sexta-feira, 30 de março de 2018

O amanuense  Belmiro (1937)
Cyro dos Anjos (1906-1994) - BRASIL       
 Belo Horizonte: Garnier, 2001, 234 páginas


Belmiro, 38 anos, funcionário burocrático de um organismo estatal sem importância, a Seção de Fomento Animal - "onde os homens esperam pachorrentamente a aposentadoria e a morte" (p. 207)  -, resolve, no natal de 1934, começar um diário, que se, a princípio, pretendia "apenas (...) reviver o pequeno mundo" do passado, "perseguindo imagens de um tempo que se foi" (p. 32), pouco a pouco vai compondo um "livro sentimental, de memória", onde a "história do presente (...) expulsou, definitivamente (...) a do passado" (p. 95). O diário de Belmiro atravessa 1935 - agitado em termos políticos, já que é o ano da chamada Intentona Comunista, que daria ensejo ao golpe que implantaria a ditadura de Getúlio Vargas em 1937 - e avança até o carnaval de 1936. O cenário é Belo Horizonte, a acanhada capital de Minas Gerais inaugurada há não muito tempo, que ainda mistura ares de modernidade (foi uma das primeiras cidades planejadas do país) com seus cafés, choperias, sorveterias, e traços da vida bucólica do interior. Belmiro transita nesse mundo: em casa, vive com duas irmãs, mais velhas, "criadas como bichos-do-mato" (p. 222) na fazenda dos Borba, em Vila Caraíbas, na qual vige o peso dos antepassados; na Seção do Fomento, assume um trabalho mal pago e inútil, mas que lhe dá a falsa sensação de estabilidade. Entre a casa e o emprego, os amigos do chope - o "homem sem história" Florêncio, o arrogante erudito Silviano, o subversivo Redelvim, o jovem Glicério, a desejada e inconquistada Jandira - e os amigos da rua, Giovanni, Prudêncio, Carolino. Os dias passam e Belmiro, esse "fruto chocho do ramo vigoroso dos Borba" (p. 27),  registra-os em capítulos curtos, apondo observações com tintas filosóficas. Desencantado, o amanuense percebe o vazio de sua vida, onde quase nada acontece: uma paixão platônica e fugaz, a prisão e a soltura de Redelvim, diálogos com Silviano a respeito de um livro que este diz que está escrevendo, uma viagem ao Rio de Janeiro, a internação da irmã Francisquinha num asilo de alienados e depois sua morte, a saída de Glicério da Seção de Fomento... Ninharias de uma existência apagada... Embora o romance tenha clara filiação a Machado de Assis - admiração que o narrador não esconde (V. p. 200) -, o Autor consegue impor sua personalidade, guindando o livro a um raro momento de altitude da literatura brasileira. Há uma coisa que me incomoda profundamente: a mimetização da fala "errada" das irmãs do narrador, únicas a ganharem esse tipo de registro ao longo de todas as páginas, o que chega a ser até mesmo incoerente com a descrição do pai, cuja "formação intelectual era de bom fundo humanístico", sendo "sólido no vernáculo e seguro em matemáticas e história" (p. 119), e mesmo da mãe, do tronco dos Maias, que "eram finos" (p. 120). 



(Março, 2018)

Entre aspas:

"As coisas não estão no espaço (...); as coisas estão no tempo". (pág. 97)



Avaliação: MUITO BOM 


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