sexta-feira, 16 de março de 2018

A porta (1987)
Magda Szabó (1917-2007) - HUNGRIA      
Tradução: Ernesto Rodrigues     
 Lisboa: Cavalo de Ferro, 2017, 234 páginas




Normalmente tenho profundo desinteresse por livros nos quais o narrador é um... escritor...  Mas, este romance, embora semi-autobiográfico, já que a narradora é uma importante escritora húngara chamada Magda, tem como protagonista a figura emblemática, complexa e profundamente humana de Emerence Szeredás. Emerence é porteira de um prédio em Budapeste, para onde fora aos 13 anos de idade, ao mesmo tempo em que se encarrega de serviços gerais nas casas dos moradores da rua. Magda e seu marido, também escritor, acabam necessitando de alguém para cuidar dos afazeres domésticos e contratam os serviços de Emerence. Em princípio, embora competente, honesta e diligente, o casal a enxerga apenas como um mal necessário à organização do lar, já que prezam, acima de tudo, a discrição e o silêncio. Mas, com o passar do tempo, a relação patrão-empregado se inverte e Emerence se adona de tudo: do cachorro ao cotidiano do casal, aproximando-se particularmente de Magda, com quem mantém uma relação tensa, misto de amor e desprezo. Afinal, quem é essa mulher ácida, incapaz de manifestações de afeto, sarcástica, impiedosa e de passado nebuloso? Aqui, a Autora desenvolve uma técnica formidável: vamos conhecendo a biografia de Emerence ao mesmo tempo que a narradora. Pouco a pouco, recompomos sua vida trágica, feita de perdas em cima de perdas - do pai, do padrasto, da mãe que se enforca ao ver os irmãos gêmeos mortos, atingidos por um raio, do noivo trucidado durante uma revolução, do amante que foge, dos patrões judeus perseguidos pelos nazistas, da menina que ela esconde para não ter o mesmo fim e que, ao crescer, se vai para o exterior. E, isso tudo, tendo como pano de fundo a história húngara, e européia, do século XX, desde a primeira guerra mundial até a distensão da década de 1970 - não explicitamente, mas de forma sutil, já que Emerence detesta a política e os políticos. A história coletiva determinando a história pessoal de Emerence, que formula, então, uma filosofia de vida, que busca seguir à risca: tenta seguir à risca: "não ame ninguém perdidamente, porque isso apenas o poderá levar à sua perda. Se não é logo, há-de ser mais tarde. O melhor é nunca amar ninguém, porque, assim, ninguém será feito em pedaços" (p. 120). É exatamente o que ocorre no final - como antecipa a narradora, à página 9: "eu matei Emerence. E pouco muda que eu não quisesse destruí-la, mas salvá-la". Romance forte, triste, feito de silêncios, de solidões, de desacertos, de culpas, remorsos e ressentimentos.

(Março, 2018)



Curiosidade: 
O capítulo intitulado A herança, (pág. 220-28), no qual a narradora se depara com vários móveis antigos, sua herança, segundo o  desejo de Emerence, guardados num quarto fechado há década, e que se deteriora quando exposto ao tempo, evoca de maneira idêntica aquela cena belíssima, comovente e inacreditável, de Roma (1972), do cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993), quando, durante a construção do metrô, os especialistas descobrem uma casa romana, cujos afrescos milenares desaparecem rapidamente, no momento em que o oxigênio de fora toma o local...





Avaliação: MUITO BOM  



Entre aspas: 


"(...) o afeto é um compromisso, uma paixão repleta de riscos e de perigos". (pág. 69)

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