Senhora (1875)
José de Alencar (1829-1877) - BRASIL
José de Alencar (1829-1877) - BRASIL
Rio de Janeiro: LTC, 1979, 277 páginas
Aurélia Camargo tem 18 anos, é órfã, "rica e formosa" (p. 5). Nos salões da Corte, "convencida de que todos os seus inúmeros apaixonados, sem exceção de um, a pretendiam unicamente pela riqueza" (p.7), cota seus adoradores, "com frio escárnio" (p. 8), pelo preço que poderiam obter no "mercado matrimonial" (p. 7). Embora deixe-se adular por este ou aquele, ela se interessa mesmo é por Fernando Rodrigues de Seixas, "moço que ainda não chegou aos trinta anos" (p. 36), "filho de um empregado público e órfão aos 18 anos, (...) obrigado a abandonar seus estudos na Faculdade de São Paulo pela impossibilidade em que se achou sua mãe de continuar-lhe a mesada" (p. 30). Fernando, ele mesmo funcionário público, tem uma moral bastante flexível. Explora a mãe e as duas irmãs, cujos rendimentos provêm de um dinheiro deixado pelo falecido marido que ela "pôs a render na Caixa Econômica, donde ia tirando os juros semestrais, com que acudia aos gastos da casa, ajudada dos aluguéis de dois escravos e também de algumas costuras dela e das duas filhas" (p. 30). Em Fernando, "firmou-se (...) a convicção de que o luxo era não somente a porfia infalível de uma ambição nobre, como o penhor único da felicidade de sua família" (p. 35). E cinicamente vive numa casa onde, "se o edifício e os móveis estacionários e de uso particular denotavam escassez de meios, senão extrema pobreza; a roupa e os objetos de representação anunciavam um trato da sociedade, como só tinham cavalheiros dos mais ricos e francos da corte" (p. 25). Aurélia, no entanto, não havia nascido rica. Sua mãe, Emília, conhecera um estudante de medicina no Rio de Janeiro, Pedro, filho natural de um fazendeiro abastado de Minas Gerais, Lourenço de Sousa Camargo. Pedro casou-se com ela, em segredo, mas nunca conseguiu assumir essa relação publicamente, embora tivessem dois filhos, Aurélia e Emílio. Covarde, Pedro temia que, contando ao pai o casamento com moça pobre, ele o deserdaria. Assim, Emília viveu os anos como se mãe solteira fosse, condenada por todos. Nessa época, Aurélia conheceu Fernando, com quem chegou a ficar noiva. Mas, ambicioso, Fernando a troca por Adelaide Amaral, "por um dote de trinta contos de réis", segundo carta anônima (p. 95). Nesse meio tempo, seu pai morre, em Minas Gerais, e seu avô, vindo a descobrir a família secreta do filho, deixa toda sua fortuna como herança a Aurélia - tanto sua mãe quanto seu irmão haviam morrido. Milionária, Aurélia resolve vingar-se de Fernando. Por meio de seu tutor, Lemos, faz uma proposta a ele: a família de uma moça misteriosa desejava casá-la, "com separação de bens, dando ao noivo a quantia de cem contos de réis de dote" (p. 22) - quase nada perto de uma fortuna que chega a cem mil contos (p. 28). Endividado, devido às suas extravagâncias, Fernando renuncia ao casamento certo com Adelaide Amaral e vem a descobrir que a "moça misteriosa" é sua antiga paixão, Aurélia, a mais cobiçada das jovens solteiras da Corte. Após o casamento, Fernando percebe que Aurélia nutria por ele imenso desprezo e ódio: "precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o" (p. 68), ela lhe joga na cara. Eles passam então a manter uma vida hipócrita: para o público, um casal perfeito e feliz; entreparedes, a solidão de uma relação não consumada. Fernando se transforma, então. Não aceita usar nada que Aurélia reservou para ele: "Tudo, jóias, perfumarias, utensílios de toucador, roupa, tudo ali estava guardado, em folha, como viera da loja" (p. 137). De funcionário relapso tornas-se em empregado exemplar - "Vivi muitos anos à custa do Estado ()...); é justo que também ele viva um tanto à minha custa", diz ele (p. 132). Até que, onze meses após a cerimônia do casamento, Fernando consegue juntar dinheiro suficiente para resgatar sua liberdade. Recebe um montante da venda de um privilégio para exploração de uma mina de cobre em São Paulo, que, por meios ilícitos, ajudara a ser autorizada por um ministro (quinze contos), que, junto com o dinheiro que guardou de seus vencimentos na repartição pública (seis contos) e o cheque nunca descontado de oitenta contos, perfazem cento e um contos e uns quebrados (o um conto e os quebrados são relativos aos juros pelo tempo decorrido desde o casamento). Só então Aurélia o perdoa e consumam o casamento. Romance que advoga o casamento por amor contra o casamento por interesse, Aurélia surge ao leitor como uma mulher inteligente e pragmática - "sabe mais do que muitos homens que aprenderam nas academias" (p. 11), e independente, embora subsistam laivos do patriarcalismo - "a natureza dotara Aurélia com a inteligência viva e brilhante da mulher de talento, que se não atinge ao vigoroso raciocínio do homem, tem a preciosa ductibilidade de prestar-se a todos os assuntos, por mais diversos que sejam" (p. 77), afirma o narrador. Romance sobre um "casamento póstumo de um amor extinto" (p. 153), de alguma maneira questiona o poder do dinheiro e as consequências nefastas de uma sociedade baseada apenas na busca desenfreada do poder que ele proporciona.
Curiosidade:
O Autor, lá pelas tantas, resolve destilar sua mágoa com o pobre cenário do mercado literário brasileiro e seu rancor com as críticas injustas à sua obra. Durante uma conversa de Aurélia com uma pessoa não identificada, o narrador comenta: "Aconteceu uma noite cair a conversa em assunto de literatura nacional. / Fato raro. Entre nós há moda para tudo nos salões; menos para as letras pátrias (...). / - Já leram a Diva? [romance do próprio Alencar] / Respondeu um silêncio cheio de surpresa. Ninguém tinha notícia do livro, nem supunham que valesse a pena de gastar o tempo com essas coisas. / - É um tipo fantástico, impossível! sentenciou o crítico. / Acrescentou ele ainda algumas coisas acerca do romance, cujo estilo censurou de incorreto, cheio de galicismos, e crivado de erros de gramática". (pág. 173)
Primeiro parágrafo:
Primoroso o começo do romance:
"Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela. / Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro; foi proclamada a rainha dos salões. / Tornou-se a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade. / Era rica e formosa. / (...) Quem não se recorda de Aurélia Camargo, que atravessou o firmamento da corte como brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio do deslumbramento que produzira seu fulgor?" (pág. 5)
Avaliação: MUITO BOM
(Março, 2019)
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