sexta-feira, 13 de outubro de 2017

O sol das independências (1970)
Ahmadou Kourouma (1927-2003) - COSTA DO MARFIM 
Tradução: Marisa Murray  
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, 170 páginas


Escrito em francês, este romance narra as agruras de Fama Doumbouya, da etnia malinké, príncipe de Horodougou, uma região situada na fronteira entre a Costa do Marfim e a Guiné (no livro, retratadas como Costa dos Ébanos e República Socialista do Nikinai). Fama vive há vinte anos na capital do país. Casado com Salimata, com quem não consegue ter filhos, mora no bairro negro, miserável e  desempregado, sempre evocando sua condição de nobre em um lugar e um tempo em que isso já não tem a menor importância. Dividido em três partes. na primeira acompanhamos Fama percorrendo as ruas sujas e caóticas da capital atrás de funerais que lhe proporcionam um meio de subsistência. Na segunda, acompanhamos os passos de Salimata vendendo papa doce e arroz cozido no setor comercial da cidade, e a busca, por meio da feitiçaria, da cura para sua infertilidade. Na terceira e última parte, após a morte de um primo, Fama vai até sua aldeia natal, Togobala, sem saber se assume ou não a condição de chefe do clã. Após cumprir seus deveres protocolares, ele abre mão de seu direito sucessório, volta à capital levando uma coesposa, Mariam, e acaba envolvendo-se em um complô contra o governo. Preso e torturado, quando libertado descobre que suas duas mulheres o abandonaram e, sem esperança, pensa em regressar, em definitivo, para as terras de seus ancestrais. A fronteira, no entanto, está fechada e, como ex-preso político, ele encontra-se impedido de deixar o país. Assim, ao invés de usar a ponte que separa a Costa dos Ébanos da República Socialista do Nikinai, ele tenta cruzar as águas do rio, sendo atacado e morto por um crocodilo. Crítica implacável contra os europeus, que dividiram aleatoriamente os territórios africanos em nome da colonização, mas também análise contundente da corrupção, ganância e indiferença da elite local que tomou o poder por meio de partidos únicos e interpretações totalitárias do socialismo. No fundo, o romance discute a impossibilidade de diálogo quando as diferenças culturais são ignoradas, por desconhecimento ou por interesses escusos. 


(Outubro, 2017)


Avaliação: BOM


Curiosidades:



1) Entre as páginas 28 e 40, o Autor descreve a impressionante excisão (remoção) do clitóris de Salimata, prática comum ainda hoje em certas regiões da África, seguida de um estupro pelo feiticeiro da tribo.
2) É interessante perceber como o islamismo descrito no livro é praticado de maneira bastante singular, mesclado com crenças animistas - algo muito similar ao que ocorre com o catolicismo no Brasil, apropriado pela umbanda e o candomblé: "O muçulmano escuta o Alcorão, o fetichista segue o Koma; mas (...) aos olhos de todo mundo, todo mundo se diz e respira muçulmano, sozinho cada um teme o feitiço". (p. 91)
3) O título do romance deveria ter sido traduzido como "Os sóis das independências" - mais coerente com seu conteúdo. Além disso, há inúmeros vocábulos totalmente desconhecidos que aparecem no texto sem qualquer referência, e que temos que adivinhar seu significado pelo contexto, como, entre outros, marabu, boubou, manes, toubab, harmatão, cafre...
4) Em alguns momentos, o realismo do Autor ao retratar costumes e hábitos africanos nos remete ao realismo mágico latino-americano. como por exemplo, os dois oráculos dos malinkés: a hiena "A Antiga" e a jiboia "Reverendo do Banhado" (p. 136 e seguintes).
 


Entre aspas:

"Todo poder ilegítimo traz, como a trovoada, o raio que queimará seu desgraçado fim". (pág. 84)

"(...) o escravo pertence ao seu dono; mas o o dono dos sonhos do escravo é o próprio escravo". (pág. 146)

"As pequenas conversas entre a pantera e a hiena honram a segunda mas rebaixam a primeira". (pág. 160)



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