quarta-feira, 21 de setembro de 2016


Cem anos de solidão (1967) 
Gabriel García Márquez (1927-2014) - Colômbia      
Tradução: Eliane Zagury  
São Paulo: Globo, 2003, 383 páginas


O maior mérito desse romance é também o seu maior defeito. O clima de realismo mágico* que nos encanta nas cem primeiras páginas, já não nos desconcerta nas cem seguintes e torna-se cacoete nas cem últimas. Ainda assim, impossível não reconhecer no livro as características das grandes narrativas - poucos, como ele, conseguem ter tanto um início quanto um fim dignos de figurar em antologias (cf. abaixo). Acompanhamos com paixão e deslumbramento a história dos Buendía, clã liderado pela mais que centenária Úrsula, cuja decadência se alicerça em "quatro calamidades", : "(...) guerra, galos de briga, mulheres da vida e empresas delirantes (...)" (p. 176). A família, cofundadora do povoado de Macondo, lugar inóspito situado em algum canto da Colômbia, entre o litoral e as montanhas, serve como uma espécie de síntese da tragédia, individual e coletiva, que se abate sobre a América Latina, terra onde o tempo não passa, mas gira em círculo (p. 309).  De arraial acanhado a centro progressista e de novo vilarejo descaído, Macondo se extasia com ciganos novidadeiros, fascina-se com as técnicas de cultivo da banana trazidas pelos norte-americanos, sofre com as guerras intermináveis entre liberais e conservadores, se intimida com a opressão, seja a provocada pelo governo, seja pela Igreja. E os Buendía, Arcadio e Aureliano quase todos os machos, isolam-se em sua "casa de loucos" entre incestos, pedofilia, parentes arruinados, outros enlouquecidos, uns que buscam poder e glória por meio da guerra, outros que sonham em decifrar o livro da vida - enfim, a riqueza e a miséria de uma crônica familiar comum, que torna-se singular pela forma com que é contada. Nela, pessoas voam, chuvas duram anos, homens e mulheres custam a morrer, fantasmas convivem com os vivos, trens cheios de cadáveres correm pelos trilhos - mas nada é alegórico, tudo é absurdamente real, cotidiano, banal.  


* Embora bastante anterior, o realismo mágico, movimento exclusivamente hispano-americano, ganhou visibilidade na década de 1960, ao ser "descoberto" pelos europeus. Gabriel García Márquez é um dos nomes mais expressivos deste fenômeno literário. Três pontos fundamentais ancoram a narrativa em Cem anos de solidão: a adjetivação compulsiva, o que dá um tom lírico às coisas; a "precisão" da informação: "choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias" (p. 289); e a surpresa dos acontecimentos inusitados. 

** Uma curiosidade: à página 275, o autor faz uma homenagem a seu colega mexicano, Carlos Fuentes (1928-2012), ao inventar uma personagem, o coronel da revolução mexicana, Lorenzo Gavilán, exilado em Macondo, "(...) que dizia ser testemunha do heroísmo do seu compadre, Artemio Cruz" - Artemio Cruz é o protagonista do romance A morte de Artemio Cruz, publicado em 1962.

*** Há, na página 321, uma interessante especulação a respeito do tempo: "(...) o tempo sofria tropeços e acidentes e podia, portanto, se estilhaçar e deixar num quarto uma fração eternizada". (p. 321) 


Avaliação: MUITO BOM  

(Setembro, 2016)


Entre aspas


"A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele." (p. 18)

"Não sentiu medo nem saudade, mas uma raiva intestinal diante da ideia de que aquela morte artificial não lhe permitiria saber do final de tantas coisas que deixava sem terminar." (p. 120)

"(...) não se morre quando se deve, mas quando se pode." (p. 223)



Primeiro parágrafo:

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos".



Último parágrafo:

"(...) estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra".

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