segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Sagarana (1946) 
João Guimarães Rosa (1908-1967) - Brasil       
Rio de Janeiro, José Olympio,1967, 365 páginas



Composto por nove contos, aqui nos deparamos com duas obras-primas da literatura ocidental, "Duelo" e "A hora e a vez de Augusto Matraga", e mais duas ótimas narrativas curtas, "A volta do marido pródigo" e "Sarapalha". O que às vezes prejudica a fruição do livro é a interferência - e até mesmo em certas passagens a supremacia - do olhar do estudioso (antropólogo, naturalista, folclorista) sobre o ficcionista. O autor, de tempos em tempos, entusiasma-se com seus conhecimentos de plantas e animais e passa a exibi-los em detrimento da execução do enredo. Isso acontece, de maneira mais evidente, na tragicômica história de traição de "O burrinho pedrês", no terrível caso de enfeitiçamento de "São Marcos" ou na tristíssima destinação do menino carreiro Tiãozinho, em "Conversa de bois"*. Ainda assim, é inegável a força fabulatória do autor, que reconta, de um jeito "diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco" (p. 283) causos recolhidos em suas andanças pelo sertão mineiro**.  "A hora e a vez de Augusto Matraga" é exemplar, uma peça ficcional digna de figurar em qualquer antologia dos melhores contos universais. Nhô Augusto Esteves é uma "cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação" (p. 328) - homem que não respeita nada nem ninguém, violento e cruel, até o dia em que perde de uma só vez a mulher, a filha, as terras, o poder. Dado como morto após uma surra terrível, é encontrado e tratado por um casal miserável, que o reensina a confiar em Deus e a purgar seus pecados. Nhô Augusto então decide entrar no céu, "nem que seja a porrete" (p. 337). Muda-se, com seus salvadores, para uma terra distante, e lá vive seis ou sete anos, anônimo, dedicado às rezas e ao trabalho. Mas um dia cruza com Joãozinho Bem-Bem e sua tropa, cuja natureza rebelde e belicosa o desestabiliza emocionalmente. Ele sentirá necessidade de buscar o chefe dos jagunços, como a cumprir um destino inexorável, com quem irá duelar em nome do Bem contra o Mal, por uma última vez. A história de Augusto Matraga - aquele que traz o mal? - é uma espécie de paráfrase da história de Jesus: a paixão e a redenção pela dor e pela morte***.  


* Interpolações como a história de João Manico, em "O burrinho pedrês" (p. 53-58); o conto popular sobre o sapo e o cágado, em "A volta do marido pródigo" (p. 90-91); a enumeração do "gadinho de asa", em "Duelo" (p. 153-154); o caso de Gestal da Gaita que ocupa quase cinco páginas em "São Marcos" (p, 230-234) ou, no mesmo conto, os poemas escritos em bambus (p. 234-237), por exemplo, em nada contribuem para a economia da história que vai narrada.
** O autor é a prova viva de que a universalidade de uma narrativa de ficção decorre de sua singularidade. Todos os contos caracterizam-se, além da recriação do linguajar regional (no caso, o mineirês), por uma geografia bem delimitada do interior de Minas Gerais. Ora explicitada: "O burrinho pedrês", vale do rio das Velhas; "A volta do filho pródigo", região de Brumadinho à época da construção da estrada de rodagem Belo Horizonte-São Paulo; "Sarapalha", beira do rio Pará;  "Duelo", "19º de latitude S. e a 44º de longitude O." (p. 141), que coincide mais ou menos com o que é hoje a cidade de Contagem. Ora, em referências obscuras, mas reconhecíveis: "Minha gente", "Conversa de bois" e "A hora e a vez de Augusto Matraga". No conto "Corpo fechado" podemos depreender que se trata da região de Itaguara, pois o narrador é médico, como médico foi João Guimarães Rosa naquela cidade. 
 *** O passado de crimes e pecados de Augusto Matraga representa, de maneira sacrílega, o passado da Humanidade, por quem ele terá de morrer. A perda de tudo (mulher, filha, terras, poder) e a surra significam a provação para alcançar a liberdade da alma. O casal de miseráveis que o acolhe é a sua nova família, que o reensina a rezar e a temer a Deus e o inferno. E sua morte lutando contra o Mal (ironicamente representado por seu Joãozinho Bem-Bem) é a redenção pelo auto-sacrificio. Na p. 354, há uma referência explícita à história bíblica, quando Mãe Quitéria o convence a ir embora montado num jumento, "um animalzinho assim meio sagrado, muito misturado às passagens da vida de Jesus" (p. 354).

Curiosidades:
1. É estranho como o autor, para dar verossimilhança às suas histórias, recria a linguagem mineira de forma tão perfeita que parece simplesmente - o que está longe de ser verdade - transcrevê-la, mas quando reproduz a linguagem dos baianos, por exemplo, limita-se a caricaturá-la (Ver p. 156).
2. É interessante aproximar João Guimarães Rosa de Coelho Neto (1864-1934), pela linguagem barroca, caudalosa e exuberante; de Hugo de Carvalho Ramos (1895-1921), pela escolha temática (comparar, por exemplo, os contos "Minha gente" e "Gente da gleba") e de  Afonso Arinos (1868-1916), uma espécie de precursor em quem já se nota, em tom menor, a linguagem e os motivações roseanas.



