É uma história de punição para aqueles que se arvoram a deuses - narrativa sobre os fantasmas que nos perseguem, nos sufocam, nos matam...
 


AVALIAÇÃO: OBRA-PRIMA

(Setembro, 2020)

domingo, 13 de setembro de 2020

 Manon Lescault (1731)

Abbé Prevost (1697-1793) - FRANÇA

Tradução: Annie Dymetman

São Paulo: Ícone, 1987, 132 páginas




Este é um romance "amoral" - aliás, como é "amoral" a nossa época. O protagonista, Cavalheiro Des Grieux, é um aristocrata, cuja noção de bem e mal não está submetida a princípios universais, mas a interesses de sua classe. Trata-se de um personagem que a mim provoca antipatia e enfastio, um homem mimado que não mede esforços para ver satisfeitos seus desejos, no caso, o amor - absolutamente doentio - por Manon Lescault, ela própria uma personagem frívola, vulgar e egocêntrica. O "Autor" encontra, em Passy, o narrador da história, este Cavalheiro Des Grieux, que acompanha uma diligência que leva prostitutas para o porto de Havre para serem deportadas para a América Francesa (hoje, Louisiana). O "Autor" se condói com a situação de penúria e desespero em que se encontra o narrador, que relata que, naquela comitiva, vai o amor de sua vida, Manon Lescault. Dois anos depois, ele reencontra esse mesmo personagem, em Calais, que acaba de desembarcar de Nova Orleans, sem dinheiro, e convida-o a almoçar. Então, o Cavalheiro des Grieux conta-lhe toda a sua trágica história com Manon Lescault. Ele estava em Amiens, terminando seus estudos de filosofia, quando conheceu Manon Lescault, pronta para entrar para a vida religiosa. Eles se apaixonam perdidamente e resolvem fugir para Paris. Lá, ela se torna sua amante e mostra-se uma mulher caprichosa, inconstante e infiel, uma mulher para quem o mais importante era desfrutar dos prazeres que o dinheiro oferece. Poucos meses após estarem vivendo em Paris, ela, percebendo a dificuldade do amante de conseguir dinheiro para sustentá-la, aceita a oferta do Senhor de B. , e abandona Des Grieux e até mesmo ajuda o novo amante a se livrar do antigo. Des Grieux voltar para casa, e, após um período em que é mantido sob vigília, aceita entrar para um seminário, em Paris. Lá, ele reencontra Manon Lescault e foge com ela. Com a ajuda do irmão da amante, ele entra para uma irmandade de jogadores de cartas que vivem de ludibriar os incautos, até Manon se interessar por outro amante, agora o velho Senhor G. de M. Manon, Des Grieux e o cunhado armam uma cilada para roubar o Senhor G. de M., mas são descobertos e vão presos, Manon no Hospital, Des Grieux em Saint Lazare. Após algumas peripécias, Des Grieux consegue acesso a uma arma e com ela foge da prisão, matando um vigia, e consegue ainda libertar Manon, com a ajuda do Senhor de T. Esse novo personagem é amigo do filho do Senhor G. de M., que por sua vez vai se interessar por Manon, e ela por ele. Manon, Des Grieux e o cunhado resolvem dar um novo golpe, mas falham - o cunhado é morto, Des Grieux é preso em Petit Chatelet e Manon é condenada à deportação para a América Francesa. Como é aristocrata - e aos aristocratas tudo se perdoa -, o pai de Des Grieux convence o Senhor G. de M. a perdoar o filho - afinal, os malfeitos que ele praticou são coisas da juventude - e assim é feito. Mas Des Grieux, tomado de paixão por Manon, não a abandona. Segue com ela para Louisiana. Lá, eles desembarcam como um casal, mas após algum tempo, Des Grieux confessa ao governador local que eles são amantes e que querem se casar legalmente. Diante do novo estatuto de Manon, o governador informa a Des Grieux que sua amante seria entregue ao filho, Synnelet, como uma mercadoria... Des Grieux não aceita, duela com o filho do governador e, pensando que o matou, foge com Manon para a pradaria, onde ela morre. O governador, após saber que Des Grieux agira como um cavalheiro no duelo contra o filho, que, afinal, não morreu, perdoa-o e ele volta para a França, para assumir a herança familiar a que tinha direito com a morte do pai. Se são inverossímeis algumas passagens, não o são o caráter dos protagonistas. Des Grieux é um irresponsável que não sente culpa alguma em relação a seus diversos crimes - incluindo o de assassinato -, enquanto Manon não lamenta, de verdade, em momento algum seu comportamento errático. É um ótimo retrato de uma época em que os ricos viviam na sociedade acima de suas leis... Muito parecido com nossos tempos, de corrupção, obscurantismo e desregramento... O cinismo de Des Grieux pode ser resumido neste trecho: "Como depois de tudo, não houvesse nada em meu comportamento que pudesse me desonrar, pelo menos comparando-o com o dos jovens de nível, e que uma amante não é uma infâmia no século em que vivemos, nem mesmo um pouco de astúcia para atrair a sorte no jogo, sinceramente dei a meu pai os detalhes da vida que eu levara. A cada erro que eu lhe confessava, tinha o cuidado de acrescentar exemplos famosos para diminuir a minha vergonha" (p. 107). O livro tem bastante problemas de revisão e o mais irritante deles é tratar Saint-Sulpice como Saint Suplice... um verdadeiro suplício...




