quarta-feira, 29 de junho de 2016

Mar de histórias - 2º volume 
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai (org)         
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979, 253 páginas 




O segundo volume desta "antologia do conto mundial" reúne 22 textos de autores do "fim da Idade Média ao Romantismo". Não era, talvez, intenção dos organizadores, mas o livro acabou se tornando um vasto repositório de composições misóginas, onde a mulher surge como um ser pérfido, traiçoeiro, vulgar, inconstante, estúpido e  injusto, uma perfeita representação do mal. Mesmo nas narrativas em que tenta-se pintar um retrato favorável da mulher, ela tem que ser testada - em sua fidelidade ou constância, por exemplo -, resultando em situações as mais absurdas, como no "Conto V da Terceira Parte dos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo", do português Gonçalo Fernandes Trancoso (c. 1520-1596), um dos mais cruéis e abomináveis que li em toda a minha vida. Mesmo uma boa narrativa como "Rip van Winkle", do norte-americano Washington Irving (1783-1859), não consegue fugir a esse lugar comum. Alguém pode alegar, claro, que essa percepção deve-se à perspectiva da época, mas o problema é que os organizadores, em momento algum, contextualizam essa visão - ao contrário, parecem até mesmo compartilhar dela. As exceções ficam por conta de "Rinconete e Cortadillo", do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616),  e do excelente   "O terremoto do Chile", do alemão Heinrich von Kleist (1777-1811), que mostra a insanidade que se apossa dos seres humanos quando tomados pela cegueira da fé religiosa. 



     


Avaliação: NÃO GOSTO

(Junho, 2016)

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Judas Iscariotes e outras histórias (1901) 
Leonid Andreiév (1871-1919) - Rússia  
Tradução: Henrique Losinski Alves             
São Paulo: Claridade, 2004, 144 páginas


Este livro reúne seis contos que retratam bastante bem algumas das facetas exploradas pelo autor em sua obra.  "Era uma vez", "O grande slam" e "Vália" ancoram-se no realismo; "A máscara" - a mais fraca das narrativas - filia-se ao simbolismo decadentista; "O nada" e "Judas Iscariotes" são alegorias que discutem a natureza metafísica do bem e do mal. Aliás, é nesse campo que Andreiév se destaca*. Em "O nada" um homem "de certa importância" (p. 104) defronta-se, ao morrer, com um terrível dilema proposto por um cansado diabo: aceitar o fim definitivo - que significa o descanso, mas também o olvido - ou viver a vida eterna no inferno. "Judas Iscariotes" propõe uma releitura do papel daquele que passou para a história como o traidor: Judas teria tido o encargo mais pesado entre todos os discípulos, o de possibilitar a Jesus cumprir seu destino de mártir**. Por sua perfeita compreensão do universo infantil, "Vália" lembra seu contemporâneo, o magistral Anton Tchekov  (1860-1904); "Era uma vez" descreve a crueldade inerente ao ser humano; "O grande slam" relata, a partir da descrição de um grupo que se encontra com regularidade para jogar cartas, a solidão e o egoísmo.  


* Em outro de seus contos, "A conversão do diabo", acompanhamos a angústia e a desilusão de um diabo que tenta, em vão, seguir os mandamentos do cristianismo. In: Contos russos modernos. Rio de Janeiro: Bom Texto, 204, p. 215-246.
** O mesmo tema foi explorado, muito depois, em 1951, pelo escritor grego Nikos Kazantzakis (1883-1957) em A última tentação (São Paulo: Grua, 2015)


     


Avaliação: MUITO BOM

(Junho, 2016)


sábado, 25 de junho de 2016

História universal da infâmia 
e outras histórias (1954-1975) 
Jorge Luis Borges (1899-1986) - Argentina 
Tradução: Vários autores            
São Paulo: Círculo do Livro, s/d, 326 páginas



Reunião de quatro livros - três de contos (História universal da infâmia, O informe de Brodie e O livro de areia) e um de poemas (Elogio da sombra) -, limito-me aqui às narrativas de ficção. O primeiro título, História universal da infâmia, publicado em 1935 (com acréscimos na edição de 1954), já trazia todos os elementos que fariam de Borges um gênio literário: o estilo inconfundível, os temas insólitos, a mistura de realidade e imaginação. É interessante como o autor, muitas vezes rotulado de escritor de literatura fantástica, ultrapassa em muito essas definições redutoras. Seu talento se espraia por fábulas à maneira das Mil e uma noites, pelo falso ensaísmo e até mesmo pelo mais desbragado realismo. Neste primeiro volume, aliás, destaca-se justamente "Homem da esquina rosada", narrativa de vingança, covardia e valentia, digna dos orgulhosos gaúchos. São realistas - e violentos - dez dos onze contos de O informe de Brodie (1970). O único que foge a essa acepção é o texto que dá título ao livro, espécie de página perdida de As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift (1667-1745). Já O livro de areia (1975) contém uma miscelânea de relatos com assuntos caros ao autor, como postulações metafísicas ("O congresso", "A noite das dádivas"), apreensões religiosas ("A seita dos trinta"), apólogos ("O espelho e a máscara"), erudição enciclopédica ("Undr", "O suborno"), loucura ("O disco"), o duplo ("O outro"*) e até mesmo amor ("Ulrica"), política ("Avelino Arredondo" e o extraordinário "Utopia de um homem que está cansado"*) e o fantástico em sentido estrito ("There are more things"). À parte, vale prestar atenção nos magníficos prólogos.



