domingo, 10 de março de 2019

Triste fim de Policarpo Quaresma (1911)
Lima Barreto (1881-1922BRASIL 
São Paulo: Ateliê, 2001, 315 páginas





Talvez pudéssemos resumir a vida do idealista Policarpo Quaresma como "um encadeamento de decepções" (p. 287). Discordo das leituras que consideram esse romance como uma narrativa satírica - se, em alguma medida, carrega os traços grossos da sátira, o que permanece, muito mais que o retrato de um homem ingênuo lutando contra as forças da opressão, é o profundo sentimento de compreensão do Autor em relação à inviabilidade do Brasil como nação, ou seja, como coletividade. Policarpo Quaresma, mais conhecido como Major Quaresma, "um homem pequeno, magro, que usava pince-nez" (p. 51), leva uma vida pacata de subsecretário do Arsenal de Guerra, morando "em casa própria e tendo rendimentos, além do seu ordenado", e goza de "consideração e respeito" da vizinhança (p. 50).  Seu traço mais contundente é ser nacionalista - "desde moço (...) o amor à Pátria tomou-o por inteiro" -não por "ambições políticas ou administrativas", mas porque, possuindo um "conhecimento inteiro do Brasil", poderia "apontar os remédios, as medidas progressivas" (p. 53) para o pleno florescimento do país. Ele leva seu apego nacionalista ao extremo: não usa nada estrangeiro e na chácara em São Januário, onde mora com a irmã, dona Adelaide, predominam as frutas nacionais. As pessoas mais próximas são seu vizinho, general Albernaz, um militar que durante toda a sua carreira "não viu uma única batalha, não tivera um comando, nada fizera em relação à sua profissão e o seu curso de artilheiro" (p. 67), e Vicente Coleoni e sua filha, Olga, de quem era padrinho. Italiano, Coleoni, tendo começado como quitandeiro, fez-se empreiteiro, graças à ajuda de Quaresma, e enriqueceu, mantendo forte amizade com seu benfeitor. Um dia, Quaresma resolve tomar lições de violão, para ele um instrumento nacional por excelência, mas mal visto pela sociedade por estar relacionado às classes populares e à malandragem. Seu professor é um conhecido cantor e compositor de modinhas, Ricardo Coração dos Outros, de quem se torna amigo. O comportamento de Quaresma vai, aos olhos de seus vizinhos e colegas de repartição, se tornando cada vez mais extravagante, como quando, por exemplo, decide receber as visitas não com apertos de mão, mas "a chorar, a berrar, a arrancar os cabelos" (p. 76), pois assim faziam os tupinambás, nossos ancestrais. Ou ainda como quando envia um requerimento ao Congresso Nacional solicitando que seja decretado o "tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro" (p. 99). Por essas e outras, Quaresma é internado num hospício da Praia das Saudades, onde passa seis meses e constata que pensar "consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens" (p. 112). Após esse período, vende a chácara e adquire um sítio chamado Sossego, em Curuzu, a duas horas do Rio, por estrada de ferro, para levar a termo suas ideias agrícolas. Enfrentando saúvas, pestes que dizimam o galinheiro, terras ruins, ele investe em equipamentos e emprega mão de obra local, para afinal descobrir que os ganhos da produção são pífios, a maior parte carreada para atravessadores, fretes, impostos. Com o estouro da revolta da Armada, evento histórico ocorrido em 1893, rebelião da Marinha contra o presidente-ditador Floriano Peixoto, o Major Quaresma abandona a agricultura e se integra às tropas fiéis ao governo. No entanto, Quaresma conhece apenas mais decepções - a mais grave, quando se indigna contra o fuzilamento de rebeldes, presos sob sua responsabilidade, e envia uma carta a Floriano escrita "com veemência, com paixão" (p. 286), denunciando aquela cena que "desafiara a sua coragem moral e sua solidariedade humana" (p. 286). Por conta disso, é encarcerado e condenado à morte. Ricardo Coração dos Outros busca entre os antigos amigos de Quaresma alguém que pudesse intervir a ser favor, mas todos se negam, ocupados em manterem-se bem com o governo ditatorial. A única pessoa, além de Ricardo, a se preocupar com Quaresma é sua afilhada, Olga. Ela recorre às autoridades, mas percebe que "com tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a mácula de um empenho que diminuísse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos seus algozes que eles tinham direito de matá-lo" (p. 297).  É interessante ressaltar, ainda, o pensamento progressista do Autor, seja em relação ao feminismo (o texto em diversos momentos questiona o casamento e o papel da mulher na sociedade); seja ironizando o beletrismo (por exemplo: "escrevia do modo comum, com as palavras e o jeito de hoje: em seguida invertia as orações, picava o período com vírgulas e substituía incomodar por molestar, ao redor por derredor, isto por esto" etc (p. 228); seja escancarando o desprezo da nossa elite pela cultura letrada: "Aquele Quaresma podia estar bem, mas foi meter-se com livros..." (p. 158). Narrativa tristíssima, de profunda desilusão com a vida política e com o comportamento humano, retrata personagens egoístas movidos por interesses mesquinhos. Quaresma, que no começo pensava que o Brasil "tinha todos os climas, todos os frutos, todos os minerais e animais úteis, as melhores terras de cultura, a gente mais valente, mais hospitaleira, mais inteligente e mais doce do mundo" (p. 66), no final descobre que levara a vida toda "atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir pra a sua felicidade e prosperidade. Gastara toda a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o" (p. 286). Terrível constatação: "entre nós tudo é inconsistente, provisório, não dura" (p. 68). Por fim, a crítica brasileira insiste em colocar o Autor no escaninho do "pré-modernismo", conceito vazio e inútil, apenas para manter a ilusão de que somente em 1922, a partir de uma semana de arte da qual poucos souberam, a literatura brasileira passou a ser "moderna"...



Avaliação: MUITO BOM



(Março, 2019)

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