quarta-feira, 5 de outubro de 2016

S. Bernardo (1934) 
Graciliano Ramos (1892-1953) - Brasil       
Rio de Janeiro: Record, 2006, 269 páginas



Machista, racista, egoísta e bruto, Paulo Honório consegue encarnar um dos maiores personagens da literatura brasileira - e, na minha opinião, da literatura universal. É impressionante como o autor obtém, a partir da exposição de um ser em tudo desprezível, a nossa "compreensão": não chegamos a nos comover com a dor deste fazendeiro imerso na mais profunda e merecida solidão, mas de alguma maneira sua derrocada nos diz respeito. Paulo Honório confessa, em uma prosa "(...) que se derrama como a chuva da serra"* (p. 216), o vazio de sua existência, cujo único fito era apossar-se das terras de S. Bernardo, construir uma casa, "(...) plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador, introduzir (...) a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular" (p. 12). A ação transcorre em Viçosa, sertão de Alagoas, em fins da década de 1920 e começos da seguinte**. Corroído pela amargura, Paulo Honório repassa sua história. Gasta menos de três páginas para descrever seu nascimento incerto, cuja certidão "(...) menciona padrinhos, mas não menciona pai nem mãe" (p. 15); a meninice como guia de cego e vendedor de doces para Margarida - talvez o único ser vivo por quem alimenta algum afeto, a gratidão; a adolescência puxando enxada a soldo; a prisão por esfaquear um desafeto e a mudança de rumo, após aprender a ler com um colega de cela. Quando deixa a cadeia, está resolvido a tornar-se rico, importante e poderoso a qualquer custo. Deleita-se em explicar como adquire, por meio de diversas artimanhas, a fazenda S. Bernardo de Luís Padilha, filho de seu antigo patrão, e como a transforma em uma moderna propriedade. Então, resolve se casar, não por amor, mas porque ter uma mulher faz parte de seu projeto mercantilista. Escolhe Madalena, uma professora de ideias avançadas - culta, inteligente, solidária, bonita, "(...) loura (...) grandes olhos azuis" (p. 77). Com sua vivacidade e curiosidade, Madalena vai provocar a desestabilização do ultraconservador Paulo Honório: S. Bernardo, que era "(...) o lugar mais importante do mundo" (p. 85), torna-se "desagradável" (p. 142), porque fora de seu controle. Pouco a pouco, o ciúme passa a governar seus atos e, descontrolado, enlouquecido, ele tortura cruelmente a mulher e despreza o filho (este, na verdade, representa tão pouco para Paulo Honório, que sua apresentação na narrativa se faz de forma abrupta, à página 145, assim: "Madalena tinha tido um menino"). Afinal, não suportando a pressão do marido, Madalena se mata, levando com ela o entusiasmo de Paulo Honório, que vê os empregados irem embora, as benfeitorias se deteriorarem, os vizinhos derrubarem as cercas, sem que tenha vontade de reagir, mergulhado no remorso e repetindo: "Estraguei a minha vida estupidamente" (p. 220). Crítica ferina à elite brasileira, que acumula bens e capital por meio do roubo, da usurpação, da gatunagem, Paulo Honório é a sua síntese: por fora, ousado, empreendedor, dinâmico, progressista; por dentro, tacanho, escravocrata, misógino, reacionário. Romance trágico, parente próximo de D. Casmurro, de Machado de Assis (1939-1908)***, ambos filiam-se por sua vez ao Otelo, de William Shakespeare (1564-1616).





* Os dois primeiros capítulos são aulas de escrita criativa. V. também as páginas 87-88. 

** O clima de rebelião e os embates ideológicos que marcaram a Revolução de 30 perpassam a narrativa.

*** O autor chega a parafrasear claramente Machado de Assis, à página 160: "(...) ia ver o pequeno, que engatinhava pelos quartos, às quedas, abandonado. Acocorava-me e examinava-o. Era magro. Tinha os cabelos louros, como os da mãe. Olhos agateados. Os meus são escuros. Nariz chato. De ordinário as crianças têm o nariz chato. / Interrompia o exame, indeciso: não havia sinais meus; também não havia os de outro homem". Cena que remete áquela em que Bentinho desconfia que o filho leva traços de seu amigo Escobar. V. D. Casmurro (1900). 



Avaliação: OBRA-PRIMA  

(Outubro, 2016)

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