domingo, 9 de junho de 2019

Uma vida à sua frente (1975)
Romain Gary (1914-1980- FRANÇA
Tradução de  Joana Cabral  
Porto: Sextante 2011, 181 páginas


Estamos em 1970, em Paris. Mohammed Kadir tem catorze anos e desde os três mora com madame Rosa, uma prostituta aposentada, sobrevivente do campo de extermínio de Auschwitz, num prédio da rue Bisson, no bairro pobre de Belleville. Este livro é isso: a comovente história de amor que une o adolescente árabe, abandonado pelos parentes, após o pai, um proxeneta, matar a mãe, Aïcha, uma prostituta, e a velha judia, de sessenta e cinco anos, obesa, e que pouco a pouco vai perdendo a memória para o Alzheimer. O livro, narrado em primeira pessoa por Momo, apelido de Mohammed, emula a linguagem cheia de gírias dos deserdados da sociedade (negros africanos, árabes e judeus, que povoam aquela parte da cidade), construindo personagens inesquecíveis em sua autenticidade. Além de madame Rosa, que, nascida na Polônia, "defendeu-se em Marrocos e na Argélia durante anos" (p. 9) e por isso sabia falar árabe, e que sobrevive cuidando dos filhos das prostitutas, usando documentos falsos para eles não serem deportados ou enviados para a Assistência Social, desfilam pelas páginas do romance outros seres arrebatadores. O senhor Hamil, um vendedor de tapetes que ama a poesia de Victor Hugo, e que percorre trajetória paralela à de Madame Rosa em seu processo de envelhecimento; Madame Lola, uma travesti, ex-campeão de pesos pesados de boxe no Senegal, que "defende-se" no Bois de Boulogne; os irmãos Zaoum; o senhor Waloumba e seus irmãos camaroneses; o compreensivo médico judeu doutor Katz; o jovem casal francês, doutor Ramon e madame Nadime, que acaba por se interessar pela história de Momo e torna-se uma espécie de fiador de suas memórias. Há cenas impressionantes, como a da conversa entre madame Rosa e o pai de Momo, na qual a velha mente para o muçulmano que criou o filho deixado por ele como judeu, o que acaba matando-o de desgosto (numa vingança por ele ter assassinado a mãe de Momo) (p. 125-139); a disputa do padre André e do rabino pela alma de madame Rosa (p. 156); ou a vigília de Momo no esconderijo para o qual leva madame Rosa, em agonia, para preservá-la de ser mantida viva por aparelhos, o que ela, em definitivo não queria (p. 173 até o final). Uma grande história, que mostra uma Paris não turística que raramente aparece na ficção francesa.



Entre aspas: 


"É sempre nos olhos que as pessoas estão mais tristes" (pág. 28)
"(...) somos todos iguais quando estamos na merda (...)" (pág. 35)
"(...) os pesadelos são o que acontece com os sonhos quando envelhecem" (pág. 45)"



Curiosidades:

O Brasil é citado duas vezes neste romance. Quando o pai de Momo, Youssef Kadir, explica para madame Rosa que não a procurara antes por não saber o endereço, ele afirma: "O tio de Aïcha ficou com o recibo no Brasil" (p. 129). Depois, num discurso confuso para madame Rosa, Momo diz: "Madame Rosa, na América, têm todos os recordes do mundo, são grandes desportistas. Em França, no Olímpico de Marselha, são só estrangeiros. Até têm brasileiros e não sei que mais". (p. 153). 





Avaliação: MUITO BOM



(Junho, 2019)

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