Avaliação: MUITO BOM  

(Setembro, 2016)


Entre aspas


"É andando que cachorro acha osso". (p. 60)

"Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão..." (p. 176)

"Raspe-se um pouco qualquer mineiro: por baixo, encontrar-se-á o político..." (p. 184)

"Um homem não é mais forte do que um boi... E nem todos os bois obedecem sempre ao mesmo homem..." (p. 288)

"O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho..." (p. 290)

"(...) capiau de testa peluda, com o cabelo quase nos olhos, é uma raça de homem capaz de guardar o passado em casa, em lugar fresco perto do pote, e ir buscar da rua outras raivas pequenas, tudo para ajuntar à massa-mãe do ódio grande, até chegar o dia de tirar vingança". (p. 329)  

"Cada um tem a sua hora e a sua vez (...)" (p. 336)






quarta-feira, 21 de setembro de 2016


Cem anos de solidão (1967) 
Gabriel García Márquez (1927-2014) - Colômbia      
Tradução: Eliane Zagury  
São Paulo: Globo, 2003, 383 páginas


O maior mérito desse romance é também o seu maior defeito. O clima de realismo mágico* que nos encanta nas cem primeiras páginas, já não nos desconcerta nas cem seguintes e torna-se cacoete nas cem últimas. Ainda assim, impossível não reconhecer no livro as características das grandes narrativas - poucos, como ele, conseguem ter tanto um início quanto um fim dignos de figurar em antologias (cf. abaixo). Acompanhamos com paixão e deslumbramento a história dos Buendía, clã liderado pela mais que centenária Úrsula, cuja decadência se alicerça em "quatro calamidades", : "(...) guerra, galos de briga, mulheres da vida e empresas delirantes (...)" (p. 176). A família, cofundadora do povoado de Macondo, lugar inóspito situado em algum canto da Colômbia, entre o litoral e as montanhas, serve como uma espécie de síntese da tragédia, individual e coletiva, que se abate sobre a América Latina, terra onde o tempo não passa, mas gira em círculo (p. 309).  De arraial acanhado a centro progressista e de novo vilarejo descaído, Macondo se extasia com ciganos novidadeiros, fascina-se com as técnicas de cultivo da banana trazidas pelos norte-americanos, sofre com as guerras intermináveis entre liberais e conservadores, se intimida com a opressão, seja a provocada pelo governo, seja pela Igreja. E os Buendía, Arcadio e Aureliano quase todos os machos, isolam-se em sua "casa de loucos" entre incestos, pedofilia, parentes arruinados, outros enlouquecidos, uns que buscam poder e glória por meio da guerra, outros que sonham em decifrar o livro da vida - enfim, a riqueza e a miséria de uma crônica familiar comum, que torna-se singular pela forma com que é contada. Nela, pessoas voam, chuvas duram anos, homens e mulheres custam a morrer, fantasmas convivem com os vivos, trens cheios de cadáveres correm pelos trilhos - mas nada é alegórico, tudo é absurdamente real, cotidiano, banal.  


* Embora bastante anterior, o realismo mágico, movimento exclusivamente hispano-americano, ganhou visibilidade na década de 1960, ao ser "descoberto" pelos europeus. Gabriel García Márquez é um dos nomes mais expressivos deste fenômeno literário. Três pontos fundamentais ancoram a narrativa em Cem anos de solidão: a adjetivação compulsiva, o que dá um tom lírico às coisas; a "precisão" da informação: "choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias" (p. 289); e a surpresa dos acontecimentos inusitados. 

** Uma curiosidade: à página 275, o autor faz uma homenagem a seu colega mexicano, Carlos Fuentes (1928-2012), ao inventar uma personagem, o coronel da revolução mexicana, Lorenzo Gavilán, exilado em Macondo, "(...) que dizia ser testemunha do heroísmo do seu compadre, Artemio Cruz" - Artemio Cruz é o protagonista do romance A morte de Artemio Cruz, publicado em 1962.

*** Há, na página 321, uma interessante especulação a respeito do tempo: "(...) o tempo sofria tropeços e acidentes e podia, portanto, se estilhaçar e deixar num quarto uma fração eternizada". (p. 321) 


Avaliação: MUITO BOM  

(Setembro, 2016)


Entre aspas


"A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele." (p. 18)

"Não sentiu medo nem saudade, mas uma raiva intestinal diante da ideia de que aquela morte artificial não lhe permitiria saber do final de tantas coisas que deixava sem terminar." (p. 120)

"(...) não se morre quando se deve, mas quando se pode." (p. 223)



Primeiro parágrafo:

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos".



Último parágrafo:

"(...) estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra".