AVALIAÇÃO: MUITO BOM

(Setembro, 2020)




terça-feira, 8 de setembro de 2020

A chuva imóvel  (1963)
Campos de Carvalho (1916-1998) BRASIL         
    Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, 104 páginas





Talvez seja a única narrativa do Autor que possua um fiapo de enredo, ainda que isso não tenha a menor importância para a economia do texto. André tem uma irmã gêmea, Andréa, por quem nutre uma atração erótica que é claramente um sintoma de autoimolação... Ele estava sendo criado para ser "alguém" na vida, para seguir a carreira diplomática, por sua inteligência e modos civilizados, um verdadeiro Medeiros da velha cepa. Mas a morte do irmão, que optou por rebelar-se contra a farsa de uma família aristocrática decadente e tornou-se mensageiro do Correio, sempre em cima de sua bicicleta, acaba por mostrar a André a inutilidade das convenções sociais. Ele então torna-se arquivista onde o marido de Andréa é chefe, e pouco a pouco vai enlouquecendo. Essa, aliás, é a trilha perseguida pelo Autor, a loucura como única forma possível de enfrentar um mundo sem qualquer sentido, como diz o narrador: "ESTE ANO NÃO HAVERÁ PRIMAVERA; nem este ano nem em nenhum outro, enquanto houver Auschwitz ou Little Rock*" (p. 33). Mas, aqui, não há saída: ao protagonista só resta vingar-se através do suicídio.



* Cidade que se tornou símbolo do movimento anti-racista estadunidense.



 Avaliação: BOM 

(Setembro, 2020)

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Vagamundo (1973)
Eduardo Galeano (1940-2015) - URUGUAI         
Tradução: Eric Nepomuceno                  
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, 95 páginas




Essa coletânea reúne 24 contos, a maioria deles curtíssimos, que têm como paisagem comum as diversas tragédias da América Latina. O Autor percorre, com bastante segurança, a realidade de países bastante distintos, oferecendo histórias que, em geral, trazem como pano de fundo a desigualdade social existente por aqui, e uma esperança - típica dos anos 1970 e 1980 - na luta armada como solução política. Além disso, o Autor não esconde - ou pelo menos não esconde o suficiente - uma cosmovisão lírica (ou poderíamos mesmo dizer romântica), que, muitas das vezes, intoxica os relatos com um uma exagerada dose de pieguice... Mas, quando supera esse problema, alcança voos altíssimos, como em pelo menos dois contos, "Conto um conto de Babalu" e "A cidade como um tigre", nos quais encontramos, em perfeito equilíbrio, a crença numa ideia e desconstrução dessa ideia, aquele momento em que a destinação individual esbarra com o projeto coletivo... Há um outro conto, que estaria no mesmo nível dos supracitados, "Ter duas pernas me parece pouco", narrativa que acompanha um uruguaio a cavalo pelos pampas buscando ultrapassar a fronteira com o Brasil, uma linda história de liberdade, que o Autor transforma, no final, numa estúpida anedota... 


