sábado, 15 de dezembro de 2018

Mary Barton (1848)
Elizabeth Gaskell (1810-1865INGLATERRA 
Tradução:  Julia Romeu    
Rio de Janeiro: Record, 2017, 462 páginas




Um dos primeiros - e, ainda hoje, dos poucos - romances a tratar com realismo a vida do proletariado. A Autora situa sua história em Manchester, no começo da década de 1840, cidade que abrigava uma forte indústria têxtil, num momento em que não havia nenhuma legislação trabalhista e, portanto, a exploração da mão de obra beirava à escravidão. O livro, na verdade, divide-se, quase esquizofrenicamente, em duas partes: a primeira, quando a narradora apresenta a vida de privações dos operários (fome, doenças, mortes, insalubridade) e o desespero da busca pela sobrevivência; a segunda, quando concentra-se no assassinato do filho de um dos empregadores, Mr. Carson, aparentemente provocado por uma crise de ciúmes do pretendente rejeitado da protagonista, que dá título ao romance. Mary Barton é uma jovem que aos dez anos perdeu a mãe e desde então mora com o pai, John Barton, um operário que, revoltado contra o que considera injusto - o paradoxo entre a vida de conforto dos patrões, enquanto os empregados morrem na indigência -, une-se a sindicalistas radicais, tornando-se "um cartista, um comunista, tudo aquilo que chamam de louco e de visionário" (p. 201). Viciado em ópio, Barton, aguda consciência operária - "(...) o trabalho é o nosso capital..." (p. 81), afirma - ajuda na organização de greves, promove a divulgação das ideias paredistas e participa até mesmo na trama de atentados contra os donos das indústrias. Na primeira parte, a situação de extrema pobreza da classe operária é retratada com profunda indignação pela narradora: "(...) quando ouço falar, como já ouvi, dos sofrimentos e das privações dos pobres: (...) dos pais que passavam a noite inteira, sete noites por semana, sentados diante do fogo com suas roupas de rua, de modo que a única cama e os únicos lençóis da família pudessem ser reservados para o uso de seus muitos filhos; de outros que dormiam na laje fria por semanas a fio, sem meios adequados de se suprir de comida e combustível (e isso no mais profundo inverno); de outros, sendo obrigados a jejuar por dias e dias, sem a esperança de tempos melhores para alegrá-los, vivendo, ou melhor, morrendo, num sótão apinhado ou num porão úmido, ou sendo gradualmente aniquilados pela penúria e pelo desespero que os levaria à morte prematura (...) - será que posso me espantar ao saber que muitos deles, em tal época de miséria e infelicidade, tenham falado e agido com precipitação feroz?" (p. 103). Na segunda parte, o romance torna-se quase um trílher de julgamento: acusado pelo assassinato de Henry Carson, James (Jem) Wilson é preso e levado ao tribunal, cuja sentença será a pena por enforcamento. Mas Mary, apaixonada por ele - e sabendo de sua inocência - consegue, após várias peripécias, obter o testemunho de William (Will) Wilson, que garante um álibi insofismável a Jem (eles estavam juntos na noite do assassinato, longe do cenário do crime). Mais à frente, John Barton confessa ser ele o criminoso - um assassinato político - e é perdoado por Mr. Carson, já que, conclui a narradora, "ricos e pobres, patrões e empregados, eram, portanto, irmãos em sofrimento" (p. 428). John Barton morre, Mr. Carson torna-se um patrão mais justo - "(...) quem tem qualquer força dada por Deus deve ajudar os mais fracos (...)" p. 451 -, Jem e Mary Barton se casam e se mudam para o Canadá, onde ele vai ser "fabricante de instrumentos da Faculdade de Agricultura" em Toronto. Se na primeira parte, o discurso da narradora beira à subversão, na descrição das péssimas condições de vida dos operários - nos tempos de recessão, "as carruagens ainda atravessam as ruas, os concertos ainda ficam lotados, as lojas de artigos de luxo ainda têm clientes todos os dias, enquanto o operário passa os dias sem ofício observando essas coisas e pensando na esposa pálida que está em casa, sem reclamar, e nas crianças que choram, pedindo em vão por mais comida - na saúde que se esvai, na vida daqueles que mais ama se acabando" (p. 33); na segunda parte, ela ameniza as contradições e  busca uma conciliação entre patrões e empregados via discurso religioso - os críticos da época afirmam que essa guinada se deu em função das pressões dos editores...


Avaliação: MUITO BOM



Curiosidade: 

A Autora - estamos no início da história do romance, ou seja, no período de sua consolidação - usa de um subterfúgio muito interessante (e simpático) para dar maior verossimilhança à narrativa: a ignorância. Em várias passagens do livro, a narradora confessa não saber determinadas coisas. Por exemplo, à pág. 286: "Mary tateou mais e encontrou algumas balas ou projéteis (não sei como se chamam) naquele mesmo bolso"... Ou, à pág. 316: "Mas pense em Mary e no que ela estava suportando! Imagine (pois eu não saberia descrever) os exércitos de pensamento que se chocavam em seu cérebro". Ou ainda, à pág. 340: "Charley explicou o que queria usando muitas gírias que foram incompreensíveis para Mary e que eu, uma grande fã de terra firme, não saberia repetir corretamente". Em outras passagens, ela se imiscui como Autora, como por exemplo, à pág. 299: "Muitas pessoas têm pânico desses pergaminhos. Eu sou uma delas. Mary era outra". Ou à pág. 313: "E se em seus sonhos (aquela terra onde a piedade e o amor de outra pessoa não podem penetrar, nem para compartilhar da felicidade, nem da angústia; aquela terra cujas cenas são horrores invisíveis, mistérios ocultos e tesouros inestimáveis reservados só para nós; aquela terra onde, sozinha, eu posso ver, enquanto permaneço neste mundo, o lindo rostinho do meu filho querido)". Ou ainda, à pág. 381: "Eu não estava presente, mas alguém que estava me disse que a melhor maneira de descrever a aparência de Mary era dizer que lembrava muito a pintura de Beatriz Cenci feita por Guido Reni".




Entre aspas: 



"Mesmo entre os homens mais nobres, uma vez que o eu ganha uma existência proeminente, torna-se algo mesquinho e pequeno". (pág. 201)

"É notório que não há religioso mais zeloso do que o convertido; e não há patrão mais rígido e indiferente aos interesses de seus trabalhadores do que aqueles que vieram eles próprios dessa classe". (pág. 203)

"(...) sentir ansiedade e tristeza pelo mesmo motivo faz as pessoas ficarem amigas mais depressa do que qualquer outra coisa (...)" (pág. 400)


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