domingo, 22 de novembro de 2020

 Ressurreição (1899)

Liev TOLSTÓI (1818-1910) - RÚSSIA

Tradutor: Rubens Figueiredo

São Paulo: Companhia das Letras, 2020, 444 páginas



Eu rechaço as narrativas de tese - não acho que o espaço do romance seja o lugar adequado para a defesa de ideias pré-concebidas, mais apropriadas a tratados de sociologia, política, antropologia, etc. E este é um romance de tese: o relato dos três meses em que o príncipe Dmítri Ivánovitch Nekhliúdov, herdeiro de grandes extensões de terra, passa por uma radical transformação, de aristocrata alienado a crítico contundente da situação sócio-econômico-política da Rússia,  um país em ebulição no final do século XIX. Mas trata-se de um Autor tão grandioso que, mesmo defendendo teses, consegue arrebatar o leitor e conduzi-lo até à última página, com a maestria que só os gênios possuem. O príncipe Nekhliúdov mora em Moscou e é convocado para participar de um júri. Quando lá chega descobre, surpreso, que a ré, Ekatierina Mikháilova Máslova, prostituta e alcoólatra, acusada de, em conluio com duas outras pessoas, ter seduzido, envenenado e roubado um comerciante, é a mesma Katiucha da sua juventude, agregada na casa de suas tias ricas, a quem molestou, engravidou e abandonou - desencadeando sua derrocada. O júri conclui que Katiucha é inocente, mas, por um erro de redação da sentença, ela é condenada a trabalhos forçados na Sibéria. Sentindo-se responsável pelo descaminho de Katiucha, Nekhliúdov tem uma crise de consciência e resolve fazer de tudo para tentar corrigir aquele erro do passado, não só lutando para reverter a sentença, como se propondo até mesmo a casar com ela. Quando ele comunica suas pretensões, ela o repele, argumentando, com nojo: "Você me usou para se regalar à vontade neste mundo, agora quer me usar para se salvar no outro mundo" (p. 172). Mas o príncipe, determinado a ajudá-la, usa sua posição social e política para persuadir as autoridades a anular a condenação, enquanto frequenta a prisão para tentar convencer Katiucha da justeza das suas intenções. É então que conhece os horrores dos sistemas jurídico e prisional da Rússia, em franco contraste com a vida de luxo, vulgaridade e hipocrisia que grassa no meio aristocrático. Torna-se, então, ardoroso defensor de outros apenados, vítimas de detenções arbitrárias, condenações absurdas, violações de direitos, e vítimas também das próprias condições das cadeias superlotadas, imundas, promíscuas, guardadas por policiais corruptos e assediadas pelas doenças - o mais impressionante é a presença de mulheres e crianças que voluntariamente são encarcerados para acompanhar os familiares. Nekhliúdov conclui que "(...) o tribunal não só inútil, mas imoral" (p. 134), sendo "(...) apenas um instrumento administrativo para a manutenção do estado de coisas vigentes, vantajoso para a nossa classe" (p. 322). Pouco a pouco, o príncipe resolve tomar decisões radicais, como dispor de suas terras, que, de acordo com suas ideias, não podem pertencer a ninguém, e sim devem ser exploradas coletivamente e a riqueza produzida usufruída pelos que nela trabalham. Por meio de suborno, Nekhliúdov consegue tornar a vida de Katiucha menos ruim na cadeia, obtendo a transferência dela, na longa jornada de Moscou até a Sibéria, do grupo de presos comuns para o de presos políticos, que, embora não recebam melhor tratamento, mantêm-se mais organizados. O príncipe acompanha o cortejo para garantir um bom tratamento a Katiucha e também para provar que são sérias suas intenções matrimoniais. Só que ela, convivendo com os presos políticos, vai tomando consciência de seu destino - e, mesmo recebendo a notícia da anulação de sua sentença, ela resolve permanecer com o grupo na Sibéria, aceitando a proposta de casamento feita por um dos presos políticos, Símonson. Ao final, Nekhliúdov chega à conclusão de que não basta reformar as prisões, ou dividir as terras, ou mudar o governo: a única saída possível para a Rússia - para o ser humano - é a transformação pessoal, baseada no estrito cumprimento da lei mosaica, emulando as ideias do Autor, fundador do socialismo cristão. 

Entre aspas:

"As pessoas são como rios: a água é a mesma para todos e é igual em toda parte, mas cada rio é ora estreito, ora rápido, ora largo, ora calmo, ora limpo, ora frio, ora turvo, ora morno" (pág. 199)

"As massas idolatram apenas o poder" (pág. 393)


Avaliação: MUITO BOM

(Novembro, 2020)


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