segunda-feira, 1 de julho de 2019

Café Titanic (1925-1946)
Ivo Ándritch (1892-1975) - BÓSNIA
Tradução de Aleksandar Jovanovic 
São Paulo: Globo, 2008, 278 páginas



Há escritores que nunca saem do lugar e edificam obras-primas, como o brasileiro Machado de Assis (1836-1908) e sua Rio de Janeiro; há outros que, embora  se desloquem, mantêm-se firmemente ancorados em sua cidade natal, como o irlandês James Joyce (1882-1941), que fez de Dublin a verdadeira protagonista de seus romances e contos; e há alguns, privilegiados, como Ivo Ándritch, que tendo nascido em um inacreditável entrocamento de culturas, religiões e etnias, apenas precisam debruçar-se à janela para ver o mundo desfilar à sua frente. O Autor em questão desbravou terras, mas bastou olhar para seu pequeno país, situado mesmo na fronteira entre o Ocidente e o Oriente, para construir uma trajetória ímpar - como a obra-prima A ponte sobre o Drina, já tratado aqui neste espaço, em 23/04/2017. Mesmo quando escreve contos, o Autor se mostra excepcional, embora a narrativa breve não seja a forma onde se sente mais à vontade, já que sua imaginação exige grandes panoramas, com inúmeros personagens vivenciando histórias alargadas no tempo e no espaço. Ainda assim, insisto, o resultado dessa coletânea, que reúne dez contos, é primoroso - nele, encontramos pelo menos quatro joias da narrativa ocidental. "Uma carta de 1920"  é o relato sombrio de uma visão premonitória, a da Bósnia como "terra do ódio" (p. 39). Embora a narrativa abarque o período imediatamente pós-Grande Guerra e termine antes do início da Segunda Guerra Mundial, o teor da carta em questão antecipa, em várias décadas, o horror que viria tomar os Bálcãs, no conflito entre os antigos países que formavam a Iugoslávia (1991-2001). "Café Titanic" é a gênese de um caráter fascista: Siépan Kôvitch, ressentido, medíocre, invejoso, que durante anos amadurece "as suas inclinações para o mal" (p. 69) para exercê-la como paramilitar nazista - um terrível e assustador retrato que pode ser aplicado ao que está ocorrendo neste momento no Brasil. A bela fábula "Ponte sobre o Jepa" historia com lirismo a edificação da ponte em questão. "O delírio e o sofrimento de Toma Galus" coloca o homem frente à loucura dos tempos: o protagonista, que acaba de chegar a Trieste, vindo de Aden, é preso no primeiro dia após a declaração de animosidade do Império Austro-Húngaro contra o Reino da Sérvia, que seria o detonador do massacre insano chamado Grande Guerra, pelo simples fato de que ele era sérvio... Ivo Ándritch (ou Andric) é uma das melhores descobertas de toda a minha vida de leitor voraz.

E fica aqui uma lição do Autor para os dias que correm: "Quando (...) um governo e com ele uma ordem de coisas vai durando e enfraquecendo e começa a desmoronar, os seus funcionários não somente relaxam as vestes e os equipamentos mas também, de certo modo, se transformam fisicamente. Debilita-se-lhes a voz, inquieta-se o olhar, arqueiam as coisas e joelhos, como se um forro invisível sobre as cabeças os impedisse de endireitar-se. Em similares épocas de transição todas as relações alteram-se. Então tudo é possível. E então erguem-se e fortalecem-se os vendedores de galinhas." (pág. 194)




Entre aspas: 


"(...) a dor e a decepção conduzem o pensamento ao passado" (pág. 123)

"(...) sem se dar conta, ingressou naquele estado que é a primeira fase da morte, quando o homem passa a observar com mais interesse as sombras que os objetos projetam do que os próprios objetos" (pág. 131)



Avaliação: MUITO BOM



(Julho, 2019)

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