 Avaliação: BOM

(Setembro, 2020)

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

A peste (1947)
Albert Camus (1913-1960) FRANÇA         
Tradução: Valerie Rumjanek                  
Rio de Janeiro: Record, s/d, 213 páginas





Este livro é a prova inconteste de que boa literatura é aquela que ultrapassa as barreiras de espaço, tempo e língua... Se o leitor procura um "depoimento" vivo sobre essa pandemia que assola o mundo e tem nos colocado nos limites da sobrevivência individual e coletiva é só abrir as páginas deste romance... escrito e publicado há mais de 70 anos... Em suas páginas, nos deparamos com a chegada da peste, vista ainda com ceticismo e desconfiança; sua instalação, primeiro nos bairros pobres periféricos, depois de maneira generalizada; a quarentena a que é submetida a população e suas tentativas de quebrá-la; a dissolução da economia e das finanças; o colapso dos hospitais e cemitérios; a sensação de impotência que pouco a pouco transforma a contestação em conformismo; a busca pela religião e depois sua recusa; o trabalho exaustivo e quase inútil de médicos, enfermeiros e voluntários; a solidariedade na desgraça... E, por fim, a certeza de que tudo aquilo um dia estará de volta, pois a peste, ainda que desapareça como surgiu, do nada, mantém-se à espreita: "(...) ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada", porque "viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz" (p. 213). Com um realismo quase documental - narrado por um personagem neutro, que depois se revela como o médico Bernard Rieux -, o Autor encontrou um solução formal perfeita para levar a cabo essa história feita de medo, derrotas e sofrimento, mas também de heroísmo e esperança, não heroísmo e esperança banais, mas aqueles sentimentos que brotam nos homens que estão na Terra não para ser parte do bando, mas para diferenciar-se dele, mesmo que anonimamente. E se o livro tematiza a peste - um misto de peste bubônica e pneumônica -, metaforicamente é um alerta contra todas as formas de dizimação, sejam elas provocadas por micróbios, sejam elas impostas pelo obscurantismo ideológico... Infelizmente, hoje, o Brasil encontra-se assolado por ambas, o covid-19 e o bolsonarismo... O que torna mais urgente a leitura e reflexão deste livro...




Entre aspas:

"(...) um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação". (pág. 31)

"As pessoas cansam-se da piedade, quando a piedade é inútil". (pág. 66)

"O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade". (pág. 93)

"(...) nada é menos espetacular que um flagelo e, pela sua própria duração, as grandes desgraças são monótonas. Na lembrança dos sobreviventes, os dias terríveis da peste não surgem como grandes chamas intermináveis e cruéis e sim como um interminável tropel que tudo esmaga à sua passagem". (pág. 126)



Curiosidade: 

1) À pag. 42, encontramos o seguinte parágrafo: "Grand  chegara a assistir a uma cena curiosa com a vendedora de tabaco. No meio de uma conversa animada, ela falara de uma prisão recente que alvoraçava Argel. Tratava-se de um jovem que matara um árabe na praia". Na verdade, é uma clara referência ao núcleo temático de outro romance do autor, O estrangeiro, publicado em 1942...

2) Inexplicavelmente, o nome da tradutora, Valerie Rumjanek, aparece como Valery Rumjanek, que seria um homem... Esse é apenas o mais grave dos vários problemas de revisão com que nos deparamos no livro...




 Avaliação: MUITO BOM

(Setembro, 2020)