* O autor sempre usa seus contos para se autoanalisar. Em "O outro" demonstra sua mágoa por não conseguir reconhecimento para sua obra poética: "Escreverás poesias que te darão uma satisfação não partilhada (...)" (p. 221). Já em "O congresso" traça um cruel autorretrato:  "(...) um literato que se consagrou ao estudo das línguas antigas (...) e à exaltação demagógica de uma imaginária Buenos Aires de cuchilleros" (p. 235)



Avaliação: OBRA-PRIMA  

(Junho, 2016)


Entre aspas

"A verdade é que ninguém pode ferir-nos, salvo aqueles que amamos". (p. 159)

"Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm". (p. 205)

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Insolação (1915-1944) 
Ivan Bunin (1870-1953) - Rússia  
Tradução: Manoel Paulo Ferreira              
São Paulo: Objetiva, 2003, 208 páginas


Insolação é uma antologia bastante irregular composta por 15 contos e 10 minicontos - aqueles em geral bons; esses, fracos, à exceção de "Numa rua familiar". O problema maior consiste no fato de quase todos os contos terem como núcleo central uma história de amor. Lidos separadamente podem ser interessantes, mas reunidos em uma sequência tornam-se monótonos, até porque a maior parte das personagens são oriundas da mesma classe social - a baixa aristocracia - e trafegam pelos mesmos cenários - o mundo rural da Rússia de fins do século XIX e começos do século XX. Mesmo tratando-se de um período conturbado, de revoltas e revoluções, pouco dessa tensão transparece nas narrativas, talvez apenas um certo "clima" de decadência. Destaques para os contos "Insolação", "Corvo", "Cáucaso", "Muza" e "Zokya e Valeriya" - e para o excelente apólogo 'Jovens e velhos'*. Outro problema é que, embora tenhamos hoje no Brasil inúmeros excelentes tradutores do russo, esse livro é uma tradução de uma tradução - no caso, do inglês. O que certamente nos faz perder, e muito, do sabor da língua original.
   


* Curioso que um dos contos, "O cavalheiro de San Francisco", tido como sua obra-prima - e já lido anteriormente em outros antologias - nunca me convenceu.  Acho-o aborrecido e pretensioso.
   


Avaliação: BOM

(Junho, 2016)


sexta-feira, 10 de junho de 2016

Pra cima com a viga, moçada (1959) 
Seymour - uma introdução (1963) 
J. D. Salinger (1919-2010) - Estados Unidos
Tradução: Alberto Alexandre Martins            
São Paulo: Brasiliense,1984, 150 páginas 



São duas histórias curtas que retomam o personagem Seymour Glass, que apareceu no conto "Um dia ideal para os peixes-bananas", publicado originalmente em 1948. Naquele conto, enfeixado na coletânea Nove estórias, acompanhamos um dia do verão de 1948, quando Seymour comete suicídio, aparentemente sem nenhuma razão. "Pra cima com a viga, moçada" é o relato de seu não-casamento (mas com um estranho final feliz!) em 1942; e "Seymour - uma introdução" é uma tentativa de compreensão de sua obra poética deixada inédita. Ambas as narrativas são conduzidas pelo irmão, Buddy Glass. Na primeira, Buddy é um jovem recruta do Exército padecendo de uma pleurisia, que percorre as ruas de Nova York acompanhado de quatro frustrados convidados da cerimônia que não houve. Na segunda, situada em 1959, Buddy, professor de Inglês em uma universidade perto da fronteira com o Canadá, a propósito de comentar os poemas de Seymour, lança mais algumas luzes sobre sua biografia, ao mesmo tempo em que traça um sarcástico retrato da vida literária e acadêmica. Seymour, ao final, surge se não de corpo inteiro, pelo menos como um personagem grandioso, uma espécie de gênio inadaptado à mediocridade do mundo. As duas histórias elucidam a dimensão de sua trágica decisão final*.





* O livro traz uma das melhores dedicatórias que conheço, e que vale a pena reproduzir aqui: "Se ainda resta neste mundo quem ame a leitura - ou mesmo alguém que lê e sai correndo - eu peço a ele ou a ela, com gratidão e afeto indizíveis, que divida igualmente a dedicatória deste livro com minha mulher e meus filhos".





Avaliação: MUITO BOM
(Junho, 2016)