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Nazarín (1895) 
Benito Pérez Galdós (1843-1920) - Espanha     
Tradução: Reynaldo Guarany  
Rio de Janeiro : José Olympio, 1990, 185 páginas



O protagonista, o ingênuo e idealista padre Nazario Zaharín ou Zajarín, é um personagem quixotesco, filiação que o autor não esconde, de forma explícita ao fazê-lo originário de Miguelturra, aldeia da região de La Mancha, e de maneira mais sutil ao mencionar à página 169 que a mãe do malfeitor, dito o Sacrílego, estava presa em Alcalá, cidade onde nasceu Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616)*. Nazarín é um sacerdote fracassado, que não conseguindo se encaixar dentro da estrutura da Igreja Católica, resolve pregar os ensinamentos cristãos usando suas próprias atitudes como exemplo. Ele deixa Madri e sai a pé, com a roupa do corpo e descalço, em busca de "misérias  e penas" (p. 116), ambicionando "ultrajes e o martírio" (p. 109), no que é seguido por duas discípulas, a ex-prostituta Ándara, e sua amiga, Beatriz. No caminho, Nazarín salva uma criança que havia sido desenganada, ganhando a fama de milagreiro; é recebido por um indomável aristocrata cujo desejo era voltar aos tempos do feudalismo, "(...) para ter o prazer de enforcar numa árvore todo aquele que não andasse direito" (p. 97); enfrenta uma epidemia de varíola, confortando os doentes e sepultando os mortos; é preso e espancado por bandidos, seus colegas de cela; e finalmente morre de tifo a caminho de Madri, para onde estava sendo conduzido para ser julgado por seu comportamento heterodoxo, beirando à heresia**. Nazarín, o nome remete a Jesus Nazareno, emula o cristianismo primitivo, ou, em suas próprias palavras: "(...) à medida que avança o que os senhores entendem por cultura, e se propaga o chamado progresso, e aumenta a maquinaria, e se acumulam riquezas, maior é o número de pobres e mais negra é a pobreza, mais triste, mais displicente" (p. 26), causada pela propriedade, "(...) nome vão, inventado pelo egoísmo" (p. 21). O maior defeito do livro talvez seja o naturalismo que deforma a realidade "(...) desenhada para ser vista de longe e que se vê de perto" (p. 14).


* Também há um parentesco entre os personagens Nazarín e Tartarin, do romance Tartarin de Tarascondo francês Alphonse Daudet (1840-1897), publicado em 1872. O autor inclusive cita, à página 135: "Não há solenidade sem tarasca (...)", sendo tarasca "uma figura monstruosa que simboliza o mal em procissões religiosas, especialmente na cidade francesa de Tarascon". Assim, Nazarín é um referência a Jesus Nazareno, mas também a Tartarin de Tarascon.
** A cena final de Nazarín, que em seu delírio de moribundo enxerga uma cruz à sua espera, e a rejeita, lembra o mote do romance A ultima tentação de Cristo, do grego Nikos Kazantzákis (1883-1957).
*** As angústias de Nazarín lembram as do padre Donissan, do romance Sob o sol de Satã, do francês Georges Bernanos (1888-1948), publicado em 1926, e analisado neste espaço em postagem do dia 21/09/2105



Avaliação: BOM  

(Setembro, 2016)


O súdito (1919) 
Heinrich Mann (1871-1950) - Alemanha     
Tradução: Sibele Paulino 
São Paulo: Mundaréu, 2014, 447 páginas




Esse romance antecipa, de maneira impressionante, o "tipo" alemão que viria a ser a base onde se assentou a ideologia nazista na Alemanha. Diederich Hessling é um jovem filho da burguesia industrial, cuja maior aspiração é "(...) diluir-se na grande totalidade" (p. 59), ou seja, tornar-se um súdito perfeito do Imperador. Publicado em 1919, mas escrito em 1914, acompanha a formação do protagonista, desde seus tempos de estudante de Química, em Berlim, quando se torna membro de uma patética irmandade, a Nova Teutônia, até suas manobras como proprietário de uma pequena fábrica de papel e suas incursões pela política, como liderança exaltada dos nacionalistas locais, já adulto e cabeça da família. Embora o tom geral seja de sátira, o autor consegue ultrapassar a mera caricatura, pois os personagens, particularmente Diederich, carregam uma complexidade que os tornam até mais abomináveis, pois reconhecidamente humanos. O livro não oferece ao leitor uma trama propriamente dita, mas episódios que vão se alinhavando - muitos deles longos e reiterativos, que tornam às vezes a leitura entediante.

* É interessante o dissecamento que o autor faz da ópera Lohengrin, de Richard Wagner (1813-1883), que evidencia o pensamento protonazista do compositor alemão: "Isso é arte alemã! Pois, ali, no texto e na música, pareciam-lhe satisfeitos todos os requisitos nacionais. Ali, revolta era o mesmo que crime; o status quo, o legítimo, era festejado com brilhantismo; dava-se o mais alto valor à aristocracia e ao direito divino, e o povo, um coro eternamente surpreendido pelos acontecimentos, lutava bravamente contra os inimigos de seus senhores" (p. 334) 

Avaliação: BOM  

(Setembro, 2016)


Entre aspas


"Nada humano prevalecia diante do poder" (p. 215)