segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Viagens de Gulliver (1726)
Jonathan Swift (1667-1745) - INGLATERRA 
Tradução: Octavio Mendes Cajado 
São Paulo: Abril, 1971, 276 páginas 



Nunca entendi como este magnífico romance pôde ter sido transformado em uma banal aventura juvenil, quando se trata de um dos melhores exemplos da mescla de paródia e sátira da literatura universal. O título "Viagens em diversos países remotos do mundo, em quatro partes, por Lemuel Gulliver, a princípio cirurgião e, depois, capitão de vários navios" é uma referência jocosa tanto aos romances de cavalaria de épocas anteriores, quanto às narrativas dos chamados "naturalistas", estudiosos das ciências naturais que exploravam os continentes recém-descobertos e os descreviam do ponto de vista botânico, zoológico, geológico e antropológico, muito em voga no século XVIII. Gulliver, aliás, deixa claro que, muito mais que apresentar "descrições de maravilhosos animais, assim no mar como na terra", seu intuito é informar ao leitor, "e não divertir" (p. 271). Este livro, portanto, é a "história fiel" de suas andanças, durante 16 anos e sete meses, por regiões desconhecidas. Dividido em quatro partes, a narrativa expõe uma visão ácida e bastante pessimista da civilização ocidental, tanto no que concerne aos hábitos e costumes da população, quanto aos sistemas jurídico, político, econômico e social. É curioso que sua postura crítica vai se radicalizando à medida em que as páginas se sucedem. Para conseguir maior verossimilhança, sua descrição é absolutamente realista. A primeira aventura, por exemplo, é assim apresentada: "Saímos de Bristol no dia 4 de maio de 1699 e a nossa viagem foi, a princípio, muito próspera" (p. 24). Após um naufrágio, Gulliver desembarca em Lilipute, com certeza a mais célebre de suas geografias: um lugar onde as criaturas humanas não alcançavam 15 centímetros de altura* e o narrador, portanto, é encarado com um gigante. Entre os liliputianos, Gulliver vive por nove meses e constata a pequenez dos nossos atos refletida na mentalidade daqueles seres minúsculos. Apanhado no meio de um conflito entre os partidários de quebrar os ovos pela ponta mais fina (que encontravam-se no poder) e os que para comê-los quebravam-nos pelas pontas mais grossas (a oposição), Gulliver vê-se, pelo seu tamanho, constrangido a ajudar o rei a tornar os adversários em escravos, o que recusa. Ao apagar, mijando, um incêndio nas dependências da rainha - "em três minutos extinguiu o fogo" (p. 53) - cai em desgraça, voltando à Inglaterra no dia 13 de abril de 1702. Dois meses depois, no entanto, já está no navio Adventure, a caminho da Índia. No dia 17 de junho de 1703 é abandonado pelos companheiros em uma ilha, Brobdingnag, onde as pessoas têm cerca de 19 metros de altura, o que o leva a afirmar que "têm seguramente razão os filósofos quando afirmam que nada é grande nem pequeno senão em relação a outras coisas" (p. 82). Após inúmeras conversas com o rei de Brobdingnag, sinceramente interessado em saber notícias do país de onde Gulliver provém, conclui que "durante o último século" a história da Inglaterra resumia-se a uma sucessão de "conspirações, revoltas, assassínios, chacinas, revoluções, desterros" (p. 120). Três anos depois, Gulliver volta a seu país, porém, ambicioso, lança-se ao mar novamente e em meados de 1707 a chalupa que comandava é abordada por piratas na região de Tonquim (norte do Vietnã) e ele é largado em uma ilha - cuja capital, Laputa, tem como característica ser uma "ilha volante ou flutuante" (p. 149). Gulliver conhece também a metrópole, na parte continental, chamada Lagado. Os habitantes dessas terras passam todo o tempo em infindáveis e inúteis projetos especulativos: "posto sejam destros diante de um pedaço de papel, no manejo da régua, do lápis e do compasso, nunca vi nos atos comuns e na maneira de viver povo mais tosco, desajeitado e desastrado, nem tão lento e confuso em suas concepções sobre todos os outros assuntos, tirante a matemática e a música" (p. 151). De Lagado, Gulliver se dirige a Glubbdubdrid, quando, tendo a oportunidade de rever todo o passado da Humanidade, confessa: "deleitei principalmente os olhos na contemplação dos que haviam destruído os tiranos e usurpadores da liberdade das nações oprimidas e agravadas" (p. 181-182). Em 21 de abril de 1708, Gulliver alcança o porto de Luggnagg, onde conhece algumas pessoas marcadas pela imortalidade, ideia que, em princípio, encanta o narrador, que pensa até mesmo em levar algumas delas para o Ocidente. Logo, desiste, pois "sendo a avareza a consequência necessária da velhice, tornar-se-iam com o tempo esses imortais proprietários de toda a nação, e monopolizariam o poder civil, o que, por falta de habilidade em seu manejo, redundaria, fatalmente, na ruína do povo" (p. 199). De Luggnagg, Gulliver alcança o Japão e lá consegue embarcar para Amsterdã, chegando no dia 16 de abril de 1710 à Inglaterra. Mal decorrem cinco meses e Gulliver já se acha em mar aberto outra vez. Um ano depois, comandando um navio mercante de 350 toneladas, enfrenta um motim e é deixado em um bote à deriva. Por sorte, aporta na terra dos Houyhnhnms, cavalos inteligentes e sofisticados, que adestram yahoos, humanos primitivos "que se alimentavam de raízes e da carne de alguns animais" (p. 214), para a prestação de serviços braçais. Na mais desencantada de todas as seções, Gulliver mantém longuíssimos diálogos com o seu amo, em discursos que parecem nascer da pena do filósofo alemão Karl Marx (1818-1883): "Os ricos logravam o fruto do trabalho dos pobres, e estes eram mil vezes mais numerosos do que os que primeiros. A quase totalidade do nosso povo era obrigada a viver miserabilissimamente, trabalhando o dia inteiro em troco de pequenos salários, a fim de que uns poucos vivessem em abundância" (p. 237). Após três anos de convívio com os Houyhnhnms, Gulliver perde a vontade de regressar à Inglaterra, mas é obrigado a fazê-lo. Recolhido por um navio português, chega em definitivo à Inglaterra no dia 5 de dezembro de 1715. Instado a guiar seus compatriotas aos lugares que conheceu, Gulliver rejeita com veemência, por meio de um magnífico libelo anticolonialista: "Suponhamos que um navio de piratas seja atirado por uma tempestade a algum lugar desconhecido; afinal, um grumete avista terra do mastaréu, descem os piratas para roubar e saquear; encontram um povo inofensivo, são recebidos com bondade, dão ao país um novo nome; tomam dele posse formal em nome de seu rei, erguem, à guisa de marco, uma pedra ou uma tábua podre; trucidam duas ou três dúzias de nativos, carregam outras duas, à força, como amostra; voltam para casa e obtêm o seu perdão. Aqui principia um novo domínio, adquirido com um título de direito divino. Remetem-se os navios na primeira oportunidade; os nativos são expulsos ou destruídos; os seus príncipes, torturados para que revelem onde está o seu ouro; concede-se plena licença para todos os atos de desumanidade e concupiscência, ao passo que a terra fumega com o sangue dos seus habitantes, e esta horda execrável de carneiros, empregados em tão pia expedição, são modernos colonizadores, enviados a converter e civilizar um povo idólatra e bárbaro" (p. 274). Leitura obrigatória nos dias que seguem, principalmente em países onde "o trono real não poderia ser sustentado sem a corrupção, pois o caráter seguro, confiante e obstinado que a virtude infundia num homem era um perpétuo embaraço aos negócios públicos" (p. 185). 



(Fevereiro, 2017)

Avaliação: OBRA-PRIMA    


* Irritante e incompreensível a mania dos tradutores não traduzirem medidas: assim, neste livro, a altura é mensurada em pés; as distâncias em jardas; o volume, em onças - o que não quer dizer absolutamente nada para nós, que utilizamos o sistema métrico decimal.



Curiosidade:

1) A famosíssima cena do filme King-Kong (de 1933 e refilmado em 1976 e 2005), em que a Ann Darrow é sequestrada pelo imenso gorila e levada para o alto do Empire State Building certamente foi inspirada neste trecho do livro: "(...) o macaco (...) agarrou-me, por fim, (...) e puxou-me para fora. Tomou-me com a mão direita e segurou-me como o fazem as amas quando dão de mamar a uma criança (...) Tenho boas razões para supor que ele me tomasse por um filhote de sua própria espécie, pois me acariciava repetida e delicadamente o rosto com a outra mão. (...) pulou subitamente para a janela (...) e, daí, pelos eirados e algerozes, caminhando sobre três patas e segurando-me com a quarta, subiu a um telhado próximo do nosso. (...) o macaco foi visto por centenas de pessoas na corte, assentado sobre a cumeeira de um edifício (...)" (p. 112)



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